Sobre o Hezbollah no Brasil

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Por SALEM NASSER

No Brasil, e no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente

Eu estava escrevendo um post, há muito devido, sobre a Palestina, tentando traçar um balanço parcial da situação…

E de repente a notícia mais quente da cidade (pelo menos no Brasil) passa a ser aquela sobre a detenção de dois homens brasileiros – supostamente de nacionalidade libanesa também – sob a suspeita de planejarem ataques terroristas no Brasil, contra edifícios e alvos judeus, e de pertencerem a uma organização terrorista.

Tudo isto, foi-nos dito e relatado, apontando para uma ligação com o Hezbollah libanês! Uma parte muito importante da história teve a ver com o fato de o Mossad israelense ser a parte responsável pela descoberta da conspiração.

Deixe-me dizer desde o início: nada do que sei sobre o Médio Oriente, o Líbano, o Hezbollah, e sobre o Brasil, São Paulo, a região fronteiriça entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina, e nada do que sei sobre o cenário árabe e islâmico no Brasil, absolutamente nada, me permite conceber, por um momento, que haveria algum crédito à ideia do Hezbollah planejando um ataque no Brasil!

Agora, devo dizer também: estudei direito e dou aulas de direito; por algum tempo, num passado distante, trabalhei com direito penal; tudo isto ensinou-me que não se pode comentar um processo judicial em curso, uma investigação criminal em curso, se não se tiver acesso à informação. E é certo que não tenho qualquer acesso aos fatos sob investigação.

No Brasil, porém, nos habituamos a que o material das investigações seja entregue aos jornalistas e comentado pelos meios de comunicação. A estas fontes secundárias, tem-se acesso, mas é impossível confiar no seu conteúdo. É preciso lidar com as informações duvidando de tudo, o tempo todo.

A terceira coisa que devo dizer é a seguinte: no Brasil, e, acrescentaria, no Ocidente, 99,9% das pessoas nada sabem sobre o Hezbollah; dos restantes, algumas pessoas sabem algumas coisas, mas não o suficiente. Apesar disso, fomos treinados, durante 30 ou 40 anos, para imaginar as piores cenas de violência ilegítima assim que o nome é mencionado. Para a maioria de nós, existe uma ligação automática entre o nome e a noção de terrorismo. Disseram-nos isso e naturalizamos isso.

Não é apenas ignorância. É a ignorância aliada a um poderoso preconceito negativo. Nestas circunstâncias, uma vez divulgadas tais notícias, espalham-se com grande facilidade e serão tidas por verdadeiras, na sua pior versão, mesmo que mais tarde se prove que não têm substância.

Os efeitos esperados são produzidos instantaneamente e não podem ser desfeitos por uma futura eventual demonstração de que não havia realidade nas notícias ou acusações.

Provavelmente não sabemos mais sobre o Mossad do que sabemos sobre o Hezbollah, mas também fomos alimentados com uma imagem dele: a imagem de um organismo de inteligência muito capaz, talvez o melhor do mundo, e implacável, que procura e obtém vingança contra seus inimigos em qualquer lugar do mundo.

Quando ouvi que o Mossad era a fonte das investigações – e os israelenses foram rápidos e insistentes em divulgar essa informação – pensei que se deveria pelo menos considerar a possibilidade de termos uma conspiração diferente diante dos nossos olhos. Afinal de contas, uma organização que não se deterá perante nada, assumindo inclusive o crédito por assassinatos em todo o mundo, não se sentiria impedida de criar uma falsa conspiração terrorista por considerações morais. Não hesitaria se visse algum ganho político daí advindo.

Apenas uma hipótese

As partes da investigação que os meios de comunicação optam por tornar públicas – parece que alguns meios de comunicação tiveram acesso pelo menos ao depoimento completo de um dos detidos, mas não sabemos o que não é publicado – dizem-nos algumas coisas: o suspeito teria feito trocas por WhatsApp com número do Paraguai; ele teria recebido algum dinheiro, cerca de US$ 500,00, de algum contato em São Paulo, em bairro conhecido pela grande quantidade de comerciantes árabes que ali operam seus negócios; ele teria então sido levado ao Líbano e sido alojado em hotéis; ele teria tido uma longa reunião com um chefe da organização e lhe teriam dito que seria necessário ter força para matar e sequestrar; ele, nesse momento, teria dito que não tinha essa disposição; só quando já estava de volta ao Brasil o suspeito teria percebido que havia sido alvo de uma tentativa de recrutamento do Hezbollah!! Se esta última afirmação for verdadeira, ele pode ter apenas imaginado que tinha estado em contato com membros do Hezbollah…

Então, considerando apenas o que está ao alcance de todos nós, como informação pública, da qual, no entanto, deve-se sempre duvidar, e considerando o que o suspeito supostamente revelou à Polícia Federal, eu diria que: é perfeitamente possível que o os suspeitos possam ter perpetrado crimes e que estivessem planejando estar outros crimes; pode haver provas de trocas e comunicações entre eles e com outros suspeitos que seriam incriminatórias; alguém pode ter dito, ouvido ou imaginado que estava lidando com membros do Hezbollah. Nenhuma destas coisas seria suficiente para dar credibilidade às teses de um envolvimento real do Hezbollah, isoladamente ou em combinação.

O que foi revelado a partir do depoimento do suspeito à polícia diz-nos que a pessoa não sabe o suficiente sobre o Líbano ou sobre o Hezbollah. Também dá a impressão de que os suspeitos não eram e não são agentes capazes e experientes que seriam escolhidos para operações de inteligência ou sabotagem.

Mais uma vez, tudo o que sei sobre o Hezbollah diz-me que o grupo – o partido político e o movimento de resistência – que representa uma parte tão importante da paisagem social e política libanesa, não está empenhado em organizar ataques contra civis em qualquer parte do mundo. E me diz também que o que fazem, fazem profissionalmente.

Portanto, não estou convencido de que o que quer que seja aquilo em que os suspeitos estivessem envolvidos tenha algo a ver com o Hezbollah.

Sei, porém, que isso e tudo mais cabe à Política Federal e ao Judiciário brasileiro esclarecer e julgar. E a missão dessas instituições é muito vital, por mais de um motivo.

A primeira razão, óbvia e vital, é garantir a segurança e a paz na sociedade brasileira. Qualquer suspeita de atos violentos em preparação deve ser minuciosamente investigada e, se for real, ser prevenida e punida.

A outra importância igualmente vital da missão é esta: temo que tais acusações, dirigidas, de modo imediato, contra o Hezbollah, possam ter o propósito ou a consequência não intencional de ferir uma parte da população brasileira, nomeadamente os brasileiros muçulmanos e especificamente os muçulmanos xiitas e ascendência libanesa.

Enquanto aceitarmos acriticamente a demonização do Hezbollah e virmos com suspeita qualquer pessoa que se diga ter “contatos” com o Hezbollah, corremos o risco de criminalizar todo e qualquer libanês e todo e qualquer muçulmano xiita.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]


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