Qual a diferença entre o Léo Lins e uma diarreia?

Imagem: Suvan Chowdhury
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ACAUAM OLIVEIRA*

Se de fato queremos uma sociedade livre de fascistas, nós teremos, sim, que persegui-los, encurralá-los, tornar indigna sua existência

Primeiro movimento: posicionar-se. No que diz respeito a polêmica envolvendo a retirado do especial de comédia do humorista Léo Lins do canal YouTube, a pedido do Ministério Público, o comediante Fábio Porchat – que saiu em defesa de Lins – está errado. A interdição das piadas violentas de Léo Lins não é um caso de ataque a uma “liberdade de expressão” genérica e sem fundamento, e sim parte de um processo mais amplo e necessário de interdição do discurso fascista brasileiro, do qual o padrão de bullying expresso por esse modelo de humor (o mesmo de Danilo Getilli, Jovem Pan, MBL e afins) é componente fundamental.

Não é a proibição, e sim o próprio discurso fascista que interdita outros modos de existência e que, por isso, é incapaz de existir em sociedade. Se nós de fato queremos uma sociedade livre de fascistas, nós teremos, sim, que persegui-los, encurralá-los, tornar indigna sua existência. Nesse sentido, eu quero é mais que o tal de Léo Lins se lasque todo. Porque ou nós estamos falando sério em acabar com o fascismo por aqui, ou aceitamos a bobageira de que é preciso dar tempo ao tempo e esperar a sociedade “evoluir”, assim como evoluímos da escravidão para as formas mais tacanhas, perversas e violentas de racismo à brasileira.

Segundo movimento: problematizar. A começar pelo modelo narrativo adotado. Ajudaria bastante se contássemos a história direito: Tu viu que tem um galego do olho claro que vive fazendo bullying com uma galera bem f*dida? Ele só pega os que estão bem na merda pra bater, covardão. Outro dia ele fez piada com a mãe de uma moça que está com câncer! E um bando de otário aplaudindo. E tu viu que ele foi tirar um maluco e tomou um tapa na cara? Pois é, também acho que apanhou foi pouco. Desse jeito, todos os pingos nos ís.

Mais eis que se opta por uma estratégia bem mais complexa, ainda que em aparência mais simples: o debate estético. Quais conteúdos são válidos em relação humor? O que pode ser objeto de riso ou escárnio? Qual seu limite ético? Um debate estético e, sobretudo, moral, cujas origens provavelmente datam dos primeiros exemplares do gênero. O próprio Aristóteles já se via as voltas com essa questão e desde então o assunto nunca saiu de pauta.

O “problema” do humor, desde uma perspectiva moral, é justamente o fato de que não existem conteúdos que não lhe possam ser atribuídos. Nenhuma lista de proibições e limites resiste à sua força corrosiva. O humor, para o bem ou para o mal, não pode ser domesticado, não importa o quão bem-intencionado se esteja. Ele é torpe, perverso, sujo e vil. Ou o humor é podre como a vida, ou é piada de toc toc. Ursinhos Carinhosos. Infantilização e fuga.

Cito um episódio verídico que, por razões óbvias, não entrou na edição final do Pentateuco. Conta-se que imediatamente após a leitura dos Dez Mandamentos por Moisés, um engraçadinho peidou. Geral riu – inclusive o próprio Moisés, na baixa. Mesmo que o episódio tenha sido sabiamente excluído da versão bíblica oficial, por séculos os católicos ficariam intrigados com os engraçadinhos. Não é para menos: por muito pouco a palavra de Deus não foi vencida pela mais antiga arma química produzida pelo homem. Eis o poder pustulento (e fétido) de uma piada bem aplicada.

Retire a perversidade do humor e mate o melhor humor brasileiro. Elimine piada com pobres e retire a mais importante fonte da cultura popular. Elimine piada com negros e acabe com a melhor tradição negra de humor. Sem perversidade contra os de baixo, não existiriam Chaves, Chaplin, Quixote, Cavalo Marinho. Apenas literatura de corte.

Em A Igreja do Diabo, Machado de Assis nos conta que ele, o capiroto em pessoa, percebendo que os cristãos gostavam mesmo era de pecar, decide fundar uma igreja em que tudo era permitido, exceto as virtudes cristãs. Sucesso rápido e imediato, como se pode imaginar. Com o tempo, no entanto, o diabo começou a perceber que muitos dos seus fiéis estavam praticando virtudes cristãs às escondidas. Respeitando pai e mãe, castidade, humildade, etc. Conclusão: o povo gosta mesmo é de pecar, a despeito dos conteúdos particulares dos vícios. O humor é parente do pecado, e tão logo concluída a listagem com os temas que não podem ser objetos de piada, veremos crescer exponencialmente o número de pecadores. Tampouco o humor possui ética: é uma arma química que se entrega a quem pode pagar mais.

Mas existem conteúdos de fato intoleráveis, certo? Pois é essa precisamente a bronca: para o humor, não – eis a fonte do seu poder, que serve a todos os espectros. Lembremos da placa na entrada de Auschwitz, que trazia a inscrição “o trabalho liberta”, a mais perversa das piadas que se poderia fazer em um campo de concentração. A propósito, esse é o território do humor de Léo Lins, que participa da mesma ordem de violência – humilhação de sujeitos fragilizados até o limite da destruição subjetiva (quanto pior o humilhado se sentir, mais sucesso terá tido o humorista, tal qual ocorre no bullying).

Um humor cujo teor de perversão é tão grande que adere ao próprio projeto de desumanização nazista, como seu mais perfeito complemento simbólico. Entretanto, eis o ponto: não existe como impedir o humor de aderir a horrores como esse, porque é próprio do humor a subversão de quaisquer modelos éticos. O humor é uma ferramenta e, como tal, pode funcionar nas mãos de todos os sujeitos, inclusive nazistas. Podemos gastar toda nossa saliva explicando por que fazer piada com a escravidão é errado. No final da explicação, alguém irá peidar. Da perspectiva do humor, o errado seria não fazer a piada (antes perder o amigo). Ele vive para desestabilizar discursos, quaisquer que sejam. Essa é a razão de ser de sua forma.

Frequentemente alguém cita como exemplo de “humor do bem” o seriado Chaves, como exemplo de humor que agrada toda família, livre de palavrões e, portanto, perversidade. Mas será mesmo que se trata de um bom exemplo? Ao contrário, não seria a base do humor do programa o ciclo de violência e humilhação distribuídos fartamente entre os mais pobres? Todo mundo é ferrado no programa, inclusive o capitalista proprietário (Senhor Barriga), dono de um cortiço caindo aos pedaços e que é tão liso que tem que ir pessoalmente cobrar o aluguel de seus inquilinos inadimplentes, além de ter um filho que estuda no mesmo colégio dos pobres.

Entretanto, é precisamente porque todo mundo é ferrado que os micropoderes se tornam ainda mais relevantes: o polo com maior capital econômico (Dona Florinda e Quico, que têm herança) e cultural (o professor Girafalles) humilha concreta e simbolicamente o polo com menos capital (Chiquinha, Chaves e o eterno símbolo do trabalhador precarizado latino americano, Seu Madruga). Esses, por sua vez, alternam entre humilhar quem é ainda mais fraco (Seu Madruga batendo nas crianças, Chiquinha dando golpe em todos), ou revidar com malandragem (Chaves batendo no Seu Barriga todos os dias). Existe muita perversidade em Chaves, e parte de sua força deriva de fazer humor com as condições de degradação próprias do contexto periférico latino-americano, em que não se ausenta uma visão aguda de luta de classes.

Então não podemos fazer nada em relação a esse modelo de barbárie travestida de piada? Devemos aceitar calados o argumento de que “é só humor”? Podemos, sim, fazer algo, desde que observemos com cuidado o alvo a ser atacado. Está fora do alcance do campo progressista livrar o humor de sua ligação orgânica com a perversão. E mais, não é desejável que o faça. É necessário que o humor seja estruturalmente próximo da violência para que ele possa continuar perigoso. Violência essa que pode assumir funções bastante positivas no trato com as dores do mundo.

Não por acaso o humor interno de comunidades marginalizadas é frequentemente ultra agressivo, deixando sujeitos como Leo Lins no chinelo. Quer encontrar as piadas mais pesadas contra judeus? Siga comediantes judeus. O mesmo vale para negros, pessoas com deficiência, etc. Saindo do horizonte simplificador dos “lugares de fala” (quem pode ou não o que) é óbvio que o humor nesses casos é o instrumento que permite lidar com uma dor que seria muito mais insuportável caso não se transformasse em objeto de riso. Em alguns casos, quanto pior, melhor, como se o sujeito tivesse finalmente poder sobre aquilo que o corrói. Matar a acidez do humor seria uma grande perversidade para com esses sujeitos. O humor é o purgatório que permite transitar do inferno ao paraíso.

Por mais que nos esforcemos, é simplesmente impossível fazer com que a perversidade do humor funcione apenas em sua dimensão “positiva”, seja lá o que isso signifique. Justamente porque é de perversidade que se trata, e mesmo perversão do bem é ainda pervertida. Daí os grupos que se esforçam por disciplinar o humor – à esquerda ou à direita – soarem sempre caretas e conservadores, como bedéis da moral e dos bons costumes. É próprio da perversão não dar a mínima para coisas que tanto apreciamos (ou fingimos apreciar) como “o lado certo da história”. A perversão quer estar do lado certo do chicote.

Só existe um jeito de controlar os usos do humor: assumindo o papel de polícia e impondo seu próprio conjunto de regras na base da porrada. Foi assim que historicamente o negro se tornou objeto de escárnio e o branco não. O poder colonial impôs, a força, o padrão de escárnio. Daí o sucesso que essa postura policialesca faz entre as minorias nas redes sociais, espaço em que podemos performar uma força que não necessariamente existe. O problema é que, nesse caso, o santo é de barro, não importando o quão assustadoramente bem lhe caia o uniforme. Afinal, sempre irá lhe faltar o elemento principal para passar da farsa à tragédia: o poder.

Como disse o parceiro Renan Oliveira na troca de ideia que gerou esse texto, o grande desafio da esquerda hoje é forjar um modelo antifascista de perversão, ao invés de fantasiar sua própria utopia como um espaço livre de todo mal, fingindo-se de anjo barroco. Cristãos à revelia.

“Soca fofo” é uma expressão humorística tão boa porque instaura uma tensão perversa: ao mesmo tempo que atua diretamente sobre a fantasia de virilidade masculina para desmontá-la, afirma indiretamente a positividade da macheza viril que a princípio se pretendeu atacar. Soca forte é a sua fantasia obscena, que está na base da violência a qual se pretende combater. É nessa tensão irresolvível e pouco preocupada com a ética (pois existe algo maior em jogo) que está a sua força. O humor realiza o trabalho sujo que precisa ser feito. Por mais progressistas que sejam nossos princípios, precisamos todos dessa capacidade do humor de chafurdar na escrotidão humana.

Dito isso, eu não acho que Léo Lins não teve o que mereceu, ou que suas violências devam ser ignoradas sob o verniz tipicamente fascista do “é só uma piada”. Dizer que todo humor é perverso não significa que todas as suas perversidades sejam justificáveis. Nesse caso, a criminalização dos vídeos violentos do comediante faz parte de um contexto mais amplo de criminalização do fascismo – portanto, não fazem sentido os temores liberais de que esse processo irá se estender a todo tipo de humor. O que se está atacando é o padrão fascista de existência, que pressupõe a morte do Outro. Entretanto, é apenas quando aceitamos a articulação do humor ao mal como um dado positivo – ou seja, quando adotamos um ponto de vista menos cristão e mais próximo da dialética de Exu – que os modos de organizar a luta e seus meios mudam completamente.

Como foi que aquela piada no letreiro de Auschwitz foi interditada como imoral e banida de circulação, ao menos por um bom tempo? Ao que parece foi o nazismo, e não a piada que se tornou indecente e imoral. Essa é o único caminho. Substituir a piada por placas mais realistas ou piedosas não resolveria o problema dos judeus. Tornar o nazismo imoral sim.

É o Léo Lins e o seu modelo de bullying fascistinha que deve ser tornado imoral, indecente, indigno de existir. Um movimento que exige uma ressignificação profunda do nosso tecido social. E não, não se resolve o problema com a utopia liberal de uma democratização de um modelo de educação de primeiro mundo. O que vem acontecendo na Europa com o recrudescimento dos casos de violência étnica e racial é a prova de que o que resolve racismo é acabar com os racistas, e não educá-los.

*Acauam Oliveira é professor de literatura brasileira e afro-brasileira da Universidade de Pernambuco.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Löwy Ricardo Fabbrini Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bento Prado Jr. Rodrigo de Faria Andrew Korybko Paulo Fernandes Silveira Luís Fernando Vitagliano Elias Jabbour Eleonora Albano Flávio Aguiar José Raimundo Trindade Gerson Almeida Anselm Jappe Michael Roberts Francisco Pereira de Farias Ronaldo Tadeu de Souza Alysson Leandro Mascaro Celso Frederico Andrés del Río Paulo Martins Gilberto Maringoni Eduardo Borges Daniel Brazil Salem Nasser Atilio A. Boron Afrânio Catani José Geraldo Couto Ronald León Núñez João Feres Júnior Marcelo Guimarães Lima Ari Marcelo Solon Osvaldo Coggiola Leonardo Boff Maria Rita Kehl João Adolfo Hansen Lucas Fiaschetti Estevez Milton Pinheiro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ronald Rocha Vladimir Safatle Denilson Cordeiro Alexandre Aragão de Albuquerque Mariarosaria Fabris Bruno Machado Thomas Piketty Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fernando Nogueira da Costa Jean Marc Von Der Weid Valerio Arcary Alexandre de Freitas Barbosa Érico Andrade Otaviano Helene Ricardo Abramovay Eliziário Andrade Samuel Kilsztajn Daniel Costa Jean Pierre Chauvin Leda Maria Paulani Eugênio Trivinho João Carlos Salles Tadeu Valadares José Dirceu Berenice Bento Marcelo Módolo João Paulo Ayub Fonseca Everaldo de Oliveira Andrade Gilberto Lopes Luis Felipe Miguel Yuri Martins-Fontes Bernardo Ricupero Armando Boito Luiz Renato Martins Juarez Guimarães Leonardo Sacramento Kátia Gerab Baggio Lorenzo Vitral Luiz Eduardo Soares Airton Paschoa Luiz Carlos Bresser-Pereira Marilia Pacheco Fiorillo Antonio Martins Claudio Katz Boaventura de Sousa Santos Renato Dagnino Eleutério F. S. Prado Tales Ab'Sáber Luiz Werneck Vianna Ladislau Dowbor Marilena Chauí Dennis Oliveira Antônio Sales Rios Neto Manchetômetro Celso Favaretto João Carlos Loebens José Costa Júnior Heraldo Campos Luiz Marques Paulo Nogueira Batista Jr Valerio Arcary Paulo Sérgio Pinheiro André Márcio Neves Soares Carlos Tautz Liszt Vieira Ricardo Antunes Jorge Branco Remy José Fontana Henry Burnett Chico Alencar João Lanari Bo Luiz Bernardo Pericás Igor Felippe Santos José Machado Moita Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Antonino Infranca Paulo Capel Narvai Luciano Nascimento José Luís Fiori Marcus Ianoni Priscila Figueiredo Benicio Viero Schmidt Marjorie C. Marona Francisco Fernandes Ladeira Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Musse Annateresa Fabris Eugênio Bucci Henri Acselrad Flávio R. Kothe Alexandre de Lima Castro Tranjan Gabriel Cohn Manuel Domingos Neto Marcos Aurélio da Silva Lincoln Secco Chico Whitaker Luiz Roberto Alves Walnice Nogueira Galvão Jorge Luiz Souto Maior Fábio Konder Comparato André Singer Vanderlei Tenório Matheus Silveira de Souza Dênis de Moraes Leonardo Avritzer Daniel Afonso da Silva Sandra Bitencourt Tarso Genro Slavoj Žižek Caio Bugiato João Sette Whitaker Ferreira Rafael R. Ioris Vinício Carrilho Martinez Marcos Silva Michel Goulart da Silva Mário Maestri Rubens Pinto Lyra Fernão Pessoa Ramos Julian Rodrigues José Micaelson Lacerda Morais Carla Teixeira

NOVAS PUBLICAÇÕES