Independência e morte, bradam as polícias do Rio de Janeiro

Dora Longo Bahia, A polícia vem, a polícia vai, 2018 Acrílica sobre vidro laminado trincado 50 x 80 cm
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Por LUIZ EDUARDO SOARES*

O enclave policial é refratário à autoridade política e nenhum governador jamais comandou (plena e efetivamente) as polícias estaduais

O título exato deste artigo deveria ser mais extenso: As polícias fluminenses, por meio de seu porta-voz, o governador, proclamam a independência e declaram que o Rio de Janeiro passa a ser território livre dos limites constitucionais. Explico.

A transição parcialmente tutelada pelos militares impôs restrições ao processo constituinte e nos legou dois artigos (142 e 144), que são sarcófagos de nossa história: mumificaram as forças armadas e as polícias, tais como existiam no regime ditatorial, bloqueando os ventos das mudanças que a democracia emergente soprava. Resultado: criaram-se dois enclaves institucionais, refratários à autoridade política, civil, republicana. Por isso, o genocídio de jovens negros e de jovens pobres, nos territórios vulneráveis, ante a inércia cúmplice do Ministério Público, o imobilismo da Justiça, o endosso de políticos -não só de direita-, o aplauso de setores da mídia e da opinião pública, e a anuência das demais instituições, das quais se diz, ironicamente, que “funcionam”.   

Também por isso, o encarceramento em massa de pequenos varejistas do comércio de substâncias ilícitas, fruto do casamento perverso entre nosso modelo policial (a jabuticaba que oferecemos ao almanaque mundial de bizarrices) e a hipócrita e racista lei de drogas. No país sem investigação, reina o flagrante, único meio de as PMs realizarem (dado que são constitucionalmente proibidas de investigar) o que creem ser sua missão precípua: prender. A grande ferramenta de uma polícia ostensiva destinada a prender em flagrante é a lei de drogas: a pescaria, evidentemente, se resume a peixes pequenos, operadores do varejo. Nada a ver com crime organizado e grandes negócios transnacionais, ou com exercício despótico de poder armado sobre territórios e comunidades. A maioria desses varejistas está sendo presa sem portar armas, praticar violência ou apresentar laços orgânicos com organizações criminosas. 

O sistema em que se engatam as máquinas de morte, perpetradoras do banho de sangue (no estado do Rio, 20.791 pessoas foram mortas por ações policiais, entre 2003 e 2022, e menos de 10% dos homicídios foram punidos), é ainda mais perverso: posto que os estados não cumprem a Lei de Execuções Penais e as unidades penitenciárias são dominadas por facções criminosas, os quase 40% dos 900 mil presos (entre as mulheres, 63%), que cumprem pena por tráfico ou aguardam julgamento sob esta acusação, precisam contar, para sobreviver, com a proteção das facções que mandam nos cárceres. O preço será pago depois da volta à liberdade, sob a forma de lealdade e prestação de serviços. Ou seja, o país está contratando violência futura e fortalecendo as facções, ao custo da vida de gerações e suas famílias. É o que a famigerada guerra às drogas está produzindo, além de sofrimentos indescritíveis às comunidades.

Como o enclave policial é refratário à autoridade política, nenhum governador jamais comandou (plena e efetivamente) as polícias estaduais, embora a magnitude e as implicações dessa impotência variem no espaço e no tempo. O estado do Rio de Janeiro atingiu a culminância desse processo de autonomização inconstitucional das polícias: o governador passou a ser comandado pelas polícias. Atua não só como seu para-choque político e representante corporativo, justificando todos os atos mais brutais, até mesmo as chacinas, como acaba agora de assumir posto ainda mais lamentável: tornou-se porta-voz da arrogância e da autossuficiência policiais, confrontando decisão do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da ADPF 635. Não satisfeitas em descumprir outras determinações judiciais, as unidades policiais especiais, BOPE (da PM) e CORE (da Polícia Civil, mas militarizada, desafiando também por isso a Constituição), se recusam a adotar o uso de câmeras corporais em operações nas favelas. Trata-se de dispositivo importante, embora limitado, para a redução de execuções extrajudiciais, como a experiência paulista tem demonstrado. E o governador foi o emissário dessa resistência.

É indispensável para o futuro do que nos resta de democracia que se entenda o seguinte: o que está em jogo não é apenas o emprego ou não das câmeras pelas unidades policiais especiais; o que está em jogo é a preservação e a reprodução crescentemente blindada do enclave institucional, refratário à autoridade republicana. Se a liderança política sucumbiu, no Rio, está nas mãos do STF a oportunidade de promover a autoridade republicana, submetendo as polícias e rompendo o enclave. Os movimentos sociais têm se empenhado há muitos anos nessa luta. Com a tácita declaração de guerra do governador ao Poder Judiciário -e ao bom senso minimamente civilizado-, caberá ao Supremo decidir se, além de República das Milícias, o Rio vai se tornar também a República das corporações policiais autônomas e independentes, alheias à Constituição e livres para aprofundar as iniquidades e o racismo estrutural. 

*Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. Ex-secretário nacional de segurança pública. Autor, entre outros livros, de O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019) e Dentro da Noite Feroz; o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020).


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