The Old Oak

Frame do filme The Old Oak
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Por RAQUEL VARELA*

Considerações sobre o novo filme de Ken Loach

Yara chega com uma máquina fotográfica, que se parte depois de ser-lhe arrancada à força por um jovem lumpen, alcoólico, símbolo do desemprego, que grita impropérios contra os refugiados sírios numa comunidade de ex-mineiros, no norte da Inglaterra. O laço – a arte e a memória (que a máquina representa) – parte-se ali na primeira cena: a classe trabalhadora, vítima da guerra militar na Síria e da guerra social do Estado e das classes proprietárias ingleses, está em guerra entre si. O seu laço – “a memória da força que têm e nem sabem que têm” – parte-se quando a máquina cai ao chão. Sem conhecer a nossa história não somos nada.

Começa assim The Old Oak, de Ken Loach, aclamado realizador, socialista, da tradição trotskista (oposição de esquerda contra o estalinismo e a burocracia sindical do Labour Party). Ken Loach, aos 87 anos, deita ao chão a xenofobia, as guerras, a desesperança e também, magistralmente, o identitarismo pilotado pelo Partido Democrata norte-americano e espalhado com “boas intenções” pela ONU, as agências de igualdade, o combate “ao discurso de ódio”. Aqui toda a narrativa é universalista contra o multiculturalismo, de classe contra o identitarismo, de auto-organização contra o Estado, de organização política e sindical contra a solidão, recheada de confronto de classes.

Aqui o caminho é estratégico, Ken Loach diz que é imprescindível a superação contra a fragmentação desta classe, que, sem consciência (sem conhecer o seu passado), se deixa enganar e dividir: o encontro belo, afectuoso, entre iguais, entre uma jovem mulher síria, e um homem, mais velho, filho de mineiros ingleses: quando o mundo de uma esquerda sem memória clama por chavões de “sul global”, “sindicalista machista branco”, “tolerância”, “caridade”, Ken Loach faz um filme sobre o imperialismo, a unidade da classe trabalhadora no coração do capitalismo, a Inglaterra, e toma partido contra os consensos, pela solidariedade de classe – contra as ideias de esquerda identitárias. É um filme de política concentrada: o grito do filme é “trabalhadores de todo o mundo organizei-vos e uni-vos!” e é nos dado na forma do estandarte mineiro, agora redesenhado por trabalhadores islâmicos – que ao assistencialismo da “fé, esperança e caridade”, ostentam “força, esperança e resistência”.

Pelo meio há de tudo. Está lá tudo. A destruição do modo de vida quando não se tem emprego certo com direitos, o isolamento das crianças, sós frente aos computadores e telemóveis, as doenças, a obesidade, a falta de dentes, a pele flácida, as depressões, a falta de alimentos (sim, há fome em grande parte dos trabalhadoras da Europa e Ken Loach mostra-o, num realismo que vai até aos ossos), até à tristeza de quem só tem um cão por companhia, por amigo. Há a cena desse cão Marra – nome de camarada para os mineiros –, esse mesmo que faz companhia na solidão, morto brutalmente por dois pitbulls, que simbolizam a milícia fascista.

E há o contrário de tudo isso. A defesa do emprego e não de subsídios, o trabalho como definidor de quem somos, direito humano universal, o encontro entre comunidades, fora das igrejas (islâmica ou cristã, ambas ao juntarem-se em solidariedade dão um passo para ser mais fortes e por isso mais afastados da necessidade de qualquer religião – Yara nunca usa lenço), à volta de uma mesa (“fica-se junto quando se come à mesma mesa”), encontro entre gerações, das crianças aos velhos ninguém fica só. E como a trágica morte do cão recorda que, apesar da tragédia, as pessoas para serem felizes precisam de pessoas, comunidades de iguais, é com os outros que nos tornamos naquilo que somos.

Há até uma extraordinária referência ao clima de cancelamento e denuncia generalizada – TJ recusa-se a denunciar, seja quem for. Luta contra. Mas não denuncia individualmente este ou aquele. E faz disso ponto de honra. Ken Loach não deixou nada por tocar.

Há a catedral, referência à obra de outro socialista, William Morris, do século XIX, recordando que os templos religiosos foram construídos pelos trabalhadores e são deles. E escuta – só ouve quem leu antes –, a voz de Leon Trotsky sobre como igrejas podiam ser cinemas, nesse magistral livro Questões do modo de vida. Aliás todo The Old Oak é, como sempre em Ken Loach, um gigante “questões do modo de vida”, arrasador, melancólico, vivo, alegre, está lá tudo, de chorar por mais. O seu e o seu contrário.

O Pub é a esfera pública, public houses, assim nasceram os sindicatos no século XVIII, hoje a maioria das pessoas não consegue reunir-se em espaços públicos, tudo é pago, não há associações onde comer juntos, estar juntos, porque esses lugares são “perigosos”, são os lugares onde quem trabalha conspira para deixar de ser oprimido. Ken Loach aliás vai buscar o nascimento do movimento operário mundial, o mais avançado, o inglês, para mostrar como é urgente conhecer a história para voltar a ter força (que está simbolizada na máquina partida, agora reconstruída com o dinheiro das velhas máquinas dos mineiros, e que mostra como se lutou no passado).

A máquina também opera uma cena marxista-freudiana que é o ponto alto do filme: quando juntos, trabalhadores mais e menos qualificados, de várias origens, celebram junto no Pub e vêem as fotografias que a Yara fez, esta cena reproduz a gênese revolucionária do cinema: aí há um tomar de consciência política de quem são e de quem podem ser, estão a olhar-se a si próprios na projeção daquelas fotografias, ao som de música árabe. Veem-se finalmente, passam de classe em si para si.

Ken Loach defende um modo de fazer política ali. Para chegar ao âmago das pessoas é preciso ressuscitar espaços comuns de convívio, de arte, é preciso comer juntos, o encontro real onde se suprime as necessidades do estômago e da alma. Nunca mais uma reunião política sem jantar! É o mote deste lugar, o Velho Carvalho (Old Oak), que diz que a política não pode ser um lugar árido sem afectos, que a solidão tem que ser combatida pela esquerda, que a alegria tem que caber no espaço de organização política no dia a dia. É uma questão do modo de vida.

Há ainda a transformação (e não a redenção). Tanto que a esquerda hoje, mais uma vez pilotada por ideias dominantes, sem ideias próprias, tinha a aprender quando olha para votações em massa de extrema direita e clama “são todos fascistas” desistindo enfim de fazer política. Ken Loach mostra que não se pode desistir de mudar as pessoas: “quem não espera nada, não ganha nada”. Uma parte dos que atacam o pub arrependem-se enfim e estão juntos na cena final. Nem toda a gente que pensa mal deve ser cancelada, o erro é normal, o debate não pode ser impedido. É preciso disputar e não cancelar o povo (e claro, sem nenhuma tolerância com milícias fascistas).

Uma cena final à Walter Benjamin, mas podia ser à Saramago em Levantado do chão. Quando o desespero toma conta de TJ, dono do Pub, o pai de Yara morre e no funeral toda a comunidade vem prestar condolências, de todas as cores e nacionalidades: “eles vêm de todo o lado” ou algo assim, cito de memória, diz com surpresa TJ ao lado de Yara: é a revolução. Ela virá.

*Raquel Varela é professora de história na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve história da Europa (Bertrand).


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