O poder dos neocons nos EUA

Imagem: Karolina Grabowska
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Por THIERRY MEISSAN e por SIMPLICIUS THE THINKER*

Dois artigos sobre o papel dos agentes straussianos e neoconservadores (neocons) na estrutura de poder dos Estados Unidos

Leo Strauss

No alvorecer de 24 de fevereiro de 2022, forças russas adentraram a Ucrânia em massa. De acordo com o presidente Vladimir Putin, que estava falando à TV àquela hora, a operação especial era o início da resposta do país “àqueles que aspiram à dominação mundial”, e que estavam estabelecendo a infraestrutura da OTAN nas fronteiras do seu país.[1]

Ao longo daquela sua extensa intervenção, ele resumiu a maneira como a OTAN destruiu a Iugoslávia em 1999 sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, chegando ao ponto de bombardear Belgrado. Ele então reportou a destruição causada pelos Estados Unidos no Oriente Médio, Iraque, Líbia e Síria. Foi apenas após esta longa introdução que ele anunciou que havia enviado as suas tropas para a Ucrânia com a dupla missão de destruir as forças armadas associadas à OTAN e de pôr um fim aos grupos neonazistas armados pela OTAN.

Imediatamente todos os estados membros da aliança atlântica denunciaram uma ocupação da Ucrânia comparável àquela da Tchecoslováquia durante a “Primavera de Praga” (1968). De acordo com eles, Vladimir Putin adotara a “doutrina Brezhnev” da União Soviética. Essa seria a razão pela qual o mundo livre teria que punir o “império do mal” ressuscitado, pela imposição de “custos avassaladores” nele.

O entendimento da aliança atlântica objetiva acima de tudo a privar a Rússia do seu principal argumento: seguramente, a OTAN não é uma confederação de iguais, mas uma federação hierárquica sob comando Anglo-Saxão; no entanto, a Rússia estaria agindo desse mesmo modo. Ela estaria negando à Ucrânia a possibilidade de escolher o seu destino, assim como os soviéticos o negaram aos tchecoslovacos. Assumidamente, a OTAN, pelo seu modus operandi, viola os princípios de soberania e igualdade dos países estipulados pela Carta das Nações Unidas; ela, porém, não pode ser dissolvida – a menos que seja para dissolver também a Rússia.

Talvez – mas provavelmente não.

A fala do presidente Vladimir Putin não foi direcionada contra a Ucrânia, ou mesmo contra os Estados Unidos, mas explicitamente contra “aqueles que aspiram à dominação mundial”, ou seja, contra os “Straussianos” alojados na estrutura de poder dos Estados Unidos. Foi uma verdadeira declaração de guerra contra eles.

A 25 de fevereiro, o presidente Vladimir Putin descreveu o poder em Kiev como um “círculo de viciados em drogas e neonazistas”. Para a mídia atlanticista, tais palavras eram as de um doente mental.

Na noite de 25 para 26 de fevereiro, o presidente Volodymyr Zelensky enviou à Rússia, por intermédio da embaixada da China em Kiev, uma proposta de cessar-fogo. O Kremlin imediatamente lhe respondeu com suas condições: (i) Prisão de todos os neonazistas (Dmitro Yarosh e o Batalhão Azov, etc.); (ii) redenominação de todos os nomes de ruas e destruição de todos os monumentos de glorificação aos colaboradores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (Stepan Bandera, etc.); (iii) baixar as armas.

A mídia atlanticista ignorou esse evento, ao passo que o restante do mundo que dele tomou conhecimento prendeu a respiração. A negociação fracassou algumas horas depois, após a intervenção de Washington. Somente então a opinião pública ocidental pôde tomar conhecimento, porém aquelas condições da Rússia foram sempre ocultadas dela.

Sobre o que o presidente Vladimir Putin está falando? Contra quem ele está lutando? E quais são as razões que cegaram e emudeceram a mídia atlanticista?

Paul Wolfowitz

Breve história dos straussianos

Vamos nos deter um pouco sobre este grupo, os Straussianos, a respeito dos quais os ocidentais pouco sabem. Trata-se de indivíduos, todos judeus, porém absolutamente não representativos dos judeus norte-americanos ou das comunidades judaicas pelo mundo. Eles foram doutrinados pelo filósofo alemão Leo Strauss, que se refugiou nos Estados Unidos por ocasião da ascensão do nazismo e que se tornou professor de filosofia na Universidade de Chicago.

De acordo com diversos relatos, ele aglutinou um pequeno grupo de estudantes convertidos em discípulos fiéis, aos quais instruiu oralmente, de forma que inexistem textos escritos acerca daquela instrução. Ele os convenceu que o único modo de não virem os judeus novamente a ser vítimas de um novo genocídio seria constituírem a sua própria ditadura. Strauss se referia a eles como os Hoplitas (os soldados de Esparta), e os comissionou para a desestabilização das cortes dos poderes rivais. Por fim, ele os ensinou a operar com discrição e sigilo, e louvou o papel da “mentira nobre” (“noble lie”). Não obstante Leo Strauss ter morrido em 1973, a fraternidade de seus discípulos prosseguiu.

Os Straussianos se constituíram como um grupo político há meio século atrás, em 1972. Todos eles eram então membros da equipe do senador do partido Democrata Henry “Scoop” Jackson, inclusive Elliott Abrams, Richard Perle e Paul Wolfowitz. Eles trabalhavam associados a um grupo de jornalistas trotskistas, também judeus, os quais haviam se reunido no City College de Nova York, e que editavam o jornal Commentary. Estes eram chamados “Intelectuais de Nova York”. Ambos estes grupos eram estreitamente ligados à CIA, mas também eram vinculados à RAND Corporation (o think tank do complexo industrial-militar), graças ao sogro de Perle, Albert Wohlstetter (o estrategista dos militares americanos). Muitos daqueles jovens casaram-se entre si, até comporem um grupo coeso de cerca de uma centena de militantes.

Juntos, eles redigiram e aprovaram, no bojo da crise de Watergate (1974), a “emenda Jackson-Vanik”, a qual forçou a União Soviética a autorizar a emigração da sua população judaica para Israel, sob pena de sanções econômicas. Aquele foi o seu ato fundador.

Em 1976, Paul Wolfowitz foi um dos arquitetos da “Equipe B” encarregada por Gerald Ford a estimar a ameaça soviética. Wolfowitz produziu um relatório delirante acusando a União Soviética de estar se preparando para assenhorar-se da “hegemonia global”. A natureza da Guerra Fria alterava-se: não se tratava mais de isolar/conter a URSS, ela tinha que ser detida em nome de salvar-se o “mundo livre”.

Os straussianos e os intelectuais de Nova York, todos esquerdistas,[2] puseram-se a serviço do presidente direitista Ronald Reagan. Deve ser compreendido que tais grupos não eram de fato nem esquerdistas nem direitistas. Alguns de seus membros chegaram a transitar cinco vezes do partido Democrata para o partido Republicano e vice-versa. O que importa para eles é infiltrarem-se no poder, qualquer que seja a ideologia do momento.

Eliott Abrams tornou-se Secretário de Estado Assistente. Ele esteve à frente de uma operação na Guatemala onde emplacou um ditador no poder, e conduziu experimentos com oficiais do Mossad israelense sobre como criar reservas para os índios Maias de modo a um dia replicá-los em Israel com os árabes palestinos (a resistência Maia a esses experimentos valeu um prêmio Nobel da Paz à Rigoberta Menchú). A seguir Eliott Abrams continuou seus abusos em El Salvador e por fim na Nicarágua contra os sandinistas, por meio do caso Irã-Contras.

Por sua parte, os intelectuais de Nova York, agora chamados de “neoconservadores”, criaram o Fundo Nacional para a Democracia (National Endowment for Democracy – NED) e o Instituto dos Estados Unidos para a Paz, um dispositivo que organizou muitas revoluções coloridas, a começar pela China com a tentativa de golpe pelo primeiro-ministro Zhao Ziyang e a subsequente repressão na praça Tiananmen.

Ao final do mandato de George H. Bush (o pai), Paul Wolfowitz, então o número 3 do Departamento de Defesa, elaborou um documento em torno de uma ideia forte: após a dissolução da União Soviética, os Estados Unidos deveriam prevenir a emergência de novos rivais, a começar pela União Europeia. Ele concluía por advogar a possibilidade de tomada de ação unilateral, ou seja, pondo fim à consulta às Nações Unidas e ao seu Conselho de Segurança. Wolfowitz é sem sombra de dúvida o arquiteto da “Tempestade no Deserto”, a operação para destruir o Iraque que permitiu aos Estados Unidos mudar as regras do jogo e organizar um mundo unilateral. Foi então que os Straussianos avalizaram os conceitos de “mudança de regime” e de “promoção da democracia”.

Gary Schmitt, Abram Shulsky e Paul Wolfowitz entraram para a comunidade de inteligência dos Estados Unidos por meio do Consórcio para o Estudo do Grupo de Trabalho de Inteligência sobre a Reforma da Inteligência. Eles criticaram o pressuposto de que outros governos pensam do mesmo modo que os Estados Unidos. Eles então criticaram a ausência de liderança política da inteligência, que se deixaria vagar por temas desimportantes ao invés de se concentrar naqueles essenciais. Politizar a atividade de inteligência era o que Wolfowitz já havia feito com a “Equipe B” e o que ele novamente faria em 2002, com sucesso, com o Escritório de Operações Especiais: inventar argumentos para novas guerras contra o Iraque e o Irã (a “mentira nobre” de Leo Strauss).

Os Straussianos ficaram afastados do poder durante o mandato de Bill Clinton. Eles então adentraram os think tanks de Washington. Em 1992, William Kristol e Robert Kagan (marido de Victoria Nuland) publicaram um artigo na Foreign Affairs lamentando a política externa tímida do presidente Clinton e clamando por uma retomada da “hegemonia global benevolente”. No ano seguinte eles fundaram o Projeto para o Novo Século Americano (PNAC), sob os auspícios do American Enterprise Institute. Gary Schmitt, Abram Shulsky e Paul Wolfowitz eram membros. Todos os admiradores não-judeus de Leo Strauss, inclusive o protestante Francis Fukuyama (autor de O fim da história), imediatamente se reuniram a eles.

Richard Perle

Richard Perle

Em 1994, já um traficante de armas, Richard Perle (codinome “o príncipe das trevas”) tornou-se assessor do presidente e ex-nazista Alija Izetbegović na Bósnia-Herzegovina. Foi ele quem trouxe Osama bin Laden e sua Legião Árabe (antecessora da Al-Qaeda) do Afeganistão para defender o país. Perle seria até mesmo um membro da delegação da Bósnia a Paris, quando os acordos Dayton foram assinados.

Em 1996, membros do PNAC (inclusive Richard Perle, Douglas Feith e David Wurmser) escreveram um estudo no âmbito do Instituto para Estudos Políticos e Estratégicos Avançados (IASPS) em nome do novo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Aquele relatório recomendava a eliminação de Yasser Arafat, a anexação dos territórios palestinos, uma guerra contra o Iraque e a transferência dos palestinos para lá. Perle foi inspirado não apenas pelas teorias políticas de Leo Strauss, mas também por aquelas de seu amigo Ze’ev Jabotinsky, o fundador do “Revisionismo Sionista”, do qual o pai de Netanyahu foi o secretário particular.

Robert Kagan

Robert Kagan

O PNAC levantou fundos para a candidatura de George W. Bush (Jr.) e publicou seu famoso relatório “Reconstruindo as Defesas da América” antes de sua eleição. Nele, Robert Kagan apelou por uma catástrofe comparável àquela de Pearl Harbor, que lançaria o povo americano numa guerra pela hegemonia global. Essas foram as exatas palavras que o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld, um membro do PNAC, utilizou em 11 de setembro de 2001.

Graças aos ataques de 11 de setembro, Richard Perle e Paul Wolfowitz instalaram o Almirante Arthur Cebrowski como a sombra de Donald Rumsfeld. Ele teve um papel comparável ao de Albert Wohlstetter durante a Guerra Fria. Ele impôs a estratégia de “guerra sem fim”: as forças armadas dos Estados Unidos não mais ganhariam guerras, mas iniciariam um grande número delas e as fariam durar o máximo possível. Tratava-se de destruir as estruturas políticas dos países-alvo de modo a arruinar suas populações e privá-las de quaisquer meios de se defenderem contra os Estados Unido; uma estratégia implementada por vinte anos no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen…

A aliança entre os Straussianos e os Revisionistas Sionistas foi selada em uma grande conferência em Jerusalém em 2003, à qual figuras políticas israelenses de todas as convicções infelizmente entenderam que tinham que comparecer. Assim, não é surpresa que Victoria Nuland (esposa de Robert Kagan, então embaixador da OTAN) interveio para proclamar um cessar-fogo no Líbano, permitindo ao derrotado exército israelense não ser legalmente incriminado pelo Hezbollah.

Bernard Lewis e Benjamin Netanyahu

Bernard Lewis

Alguns indivíduos, como Bernard Lewis, operaram em todos os três grupos, os Straussianos, os Neoconservadores e os Revisionistas Sionistas. Originalmente um membro da inteligência britânica, ele adquiriu cidadanias americana e israelense, foi conselheiro de Benjamin Netanyahu e um membro do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Lewis, que afirmara num dado ponto de sua carreira que o Islã era incompatível com o terrorismo e que os terroristas árabes seriam na verdade agentes soviéticos, mudou de ideia mais tarde e afirmou, com a mesma desfaçatez, que aquela religião pregava o terrorismo.

Ele inventou a estratégia do “choque de civilizações” para o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Tratava-se de utilizar diferenças culturais para mobilizar os muçulmanos contra os cristãos ortodoxos; um conceito que foi popularizado pelo seu assessor no Conselho, Samuel Huntington, exceto que este não o apresentou como uma estratégia, e sim como uma fatalidade contra a qual ações tinham de ser tomadas. Huntington havia iniciado sua carreira como conselheiro do serviço secreto do regime do apartheid sul-africano, depois escreveu um livro, O soldado e o Estado, afirmando que os militares (profissionais e mercenários) formariam uma casta à parte, a única capaz de compreender as necessidades da segurança nacional.

Após a destruição do Iraque, os Straussianos foram objeto de todo tipo de controvérsia. Todo mundo havia ficado surpresos como um pequeno grupo, apoiado por jornalistas neoconservadores, pôde adquirir tamanha autoridade sem terem sido submetidos ao debate público. O Congresso americano designou um grupo de estudos sobre o Iraque, conhecido como a “Comissão Baker-Hamilton”, para avaliar as suas políticas. Ela condenou, sem contudo dar nome aos bois, a estratégia Rumsfeld/Cebrowski, e deplorou as centenas de milhares de mortes que ela causou. Rumsfeld renunciou, e o Pentágono continuou a perseguir inexoravelmente aquela estratégia que jamais adotou oficialmente.

Na administração de Barack Obama, os Straussianos se reaglutinaram no gabinete do vice-presidente Joe Biden. Seu conselheiro para segurança nacional, Jacob Sullivan, desempenhou um papel central na organização de operações contra a Líbia, a Síria e Myanmar, ao passo que um de seus outros conselheiros, Anthony Blinken, focou-se no Afeganistão, Paquistão e Irã. Foi ele quem esteve à frente de negociações com o líder supremo Ali Khamenei que resultaram na prisão de figuras-chave do governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad em troca do acordo nuclear.

A mudança de regime em Kiev em 2014 foi organizada pelos Straussianos. O vice-presidente Joe Biden esteve firmemente comprometido com ela. Victoria Nuland veio dar apoio aos elementos neonazistas do Right Sector e supervisionar as forças de elite israelenses “Delta” na praça Maidan. Uma interceptação telefônica revelou seu desejo de que “foda-se a União Europeia” (sic), na melhor tradição do relatório Wolfowitz de 1992. Porém os líderes da União Europeia não se deram conta dos motivos, e se limitaram a protestar protocolarmente.

“Jake” Sullivan e Antony Blinken puseram o filho do vice-presidente Biden, Hunter, no conselho de uma grande corporação de gás, a Burisma Holdings, a despeito da oposição do Secretário de Estado John Kerry. Hunter Biden é lamentavelmente nada além de um viciado, que serviu como um biombo para uma gigantesca fraude às expensas do povo ucraniano. Sob a supervisão de Amos Hochstein, ele indicaria diversos de seus amigos drogados para serem outros testas-de-ferro na direção de várias empresas para pilhagem do gás ucraniano. Essas são as pessoas às quais o presidente Vladimir Putin se referiu como a “gangue das drogas”.

Sullivan e Blinken apoiam-se no chefão da máfia Ihor Kolomoisky, a terceira fortuna do país. Apesar de judeu, ele financia os mandachuvas do Right Sector, uma organização neonazista que trabalha para a OTAN e lutou na praça Maidan durante a “mudança de regime”. Kolomoisky tomou partido de seus relacionamentos para angariar poder dentro da comunidade judaica europeia, porém seus co-religiosos reagiram e o expulsaram de associações internacionais.

No entanto, ele atuou para ter o líder do Right Sector, Dmytro Yarosh, designado vice-secretário do Conselho de Defesa e Segurança Nacional das Ucrânia, e para ter a si mesmo designado governador da província de Dnipropetrovsk. Esses dois homens seriam rapidamente destituídos de qualquer função política. É ao grupo deles que o presidente Vladimir Putin chama de “círculo dos neonazistas”.

Ihor Kolomoisky

Em 2017, Antony Blinken fundou a WestExec Advisors, uma firma de consultoria que reuniu antigos oficiais sêniores da administração Obama e diversos Straussianos. As atividades da empresa são extremamente discretas. Ela usa as conexões políticas de seus empregados para fazer dinheiro, coisa que em qualquer outro lugar se chamaria corrupção. 

Joe Biden e Anthony Blinken

Os straussianos, sempre eles os mesmos

Desde o retorno de Joe Biden à Casa Branca, desta vez como presidente dos Estados Unidos, os Straussianos abarcaram o sistema inteiro. “Jake” Sullivan é o Conselheiro de Segurança Nacional, enquanto Anthony Blinken é o Secretário de Estado com Victoria Nuland a seu lado. Como eu reportei em artigos anteriores, ela viajou para Moscou em outubro de 2021, ameaçando esmagar a economia da Rússia caso ela não se sujeitasse. Esse foi o início da crise atual.

A sub-Secretária de Estado Nuland trouxe Dmytro Yarosh de volta à vida e o impôs ao presidente Zelensky, um ator de televisão protegido por Ihor Kolomoisky. Em 2 de novembro de 2021, Zelenski o designou conselheiro especial do comandante das forças armadas, o general Valerii Zaluzhnyi. Este, um democrata autêntico, de início rebelou-se, mas finalmente acatou. Perguntado pelos jornalistas sobre esse dueto desconcertante, ele recusou-se a responder, invocando ser assunto de segurança nacional. Yarosh presta todo o seu apoio ao “Führer branco”, o coronel Andrey Biletsky, e seu batalhão Azov. Aquela cópia da divisão SS “Das Reich” vem sendo forjada desde o verão de 2021 por antigos mercenários americanos da Blackwater.

Tendo esta longa digressão tornado possível identificar os Straussianos, nós devemos admitir que as ambições da Rússia são compreensíveis, e mesmo desejáveis. Livrar o mundo dos Straussianos faria justiça aos milhões de mortes que eles causaram, e salvar aqueles que eles estão para matar. O tempo dirá se esta intervenção na Ucrânia é o caminho mais acertado.

Seja como for, se a responsabilidade pelos eventos correntes recai sobre os Straussianos, aqueles que lhes permitiram atuar sem hesitações também têm uma responsabilidade. A começar por Alemanha e França, que assinaram os acordos de Minsk sete anos atrás e nada fizeram para que eles fossem implementados, e a seguir pelos cinquenta ou tanto de países que assinaram as declarações da OSCE banindo a expansão da OTAN para leste da linha Oder-Neisse,[3] e nada fizeram. Somente Israel, que acaba de se livrar dos Revisionistas Sionistas,[4] expressou uma posição própria acerca desses eventos.

Esta é uma das lições da crise: povos democraticamente governados são responsáveis pelas decisões tomadas há muito tempo pelos seus líderes e mantidas mesmo após alternâncias no poder.[5]

 

* * *

Como a queda da União Soviética desencadeou uma “corrida do ouro” neocon rumo ao “coração da terra”[6]

Por Simplicius The Thinker

Muitas pessoas estão a par dos vários eventos geopolíticos disparatados dos anos 1990 e seus respectivos significados – da dissolução da URSS à ascensão do movimento neocon americano ao centro do palco, o que precipitou as ações militares imperialistas do final do século XX para o século XXI. Poucos, porém, reconhecem o elo teleológico atando esses eventos em uma causalidade direta.

Quando a URSS foi trazida a uma demolição controlada em 1991, isso desencadeou uma reação em cadeia que mudaria a história do mundo e o panorama geopolítico global para sempre. Mas para compreender tais mudanças nós devemos primeiramente começar por uma compreensão do que a URSS representava especificamente em termos do alicerce de segurança global.

O fator mais importante é que a URSS representava um equilíbrio de poderes entre os blocos globais, uma espécie assim de multipolaridade, a qual inerentemente propiciava um sistema de dissuasão, prevenindo um bloco ou o outro de exercer demasiada influência e de abarcar demasiadas áreas geográficas chave sob o seu controle.

Esse equilíbrio operou de forma tangível numa diversidade de conflitos pós-Segunda Guerra Mundial, onde uma linha foi traçada entre as duas superpotências. Tudo, da Guerra da Coreia ao Vietnã, aos conflitos árabe-israelenses, e até mesmo ao conflito indo-paquistanês da década de 1970, representou uma competição de empurra-e-puxa entre os dois lados. Em alguns deles, um dos lados obtinha ganhos marginais, enquanto o oposto se dava no conflito seguinte. Porém em última instância o equilíbrio era mantido na medida em que nenhum dos lados pôde abalar a arquitetura de segurança global de tal modo a desequilibrá-la por completo e rompê-la.

Na guerra de libertação de Bangladesh, que levou à guerra indo-paquistanesa de 1971, a União Soviética apoiou Bangladesh enquanto os Estados Unidos apoiaram o Paquistão. Na guerra indo-paquistanesa subsequente, os EUA apoiaram o Paquistão e a URSS apoiou a Índia. Tais apoios tipicamente conduziam a uma contenção do conflito, permitindo alguma “vitória” local para um lado ou o outro, sem nunca, porém, um deles chegando a dominar a totalidade da região.

Porém, com o fim da URSS, tudo isso começou a mudar. Com os Estados Unidos como o único hegemon remanescente, os Neocons que por muito tempo salivavam pela chance de hegemonia global total agora tinham diante de si uma avenida aberta.

Zbigniew Brzezinski, que serviu como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Carter, escreveu seu livro The Grand Chessboard, no qual ele notadamente descreveu a Eurásia como o centro do poder global. Brzezinski utilizou a “Teoria do Coração da Terra” (Heartland) como a fundação central de sua obra seminal.

Considerado o pai fundador da geopolítica e da geoestratégia, Mackinder escreveu The Geographical Pivot of History, no qual ele descreveu a Europa, Ásia e África juntas como a “Ilha do Mundo” e, no centro dela, a mais importante região do mundo: o Coração da Terra.

Duas concepções da “Teoria do Coração da Terra” de Mackinder

 

Mackinder prosseguiu sumarizando a sua Teoria como se segue (Mackinder, Democratic Ideals and Reality, p. 150): (i) Quem governa a Europa Oriental comanda o Coração da Terra; (ii) Quem governa o Coração da Terra comanda a Ilha do Mundo; (iii) Quem governa a Ilha do Mundo comanda o mundo.

Bem como a lógica por detrás dela: “Qualquer poder que controlasse a Ilha do Mundo controlaria bem mais que 50% dos recursos mundiais. O tamanho do Coração da Terra e sua posição central o tornam a chave para controlar a Ilha do Mundo”.

Deve-se notar que, a despeito do clichê típico das “riquezas africanas”, a Ásia pode de fato ser considerada o continente mais rico em recursos no mundo. É claro que a África atraiu a maior pilhagem simplesmente porque a facilidade com que os colonizadores europeus foram capazes de capturar os seus recursos deveu-se à falta de capacidade de defesa de seus países, assim marcando-a com a reputação de ser “a mais rica”. Porém de muitos modos a África é também estéril com muitas áreas desérticas. A título de exemplo, a Rússia sozinha não apenas possui as maiores florestas do mundo para extração de madeira, mas o Lago Baikal detém um quinto de todo o suprimento mundial de água doce.

Mas a ideia básica da Ilha do Mundo evoluiu e foi adaptada por escritores tais como o russo Aleksandr Dugin – coloquialmente (e erroneamente) chamado de cérebro, ou místico, de Putin.

Em sua obra, Dugin caracteriza a Rússia como o poder terrestre da “Eterna Roma”, em luta contra os poderes marítimos atlanticistas (Estados Unidos/Reino Unido) da “Eterna Cartago”.

Como já se escreveu sobre ele: “A Guerra dos Continentes”, na qual ele descreveu uma disputa geopolítica em curso entre dois tipos de poderes globais: poderes terrestres, ou “Eterna Roma”, que são baseados nos princípios do primado do Estado, da comunalidade, do idealismo e da primazia do bem comum, e as civilizações marítimas, ou “Eterna Cartago”, que são baseadas no individualismo, comércio e materialismo. No entender de Dugin, a “Eterna Cartago” esteve historicamente corporificada na democracia ateniense e nos impérios britânico e holandês. Hoje em dia, é representada pelos Estados Unidos. A “Eterna Roma” é corporificada pela Rússia, e o conflito entre ambas perdurará até que uma delas seja completamente destruída – nenhum tipo de regime político e nenhum volume de comércio pode deter isso”.

Mesmo aderindo-se ou não à ideia de “Coração da Terra”, ela é um recurso visual útil para se entender a importância daquilo a que Brzezinski chamou os “Bálcãs eurasianos”. Esses são os países na área crítica de “porta dos fundos” da Ásia que serve como uma espécie de ponto frágil de vulnerabilidade, portanto um meio de acesso ao “Coração da Terra”.

A região dos “Bálcãs eurasianos” está no círculo

 

No mapa acima, a linha pontilhada mais abrangente representa uma “zona de instabilidade”, enquanto que as setas apontam para lugares de pressão geopolítica, e as estrelas representam focos de conflito.

Apenas para entender: o flanco meridional (ao sul) do “Coração da Terra” é blindado pela Índia, um país poderoso demais para consistir numa ponto de entrada fraco pela qual se penetrar. O flanco oriental (a leste) é naturalmente guardado pela China. Mas o corredor dourado pelo qual o Ocidente tem salivado desde os dias do “Grande Jogo” do século 19 é aquele que vai do Irã até os “stãos”, e deles diretamente para dentro do Coração da Terra.

Durante a existência da URSS, este corredor estava fora de alcance devido ao fato de que a maioria desses “Bálcãs eurasianos” era parte da URSS, quais sejam: Quirguistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Cazaquistão e Tadjiquistão. Unidos, eles eram formidáveis, inquebrantáveis.

O Irã, é claro, não era parte da URSS, e ele permaneceu sob severo ataque e controle da CIA. O golpe de 1953 que derrubou o governo iraniano e instalou a dinastia Pahlavi apoiada pela CIA é hoje uma etapa abertamente reconhecida da história: “A CIA reconhece que o golpe foi dado “sob direção da CIA” e “como um ato da política externa dos Estados Unidos, concebida e aprovada nos níveis mais altos do governo”.

Somente com a revolução de 1979 o governo apoiado pela CIA foi deposto. Mas o grande sonho geopolítico dos poderes atlanticistas ainda estava fora de questão devido ao corredor na retaguarda para o interior do Coração da Terra estar unido sob a autoridade poderosa e estável da URSS.

Mesmo quando os Estados Unidos começaram suas tentativas de interferir no Afeganistão – algo que Brzezinski assumiu mais tarde que havia começado muito mais cedo nos anos 70 do que é comumente admitido – a URSS invadiu para rapidamente neutralizar os rebeldes apoiados pela CIA que estavam ameaçando desestabilizar aquele país “porta dos fundos” geopoliticamente chave.

Conquista após a queda

A dissolução da URSS em 1991 libertou décadas de planejamento robusto quase que instantaneamente. Uma vez que os antigos guardiões da “entrada dos fundos” no Coração da Terra haviam se tornado independentes, logo fracos e vulneráveis à insinuação e interferência política, o grande plano para trespassar o punhal no coração da Ilha do Mundo foi rapidamente posto em movimento.

A data oficial para a dissolução da URSS foi 26 de dezembro de 1991. Meros quatorze meses depois, a 26 de fevereiro de 1993, o primeiro tiro da nova era foi disparado – o atentado à bomba no World Trade Center. O plano objetivava fazer a torre norte desabar sobre a torre sul, derrubando-as juntas em um maciço ataque terrorista, que seus perpetradores vislumbravam que mataria “250 mil pessoas”.

Khalid Sheik Mohammed, comparsa de Osama bin Laden

 

Mas o que a maioria não sabe é que aquele ataque fora concebido para ter sido o 11 de setembro bem antes de vir a acontecer o real 11 de setembro. Ele apenas falhou. Khalid Sheik Mohammed, o idealizador do 11 de setembro uma década depois, confessou mais tarde ter idealizado também o ataque de 1993. Seu próprio sobrinho, Ramzi Yousef, foi o principal perpetrador do ataque de 1993, e ambos eram ligados a Osama bin Laden.

De fato, após o ataque de 1993, Khalid Sheik Mohammed concebeu um outro plano ambicioso que valeu como um ensaio para a preparação do 11 de setembro, chamado Operação Bojinka. Sua similaridade com os posteriores ataques de 11 de setembro era notável: dentre outras coisas, o plano envolvia sequestrar onze aviões comerciais e fazer um deles chocar-se contra a sede da CIA em Langley na Virgínia. Em um dado momento ele planejou fazer aviões se chocarem contra usinas nucleares nos Estados Unidos, mas acabou desistindo dessa ideia.

Ainda outro plano que chegou a ser aventado teria envolvido o sequestro de mais aeronaves. O World Trade Center (New York City, New York), o Pentágono (Arlington, Virgínia), o Capitólio (Washington, D.C.), a Casa Branca (Washington, D.C.), a Torre Sears (Chicago, Illinois), a Torre do Banco dos Estados Unidos (Los Angeles, Califórnia) e a Pirâmide Transamerica (São Francisco, Califórnia) teriam sido alvos prováveis. Este plano acabou por consistir no enredo base para os ataques de 11 de setembro que envolveram sequestrar aviões comerciais, ao invés de carregar pequenos aviões com explosivos, e fazê-los se chocarem contra os alvos pretendidos.

Não obstante, a situação fica clara: as mesmas forças internacionais de estado profundo que pretendiam acionar um tsunami de guerra que levaria à conflagração do Oriente Médio e que já haviam posto seu plano em marcha meros quatorze meses após a dissolução da URSS, pela primeira vez se davam conta que caía no seu colo uma clara trilha para dentro daquela passagem de acesso ao “Coração da Terra”.

Khalid Sheik Mohammed, até hoje prisioneiro em Guantánamo

 

Os straussianos

Mas quem eram aquelas forças nas sombras que tramavam seus planos de forma dissimulada debaixo do disfarce de “terrorismo islâmico”? Para retroagir um pouco, devemos primeiro nos dar conta que, meros dois meses após a dissolução da URSS em dezembro de 1991, a famigerada Doutrina Wolfowitz vinha à luz.

Essa doutrina, datada de fevereiro de 1992, abertamente declarava o seu propósito: “A doutrina consagra a estatura dos Estados Unidos como a única superpotência remanescente no mundo após o colapso da União Soviética com o fim da Guerra Fria, e proclama que o seu objetivo último é conservar essa posição. Nosso primeiro objetivo é prevenir o ressurgimento de um novo rival, seja no território da ex-União Soviética ou em qualquer outro lugar, que represente uma ameaça da natureza daquela anteriormente expressa pela União Soviética. Essa é uma consideração dominante subjacente à nova estratégia de defesa regionalizada, e requer que nós nos empenhemos para prevenir qualquer poder hostil de dominar alguma região cujos recursos poderiam, sob controle consolidado, ser bastantes para produzir poder global”.

Wolfowitz foi um Neocon membro fundador daquilo que em muitos círculos é chamado de “os Straussianos”, um pequeno e secreto grupo de Neocons que entre si formam um governo dentro de um governo (ou seja, um estado profundo – deep state), e que estiveram inseridos nos mais altos postos em sucessivas administrações ao longo de décadas. Eles começaram como alunos de Leo Strauss, que os ensinou a “mentira nobre” (noble lie), dentre outras coisas, em palestras secretas que não podiam ser gravadas.

Esses conceitos não são invencionices das obscuras arengas de Thierry Meyssan da Voltaire Network,[7] mas antes são o resultado de cultura acadêmica real de que há muito foram estabelecidas as conexões. O livro de 1999 de Shadia B. Drury Leo Strauss e a Direita Americana, por exemplo, identifica a grande influência de Leo Strauss sobre a historiadora Gertrude Himmelfarb e seu marido Irving Kristol, conhecido como o fundador do neoconservadorismo. O filho de Irving Kristol é, claro, William Kristol, fundador do Projeto para o Novo Século Americano (PNAC), do qual falaremos abaixo.

Leo Strauss foi então acusado de defender formas de fascismo e de autoritarismo: “Drury sustenta que Strauss ensinava que “a enganação perpétua dos cidadãos por parte daqueles no poder é crítica porque eles necessitam serem guiados, e eles precisam de governantes fortes que lhes digam o que é bom para eles”. Nicholas Xenos de modo similar sustenta que Strauss era “um antidemocrata em um sentido fundamental, um verdadeiro reacionário”. Xenos diz: “Strauss era alguém que desejava retroceder a uma era anterior, pré-liberal, pré-burguesa, de sangue e vísceras, de dominação imperial, de regime autoritário, de puro fascismo”.

A característica suprema desse grupo de “Straussianos” era a sua rígida coesão, alguns deles tendo se casado (Victoria Nuland e o co-fundador do PNAC Robert Kagan, assim como Irving Kristol e Gertrude Himmelfarb anos antes), e composto uma espécie unidade familiar geracional coesa no interior do governo em posições não limitadas por mandatos, o que os permitiu manter-se no poder por detrás dos bastidores ao longo de décadas. Essa gente inclui Elliot Abrams, Richard Perle, Kagan e sua esposa Nuland, Paul Wolfowitz, o acima citado William Kristol, etc.

Usando o Grand Chessboard de Brzezinski como um modelo, essa claque Neocon formou think tanks nos anos 1990, o mais notável e influente dos quais foi o PNAC (Projeto para o Novo Século Americano), o qual em essência reformulou o destino manifesto expresso na Doutrina Wolfowitz” para uma escala maior, convocando a uma escalada nos gastos militares americanos e a uma agressividade a fim de preservar e assegurar a dominação americana global no vindouro século XXI.

E, uma vez que praticamente todas as figuras de liderança dessa camarilha eram judeus, com um interesse manifesto na supremacia de Israel no Oriente Médio, é possível ver-se a elegância dupla do plano. Por um lado, ele se erguia para deslanchar uma nova onda de expansão americana no Oriente Médio a qual era útil aos interesses de Israel em eliminar seus inimigos declarados e, por outro lado, ele assegurava uma cabeça-de-ponte americana em direção ao centro do “Coração da Terra”, a servir como uma cunha definitiva que poderia rachar o continente eurasiano de uma vez por todas.

A propósito, nada disso é teoria da conspiração: Paul Wolfowitz foi investigado pelo FBI em 1978 por “fornecer inteligência ao governo israelense”, e diversos membros fundadores do PNAC, inclusive Wolfowitz e Richard Perle, trabalharam diretamente com Benjamin Netanyahu na produção de diretrizes governamentais para Israel, tais como “A Clean Break: A New Strategy for Securing the Realm”, que impulsionou uma ainda maior expansão Sionista, agressivamente desestabilizando os inimigos de Israel e eliminando Saddam Hussein do poder no Iraque: “Ao passo que há aqueles que preconizam uma continuidade, Israel tem a oportunidade de efetuar uma ruptura limpa: ele pode forjar uma estratégia e um processo de paz baseados em toda uma nova fundamentação intelectual, que venha a restaurar a iniciativa estratégica e prover à nação o ambiente para dedicar toda energia possível à reconstrução do Sionismo [N. do T.: Daí o “Revisionismo Sionista”], para o que o ponto de partida devem ser as reformas econômicas”.

Por muitos modos, a URSS frustrou a expansão sionista por muito tempo. Durante os anos 60 e 70, a URSS foi o principal suporte para o mundo árabe durante os seus muitos conflitos com Israel. Da Guerra dos Seis Dias em 1967 à subsequente guerra de atrito, à Guerra do Yom Kippur de 1973 e à Guerra do Líbano de 1982, a cada vez a URSS combateu Israel. Em alguns casos até mesmo diretamente, como na Operação Rimon 20 durante a guerra de atrito, quando pilotos soviéticos ao lado do Egito engajaram a força aérea israelense; bem como durante a Guerra do Líbano de 1982, quando a URSS enviou mais de 2.000 homens de defesa antiaérea para ajudar a Síria a repelir a agressão israelense. Desse modo a dissolução da URSS permitiu a Israel muitos ganhos em sua vizinhança imediata, uma vez que não mais havia um “big brother” para proteger os seus inimigos árabes.

Ponteira e calço

Assim pode ser visto como os interesses de ambos, Estados Unidos e Israel, amplamente convergiam e se alinharam no Oriente Médio precisamente após a queda da URSS. Assim, não foi nenhuma surpresa ter esse grupo de Neocons deslanchado então imediatamente os seus planos de estabelecimento de um novo século de supremacia americana, começando com a conquista do Oriente Médio. Recordemo-nos da famosa entrevista do Comandante Supremo Aliado das forças da OTAN na Europa o general Wesley Clark a respeito de “sete países em cinco anos”, na qual ele revelou ter recebido um memorando imediatamente após o 11 de setembro expondo que os militares americanos iriam livrar-se de sete países (a maioria no Oriente Médio) ao longo dos cinco anos seguintes, a começar pelo Iraque, e na sequência Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã.

É claro que, na ocasião do memorando, Clark declarou que os Estados Unidos já haviam iniciado a sua guerra no Afeganistão, perfazendo assim na realidade oito países no total.

Porém o fator relevante a ser distinguido é o quão perfeitamente aqueles países se alinham formando uma rota exata e direta em linha reta para o interior daquela “entrada dos fundos” da região do Coração da Terra. A partir do Líbano na costa mais ocidental, para a vizinha Síria, daí para o Iraque, o Irã e o Afeganistão vizinho, é criado um cordão sanitário completo para o controle pelos Estados Unidos imperiais da famoso flanco sudoeste vulnerável da “Ilha do Mundo”.

Contornada em azul na imagem acima está um ponto de interesse: a província de Xinjiang na China, o lar dos Uigures, aonde os Estados Unidos continuam a exercer pressão de propaganda máxima para desestabilizar a região – uma espécie de “arrombamento da fechadura” do portão dos fundos da China, em sua região mais vulnerável – uma espécie de República da Chechênia da China.

E aquilo de que a maioria não está ciente é um fato pouco conhecido revelado por Trump, que o real significado do Afeganistão, e da base área dos Estados Unidos de Bagram em particular, era a sua proximidade de instalações estratégicas chinesas: “Nós teríamos mantido Bagram porque fica próximo da China. Fica a uma hora da instalação nuclear deles, e nós abrimos mão disso também”, Trump disse. “E agora a China irá assumir o controle de Bagram, na minha opinião”.

Uma olhada no mapa acima deixa claro que a comprida tripa de terra na região nordeste do Afeganistão situa-se comodamente em direção às fronteiras da China, mais precisamente na província de Xinjiang, para o interior da qual os Estados Unidos contrabandeiam as suas agitação e desestabilização engendradas para criar um Cavalo de Troia na porta dos fundos contra a China.

É claro que, numa escala micro, essa é uma estratégia que os Estados Unidos já usaram também contra a Rússia logo após a dissolução da URSS. A CIA rapidamente importou terrorismo e insurgência para a República da Chechênia, alimentando sentimentos separatistas de modo a fragilizar o próprio ponto de vulnerabilidade meridional da Rússia em uma escala local.

A forma mais simples de ilustrar essa estratégia é compará-la a como os antigos faziam para dividir pedras grandes em pedreiras com o método da ponteira e calço.

Você encontra o veio mais fraco na pedra, martela nele uma ponteira de metal juntamente com um calço para alargar esse ponto fraco por meio de pressão e, voilà, a pedra grande e aparentemente indestrutível é partida ao meio.

Plano fracassado

Está claro que tão logo a URSS dissolveu-se, os Neocons geracionais e não-eleitos incrustados a fundo por dentro das dobras da estrutura política dos Estados Unidos imediatamente entraram em ação com planos para capitalizar em cima do agora “objetivo em aberto” do Coração da Terra deixado tentadoramente dependurado diante deles.

A partir do atentado a bomba de 1993, aquele secreto governo-dentro-de-um-governo[8] já tinha se planejado para dar início à nova era de imperialismo que varreria a seguir o Oriente Médio. De fato, até 1998, três anos antes do 11 de setembro, Wolfowitz e a turma de militantes do PNAC já estavam exortando Clinton a invadir o Iraque – mas em vez disso o máximo que conseguiram foi a Operação Raposa do Deserto, uma campanha de quatro dias de bombardeios intensos que matou mais de mil iraquianos.

Porém nesse meio-tempo os seus operadores fundamentalistas, há tempos vinculados ao clã do deep state por meio da inumerável família (não distinto de como a filha do chefe da seção da CIA no Afeganistão Graham Fuller era casada com o tio dos irmãos Tsarnaev, que cometeram o atentado à bomba na maratona de Boston), dos negócios, e de conexões financeiras, estavam já bastante adiantados em seus planos para irrevogavelmente lançar os Estados Unidos nas guerras por vir, que com o 11 de setembro finalmente se tornaram viáveis.

Nesse interim, porém, o deep state dos Estados Unidos se viu apto a desestabilizar primeiro a Rússia em uma variedade de frentes, para ter certeza que a vindoura era de ataques imperialistas não poderia por nenhum modo ser perturbada por algum ressurgimento repentino do poderio russo. Isso resultou na irrupção de conflagrações como o conflito checheno e mesmo a crise da Iugoslávia, a qual almejou a fragmentação e o enfraquecimento da Sérvia, aliada chave da Rússia nos Bálcãs.

Isso foi seguido pela guerra na Georgia, justo na finalização do conflito checheno (a “fase de insurgência” do qual durou oficialmente até 2009) de acordo com a mesma linha de pensamento; as elites do Ocidente precisavam manter constantemente a Rússia enfraquecida e sem equilíbrio para poder interferir do modo como a URSS teria feito.

Mas apesar de alguns “sucessos” iniciais, a história irá lembrar o arco de seu plano como um fracasso absoluto. Eles conquistaram o Iraque e o Afeganistão, apenas para serem ignominiosamente chutados de um e em processo de despejo do outro. A sua aventura na Síria falhou, quando uma ressurgente Rússia veio em socorro de sua aliada de longa data, forçando os Estados Unidos a um “prêmio de consolação” humilhante e ressentido de agachar-se em alguns campos de petróleo nos restos inóspitos da província de Deir Ezzor.

E aquele que era para ter sido o feito culminante de todo o grande esquema, o pivô chave que teria assegurado a via dourada de ladrilhos amarelos da elite think-tanker em linha reta para dentro da cavidade aberta no peito do “Coração da Terra” em si – a saber, o Irã – resultou em que? O Irã agora está mais poderoso e mais influente do que nunca, inquestionavelmente em ascensão. Particularmente à luz dos mais recentes progressos na reaproximação Irã-Arábia Saudita que testemunharam um convite sem precedentes ao presidente iraniano Raisi para visitar Riad.[9]

Os “Bálcãs eurasianos” continuam a ser uma ferida aberta. O deep state ocidental ainda mantém os seus caninos fundo no Cazaquistão e fomenta um foco de desestabilização no Quirguistão e no Tadjiquistão – os quais precisamente no ano passado viram a irrupção de grandes hostilidades com aproximadamente cem mortos de cada lado – assim como no Azerbaijão e na Armênia.

Mas por muitos modos esses são os estertores angustiados de morte de um adversário vingativo, debatendo-se, incapaz de assimilar a sua derrota. Com a vindoura era de reaproximações entre as várias potências médias da região, nós provavelmente veremos cooperação ainda mais estreita com foco na estabilidade econômica, particularmente liderada pela China com as diversas iniciativas Cinturão e Rota/Novas Rotas da Seda.

O fim da história… para um novo recomeço

Existe um sentimento que, após duas décadas tentativas violentas por parte da América de penetrar a vulnerável entrada dos fundos do Coração da Terra, os atores do poder na região começaram a se cansar do conflito sem fim e, em tempos de crise econômica global, se deram conta que somente a cooperação, a concessão e a reconciliação uns com os outros lhes dará alguma chance de voltarem a ver alguma prosperidade real.

Francis Fukuyama, um dos mais primevos e ferrenhos discípulos do movimento Neocon, renegaria mais tarde aquelas suas crenças ao ter-se dado conta das consequências decorrentes do fracasso monumental dos Estados Unidos, e da magnitude dos desastres que esse fracasso causou mundo afora. Tendo sido um desenvolvedor chave para a “Doutrina Reagan” dos anos 1980, a qual descortinou um ambicioso foco em intervenções pelo mundo todo e no armamento de insurgentes para enfrentar a URSS no Afeganistão, Fukuyama estaria tempos depois entre os signatários fundadores do Projeto para o Novo Século Americano, bem como um destacado membro da RAND Corporation.

Neocon inveterado e fanático, ele chegou a escrever o absurdamente exultante livro O fim da história, o qual sem ironias declarava que a queda da URSS significava que toda a história havia atingido o seu desfecho ideológico – daquele ponto em diante, o sistema “democrático-liberal” do Ocidente iria essencialmente guiar os povos em uma era dourada, como a forma definitiva de governo para a humanidade.

Até o meio dos anos 2000, contudo, o prognóstico de Fukuyama estava coalhando. Ele não retornava mais as ligações do seu anteriormente amigo do peito Wolfowitz, e escreveu um artigo para o New York Times em que equiparou o neoconservadorismo ao leninismo: “Em um ensaio de 2006 para a The New York Times Magazine fortemente crítico da invasão do Iraque, ele identificou o neoconservadorismo com o leninismo. Ele escreveu que os neoconservadores “acreditaram que a história poderia ser guiada, por meio da correta aplicação de poder e de vontade. O leninismo foi uma tragédia na sua versão bolchevique, e repetiu-se como farsa quando praticado pelos Estados Unidos. O neoconservadorismo, tanto como um símbolo político quanto como um corpo de pensamento, converteu-se em algo que eu não tenho mais como endossar”.

Até mesmo o homem que uma vez proclamou com soberba que a história tinha chegado ao fim com a “vitória ideológica” dos Estados Unidos sobre a sua rival URSS, estava agora condenado a prestar testemunho da calamitosa despedida ao rescaldo de três décadas de tentativas desastrosas de trespassar as grades da “Ilha do Mundo”.

Quem sabe Fukuyama estivesse no fim das contas mais certo do que ele imaginava, e os primeiros suspiros de um determinado fim tenham sido de fato emanados. Mas, ao contrário, um fim para o “liberalismo democrático” e para as aspirações hegemônicas globais, em nome dos quais os erroneamente denominados Neocons tão perversamente atearam fogo ao mundo.[10]

*Thierry Meissan é escritor. Presidente e fundador do Réseau Voltaire.

*Simplicius The Thinker é analista político.

Tradução: Ruben Bauer Naveira.

Notas do tradutor


[1] Por Thierry Meissan, publicado em Europe Reloaded em março de 2022, logo ao início da invasão russa da Ucrânia.

[2] No contexto do autor do artigo, “esquerdista” refere-se aos adeptos do partido Democrata e “direitista” aos adeptos do partido Republicano

[3] A linha divisória entre as esferas de poder ocidental e soviética, ao final da Segunda Guerra Mundial

[4] Por pouco tempo, Netanyahu já está de volta ao poder.

[5] O autor catalogou em seu artigo um grande volume de fontes nas quais baseou sua pesquisa.

[6] publicado no blog do autor em março de 2023.

[7] O autor do primeiro artigo, traduzido acima.

[8] Deep State

[9] O processo de reaproximação completou-se, e Irã e Arábia Saudita já estão com as suas relações normalizadas.

[10] O autor do artigo preencheu o texto com inúmeras referências a suas fontes, que podem ser consultadas no original


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