O grande vencedor do neoliberalismo

Imagem: Evan Velez Saxer
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Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU*

Quem venceu a Era neoliberal foi o país que não o seguiu: mas realizou uma liberalização de forma planificada e seletiva, sob a hegemonia política do PC chinês

Giovanni Arrighi, em O Longo Século XX,[i] defende que o capitalismo histórico se desenvolve em ciclos sistêmicos de acumulação, alicerçados numa base estatal/territorial/securitária de um lado, e numa base econômico/financeira de outro. Numa complementariedade entre poder e dinheiro (duas palavras que estão no subtítulo do livro), que se consubstanciaram no capitalismo na forma de Estados e mercados: os dois lados da dança histórica da estruturação do capitalismo.

Quanto maiores forem as somas, os interesses, as riquezas envolvidas pelas atividades mercantis, maior terá que que ser a musculatura securitária dos Estados zeladores de tais interesses: seja sob as formas jurídicas/políticas, seja pela forma militar/policial.

Os invocados ciclos sistêmicos de acumulação do capitalismo histórico costumam ter num mesmo lócus os eixos estatais e mercadológicos desse casamento. Exceção feita ao primeiro ciclo sistêmico de acumulação, no qual o agente estatal estava geograficamente distanciado do agente mercantil: era o que Giovanni Arrighi chamou de ciclo genovês de acumulação, o primeiro ciclo do capitalismo histórico, em que os agentes mercantis eram os genoveses (cidade originária de Cristóvão Colombo), e os agentes estatais as monarquias ibéricas de Portugal e Espanha.

Arrighi divide os ciclos sistêmicos em: (i) ciclo genovês[ii] (séc. XIV-1648); (ii) ciclo holandês[iii] (das guerras dos 30 anos, 1618-1648, até às guerras napoleônicas); (iii) 3) ciclo britânico[iv] (de 1815, e o Congresso de Viena, até as duas Guerras mundiais, de 1914-1918/1939-1945); (iv) ciclo americano[v] (de Bretton Woods desde 1944- até…???).

Vivemos desde o fim do regime de Bretton Woods (1971/1973) um processo acelerado de financeirização dos interesses norte-americanos, ou o que Giovanni Arrighi chamaria de fase M-D (mercadoria-dinheiro), de maior liquidez da acumulação capitalista centrada nos EUA. Foi a partir dos anos 1970 que os EUA turbinaram seu setor financeiro, sob a ideologia neoliberal, enquanto sua burguesia, para enfraquecer seus sindicados, iniciou um deslocamento de seu setor industrial para outros países, sobretudo para a China, reconhecida pelo presidente Richard Nixon, entre 1971/1973, como o agente estatal a ocupar a cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, até então ocupado por Taiwan. Este processo de reconhecimento da China comunista pelos EUA foi concomitante ao fim do padrão-ouro de Bretton Woods

Com essa abertura para um deslocamento do setor produtivo norte-americano em direção à China, bem como o reconhecimento definitivo do Estado chinês, sob o partido comunista, como agente político em todas as maiores instâncias planetárias, estava dada a largada para o salto do dragão chinês em direção às vanguardas produtivas e tecnológicas do século XXI.

Mas os wizard of Oz do ocidente, em governos, mercados e universidades, não visualizaram a decolagem do dragão asiático. Cegos à realidade histórica, contaminados pela ideologia enviesada que propagavam, acabaram acreditando nas mentiras que pregavam. Entre preconceitos e ignorâncias contra asiáticos, vistos como “copiadores mecânicos”, sem capacidade de inovação. Junto ao neoliberal projeto de reduzir custos de produção para aumentar os lucros, e oferecer produtos mais baratos aos americanos empobrecidos, com cada vez menos empregos industriais disponíveis, a elite dos EUA acreditou no dogma de que a maximização dos lucros é sempre a melhor opção… Para assim se beneficiar incrivelmente, como 1% que são da sociedade, enquanto destruiu a solidez das bases industriais do, até os 1980, histórico supremacismo econômico dos EUA.

Os EUA, e sua ideologia neoliberal, abriram as portas de uma oportunidade histórica para Pequim, e a elite do partido comunista chinês subiu sem pestanejar neste cavalo selado que passou em sua frente. Como disse Deng Xiaoping: “enriquecer é glorioso”.

Ideologia neoliberal cega para a história

Mas todo esse processo histórico foi narrado pela mídia ocidental como uma “vitória” do neoliberalismo, um caminho imposto e defendido como único, tina (there is no alternative), com níveis de obsessão ideológica ousando invocar um “fim da história”: a idolatria dogmática do neoliberalismo, com sua negação histórica e obsessão dedutivista pelas teorias e dogmas liberais (“a perfeita eficiência dos mercados”, a “superioridade das escolhas de menor custos”, a obsessiva “maximização dos lucros como o único farol”…) tudo isso repetido, desde 1980, tornou-se uma neoescolática econômica.

Assim como no séc. XVIII a filosofia escolástica, repetindo um aristotelismo petrificado nas universidades caducas da Europa, replicado como dogmas nas cátedras, cegos aos avanços da realidade, enquanto o Iluminismo explodia nas crescentes publicações do mundo real do Século das Luzes, o neoliberalismo (gerontoliberalismo[vi]) tornou-se ao fin de siècle XX um dogma neoescolástico, negando a história, a realidade, e alijando da ciência a dimensão indutivista dela. Foi o neoliberalismo uma anti-ciência, ultra ideológica, com seu negacionismo histórico.

Pois embriagados com a queda do muro de Berlim, as instituições do pós Bretton Woods (FMI e Banco Mundial) impuseram a única saída do neoliberalismo pelo mundo. Mas não sobre todo o mundo… A América Latina foi de fato sequestrada por esta ideologia colonial, com o Brasil esquecendo o tripé de JK (estatais, multinacionais, empresas privadas nacionais) que foi a base estrutural do período de maior desenvolvimento industrial da história brasileira. Assim México, Brasil, para não falarmos da Argentina, fomos capturados pela doutrina anti-industrial do neoliberalismo, com a submissão dos destinos produtivos destes países aos interesses dos oligopólios privados internacionais, chamados orwellianamente de “mercados”.

Mas o grande vencedor do neoliberalismo não foi nenhum país que seguiu essa receita de bolo neocolonial, mas foi o estado governado por um partido comunista: a República Popular da China. E tal país não seguiu cegamente o neoliberalismo: longe disso. A abertura chinesa, iniciada em 1978, foi a abertura da China para as multinacionais, mas com transferência tecnológica acordada, fora as engenharias reversas, e piratarias, feitas fora das planilhas… E, obviamente, as empresas estatais chinesas não foram privatizadas, mas foram modernizadas e ampliadas, enquanto ocorria a liberalização de áreas econômicas não estratégicas para uma exploração privada de uma burguesia interna.

Ou seja: o sucesso da “abertura” chinesa não foi a receita do FMI, não foi neoliberal, mas foi uma adaptação, em escala chinesa, do nosso conhecido tripé de JK. Com planejamento industrial, demográfico, tecnológico e militar.

Quem venceu a Era neoliberal foi o país que não o seguiu: mas realizou uma liberalização (em relação ao estatismo econômico ali praticado anteriormente) de forma planificada e seletiva, sob a hegemonia política do Partido Comunista da China: quem venceu foi a China.

Estados e mercados: poder e riqueza

Só de forma esquizofrênica o discurso neoliberal demoniza os Estados, pois os mercados na realidade gostam mesmo de um Estado forte lhes dando proteção e garantias. O melancólico exemplo do Brasil neoliberal nos mostra qual é o setor mais dinâmico da economia hoje: o agrícola. Por causa das vantagens comparativas??? Não, mas por causa da EMBRAPA: a estatal brasileira do agronegócio fazendo investimentos em ciência e tecnologias agrárias que, obviamente, os empresários do setor não fazem de forma nenhuma. O setor agrícola no Brasil prospera por ter uma estatal a lhe direcionar investimentos em tecnologias de longa maturação, que a iniciativa privada nem sonharia em realizar.

Pois em escala planetária foi justamente na China, com seu estado central realizando planejamentos quinquenais (como JK), é que os investimentos produtivos se encaixaram, gerando um celeiro produtivista global. Gerando a pergunta deste texto: estaríamos entrando num ciclo sistêmico de acumulação chinês do capitalismo histórico mundial???

Giovanni Arrighi indica sua suspeita nessa direção, antevendo a financeirização dos EUA e a ascensão industrial do leste da Ásia e da China.

O que se destaca aqui não é nem discutir se haverá ou não um ciclo chinês, pois ele já ocorre, mas destacar a armadilha militarista que se desenha neste caminho. Pois em 2023 se comemora os 10 anos do projeto chinês Belt and Road Iniciativa (BRI) com 155 países participando desta alavancagem produtiva chinesa em escala global. Enquanto do outro lado o mundo se vive o trauma da guerra na Ucrânia desde fevereiro de 2022, e em outubro de 2023 o monstro da guerra ergue também seus chifres em Israel e na Palestina.

Seguindo Maquiavel sobre o poder como uma combinação de consentimento e coerção, com a coerção exercida pela força e o consentimento pela liderança moral de uma concordância estratégica, óbvio está que a escalada do uso da força pela OTAN é sinal de uma falta de concordância planetária com a narrativa e projeto do Atlântico Norte: é sinal de crise da hegemonia americana. O crescente descolamento produtivo chinês do centro financeiro norte-americano, com a China tendo suas próprias plataformas digitais (ligadas ao estado chinês, assim como as americanas são ligas ao governo dos EUA), e provando ter a China completado seu catching up produtivo, parece alimentar um desarranjo crônico na governança global do Sistema Mundial Moderno neste século XXI.

Há no atual distanciamento EUA/China, uma replicação numa escala ampliada e crítica, de um debate entre produtivismo e militarismo ocorrido já no séc. XIX, entre autores do American System,[vii] como Daniel Raymond e Henry Carey, no qual esses autores enxergavam os EUA de então como uma força produtivista em ascensão e a Inglaterra como uma força militarista conservadora. Hoje a China se ergue como a maior força industrial, e EUA como a maior força militar. Indicando um desarranjo na governança sistêmica, o que nos projeta numa crise de transição.

No modelo arriguiano as transições de ciclos sistêmicos se fazem por guerras. Costumam em tais transições ocorrer guerras crônicas: as Guerras dos 30 anos (1618-1648), as guerras napoleônicas (1792-1815), e as I e II Guerras Mundiais (de 1914 até 1945). Depois de Hiroshima parecia ter sido excluída a possibilidade de guerra direta entre potências nucleares, mas mesmo esse abismo militar parece estar se aproximando nesta quadra histórica, pois se entrou num período de confronto aberto, típico de uma crise transição sistêmica.

Aliança China-Rússia

Mas o curioso é que se desenhou no horizonte um casamento entre agentes político/econômicos análogo ao do primeiro ciclo sistêmico arriguiano, quando os agentes políticos ibéricos deram a segurança militar aos agentes capitalistas genoveses. Hoje os russos parecem cumprir o papel militar dos príncipes ibéricos, enquanto os chineses cumpririam o papel capitalista produtivo dos genoveses.

Aos socialistas e utópicos isso poderia ser o sinal do fim da Era do capitalismo histórico: este sistema teria começado de um casamento entre forças militares ibéricas, e forças capitalistas genovesas, e caminharia para seu fim com um casamento análogo entre russos e chineses, equilibrando um ciclo diárquico(russo-sino) de acumulação capitalista chinês, em direção a uma superação do capitalismo.

Contudo, sendo menos otimista, vive-se uma crise de transição sistêmica, e parece que em vez de uma superação sistêmica, apenas viveremos uma crise crônica sem solução definitiva de forma prolongada, pela dificuldade de guerra direta(como foi nas outras transições) pela presença de armas nucleares. Crise vinda desde 1970, mas que certamente entrou em outro nível de periculosidade militar na terceira década do séc. XXI. Uma crise crônica, lastimável para o mundo, mas que para o Brasil pode ser proveitosa, se tivermos uma centralidade política e tirarmos vantagens dos dois lados em disputa, como Vargas fez entre EUA e Alemanha na última transição sistêmica (o Brasil é uma potência alimentar e energética, rico em recursos minerais, e está longe dos epicentros dos conflitos, centrados na Eurásia).

Nesta disputa em curso a China não quer carregar o fardo militar sozinha, como a URSS fez no séc. XX. Os EUA buscam criar uma nova “cortina de ferro”, e caso se vejam perdendo a corrida tecnológica, partem para o ataque, como já estão fazendo: boicotes contra a Huawei, contra a tecnologia 5G e 6G chinesa, proibição do governo de Joe Biden de investimentos norte-americanos em toda a área de alta tecnologia na China, uma operação quase militar contra os semicondutores chineses… Os EUA buscam a “contenção” da China[viii]. A guerra tecnológica já está ardendo. Mas os EUA buscam, além disso, jogar a China numa corrida armamentista também, o que atrasará os ganhos sociais do avanço econômico e tecnológico vivido pelo país asiático. Causando assim o que declaram que fazem: contendo o avanço chinês em todas as frentes.

Assim sendo, a China lidera a joint venture militar/econômica com os russos, numa parceria “sem limites”, para articular uma maior capacidade de resistência à política estadunidense de contenção contra a China. A luta será longa, e a parceria estratégica China/Rússia é uma estratégia de resistência. Resta saber como os restantes dos BRICS irão se equilibrar neste conflito que promete muito sangue, e muito lucro aos que posicionarem estrategicamente.

BRICS? Existe mesmo o BRICS?

Em todo o caso, veremos como o fórum de boa vontade econômica, que é o BRICS, uma organização em construção, indefinida e inorgânica, reagirá ao crescimento da onda de guerras. Lembrando que o BRICS não têm nenhum acordo militar… Ou dizendo diretamente: o BRICS com cartas para jogar são China e Rússia. E ambos têm sim parceria militar. Resta saber como reagirão os outros membros do clube quando caso, hipoteticamente, EUA invadissem o Irã…por exemplo. Veremos os limites da boa vontade e da colaboração quando os canhões soarem mais perto.

Voltando ao Giovanni Arrighi, em seu sistema de governança dos ciclos sistêmicos há um poder estatal/econômico hegemônico no centro, com um círculo de satélites a volta: países centrais, países semiperiféricos, e países periféricos. O Brasil encontra-se no andar mediano, e tem uma tradição de soft power, e defesa do multilateralismo, que o potencializa como mediador nessa era de conflitos que se desenha. Assim é muito promissor o posicionamento do Brasil nos BRICS. Como já foi aqui defendido: o Brasil precisa retornar à estratégia de Getúlio Vargas na crise sistêmica entre EUA e Alemanha do século XX, e buscar no século XXI o máximo de independência, para tirar o máximo de proveito dos conflitos entre EUA e China.

Contudo, há na extrema direita atual uma postura fanatizada pró Israel e pró EUA, trabalhando ativamente para impedir que o Brasil aproveite sua posição estratégica nesta quadra histórica, em que muitas vantagens e a consolidação de um salto desenvolvimentista, pode ser alcançado pelo Brasil. Pode ser alcançado desde que haja um pacto político nacional mínimo. Coisa que, diante do que se vê no nível rastejante do Congresso Nacional, na falência de um acordo político mínimo, na completa falta de qualquer senso coletivo da “elite” econômica do Brasil… infelizmente, mostra-se improvável.

Tudo o que se encontra à direita do PT trabalha contra qualquer projeto nacional minimamente progressista. E tais forças mostram-se consolidadas para impedirem que o Brasil faça neste século XXI, numa escala muito maior, o que Vargas conseguiu durante o confronto EUA e Alemanha.

Conclusão

Relembrando o fim da história de Hegel, que defendia a humanidade atingindo o equilíbrio entre as forças, com a universalização do liberalismo, percebe-se hoje no Atlântico norte a ânsia por uma nova guerra fria, e quente também, enquanto paradoxalmente o presidente Putin foi o último a pedir uma área de livre comércio “desde Vladivostok até Lisboa”. Realmente o fim da história, assim como o fim do capitalismo, só viria com a superação do controle do complexo industrial-militar sobre os governos (logo, pela estatização universal destes complexos), e com a busca de uma Paz perpétua kantiana: com o equilíbrio de poder e força entre as nações. Para “chegar àquela igualdade de coragem e força que, inspirando o temor mútuo, constitui o único fator capaz de intimidar a injustiça das nações (…).”[ix]

Ver-se-á se será alcançado tal equilíbrio militar entre os povos em direção a uma paz e prosperidade universais, se encontraremos a paz perpétua sob um equilíbrio da disseminação nuclear dissuasória, ou sob um apocalipse nuclear mesmo.[x] Mas o mais provável é vivamos numa guerra perpétua.

*Cristiano Addario de Abreu é doutor em história econômica pela USP.

Notas


[i] Arrighi, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Editora Unesp, 1996.

[ii] Idem p. 111

[iii] Idem p. 130

[iv] Idem p. 163

[v] Idem p. 277

[vi] https://gmarx.fflch.usp.br/boletim-ano2-09

[vii] https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-11082023-125212/pt-br.php p. 257

[viii] https://jornal.usp.br/artigos/a-politica-externa-dos-eua-para-a-china/

[ix] Smith, Adam. A riqueza das nações. Nova Fronteira, 2023.

[x] https://karaganov.ru/en/how-to-prevent-a-third-world-war-2/


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