A ideologia da privatização

Imagem: Nithin PA
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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa?

O orçamento de uma empresa estatal, como a SABESP, precisa equilibrar as receitas com o conjunto das despesas: custos de remuneração do trabalho e de pagamento a fornecedores e de impostos. Se possível, convém ainda a formação de poupança para novos investimentos, para diminuir a dependência de empréstimos.

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa? As alternativas, não excludentes entre si, são aumentar as receitas, aumentando o preço de seus serviços ou produtos, ou diminuir os custos trabalhistas, operacionais, fiscais e de investimento.

No caso de um setor monopolístico, como é o serviço de água e esgoto da grande São Paulo, o aumento de preços é solução simples, se houver apoio político. Não é o caso de uma empresa como a antiga Vale do Rio Doce, hoje Vale, que vende ao mercado mundial e, portanto, não pode controlar os preços de seus produtos. Em todas as situações, é relevante considerar as alternativas de corte de despesas.

Em qualquer área da economia, a primeira providência dos novos acionistas costuma ser o lançamento de um plano de demissão voluntária. No longo prazo virão as demissões involuntárias e a redução dos salários reais.

Em geral, reduzir a mão de obra, mantendo a produção, exige acumulação de funções pelo trabalhador e intensificação do processo de trabalho, de efeitos limitados. Mas a mão de obra e outros gastos podem ser drasticamente reduzidos, sem conseqüências imediatas, nos setores de manutenção e de prevenção de acidentes.

Existem, é claro, as conseqüências de longo prazo. O exemplo mais recente é o apagão da ENEL na grande São Paulo, que afetou quatro milhões de residências, durando até quatro ou cinco dias em algumas localidades. Antes, o apagão do Amapá durara todo um mês. Mais recentemente, os cariocas tiveram a surpresa e o desgosto de ver as torneiras de suas casas verterem um líquido marrom e mal cheiroso. Com o rompimento da barragem de Mariana, a Vale, que retirara o Rio Doce do nome, retirou toda vida do Rio Doce até a foz, adentrando o oceano, depois de enterrar moradores no caminho da lama. Mas o rompimento da barragem de Brumadinho matou muito mais operários, mais que duas centenas.

Não são muito divulgados os números de acidentes de trabalho no Brasil; sabe-se que o número total de mortos é cerca de 3000 por ano. Ainda menos divulgada é a tendência de aumento de acidentes de trabalho após as privatizações, desde as primeiras, como a COSIPA em São Paulo.

A redução de pagamentos a fornecedores, mantendo a produção, demanda aquisição de insumos e serviços mais baratos, podendo comprometer a qualidade do produto ou serviço que oferece e, eventualmente, sua aceitação no mercado. Mas, no caso de empresa detentora de monopólio, é uma alternativa sedutora para os acionistas.

Redução de impostos é sempre buscada por empresários capitalistas, indo desde sonegação até sofisticada advocacia tributária e eficiente lobby político. Uma prática corrente é atrasar o pagamento de impostos e barganhar descontos no pagamento dos atrasados, que o Executivo acata pela urgência em obter recursos.

Novos investimentos seriam a única forma de aumentar a produtividade física do trabalho, pela incorporação de tecnologia. Afinal, o discurso privatista exalta a eficiência como virtude da economia privada. Mas novos investimentos são as despesas mais fáceis de serem cortadas, pois sua eliminação não encontra resistências. E são as despesas cujo retorno financeiro é o mais distante.

Portanto, uma análise lógica do orçamento, corroborada por fatos bem conhecidos, torna evidente que as privatizações costumam ser desfavoráveis para os consumidores, os trabalhadores, o meio ambiente e a arrecadação fiscal. A rigor, só são favoráveis para os novos acionistas.

Mas a ideologia da privatização abranja muito mais pessoas do que o número dos diretamente interessados, por causas conhecidas. Bancos e outras empresas do mercado financeiro, que têm profundo interesse nas privatizações, no desmonte do poder estatal, no esvaziamento do poder trabalhista, etc., são anunciantes importantes em toda imprensa comercial, além de serem acionistas, isto é, donos de alguns importantes órgãos. Esta imprensa transforma os interesses do mercado financeiro nos dogmas que tenta inculcar a seu público, e com eles pressionar os políticos.

Entretanto, alguns políticos se comportam com demasiada volúpia privatista. Um governante chega a comprometer seu próprio futuro político, insistindo na privatização mesmo quando o povo já se apercebeu do dano. Esforçam-se pela venda como dedicados corretores das riquezas da Pátria, mas não se comportam como tal.

Os corretores comerciais cobram percentagem do preço de venda, e se esforçam por valorizar seu produto. Os corretores da pátria comportam-se ao contrário. Acatam o discurso difamatório do que pretendem vender, de que as estatais seriam ineficientes por definição. E vendem por baixo. Aceitam em pagamento moedas podres, títulos desvalorizados, pelo valor nominal. Aceitam preços de venda tão baixo quanto foi a Vale do Rio Doce, vendida pelo preço correspondente ao faturamento da empresa em três meses, ou a Telebrás, pelo preço correspondente ao investimento do governo na empresa nos três anos anteriores, ou, mais recentemente, a Refinaria Landulpho Alves, vendida por metade do valor de mercado.

Que explicação haveria para tamanha volúpia privatista? Uma hipótese é que tais corretores de Pátria esperariam receber alguma taxa de corretagem, informal, um percentual do quanto a empresa foi desvalorizada. Neste sentido, o livro A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr, pesquisa a circulação financeira entre empresas off-shore de montantes com indícios de terem relação com as privatizações da Vale do Rio Doce e da Telebras. Já no caso da Landulpho Alves, a taxa de corretagem, tudo indica, foram as jóias das Arábias.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]


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