Lula no Rio Grande do Sul

Imagem: Lucas Vinícius Pontes
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Por TARSO GENRO*

Lula será de novo presidente: mostrou que sabe, mostrou que pode

A vinda de Lula a Porto Alegre, neste começo de junho, me fez lembrar sua anterior chegada ao Estado, na sua visita à Unipampa, quando as forças políticas de direita e extrema direita da região de Bagé – assessoradas pelas lideranças do latifúndio local e por políticos vinculados à filosofia do relho – apedrejaram o ônibus em que estávamos. Demonstravam assim, a sua gratidão “neandertal” pelo que Lula fez pela região. Foi a devolução consciente, em carga de ódio irracional – a título de “reconhecimento” – ao presidente que mudara para muito melhor aquela parte do Estado, alocando no polo regional da fronteira oeste uma grande Universidade Federal, cuja presença no espaço social mudaria a lógica educativa, científica e cultural do Rio Grande.

A presença de Lula em Porto Alegre, neste começo de junho, parece marcar aqui, todavia, um novo ambiente político, pois nele se refazem os valores políticos tradicionais do Rio Grande, por dentro dos quais pode desaparecer a capacidade dos fascistas, sempre à espreita, para montarem o seu cenário de confronto pela violência.

Digo ódio irracional porque o confronto político entre duas visões da razão é uma das características marcantes de qualquer democracia, mas o “conflito irracional” é uma característica do fascismo e da deterioração da força civilizatória do Estado de direito, marcante dos momentos de crise do sistema e dominação do capital. Reputo que a estratégia de Jair Bolsonaro está se tornando cada vez mais clara, ao cortejar os setores aventureiros das Forças Armadas (até agora minoritários) para uma ação golpista, combinando este cortejo com ataques virulentos à Suprema Corte, para tentar colocá-la como um apêndice da falecida República de Curitiba.

Naquele deserto de formação jurídica democrática se originou o peculiar conceito de “golpismo institucional”, que acabou por derrotar a presidenta Dilma e todo o país, num “impeachment” chefiado por um escroque que colocou Lula no cárcere de Curitiba, para onde talvez Sérgio Moro possa ir num futuro não muito remoto.

A formação, em escala nacional, de uma “dupla Frente” – de esquerda e “ampla” – ou de dois momentos constituintes de uma Frente única contra o bolsonarismo miliciano, mostrou aqui toda sua potência. Não somente pela pluralidade das mesas de conversação e eventos que o Presidente participou, mas também pelo seu discurso unitário em torno das questões principais, que devemos enfrentar no próximo período: derrotar a extrema direita no primeiro turno, reforçar os poderes republicanos, reorganizar a economia no sentido do crescimento e do emprego, desenvolver uma política externa de cooperação interdependente com soberania, recuperar a ideia da soberania alimentar, promover a luta contra fome, bloquear as privatizações selvagens e refazer o pacto federativo, principalmente no que refere à política tributária, distribuição de recursos da União e retomada dos regimes de colaboração, entre os seus entes, para uma segurança pública eficiente e cidadã.

Trata-se de um programa ousado e até agora só um homem mostrou condições para liderá-lo, porque conseguiu convencer que não há uma terceira via sem combater o fascismo e sem compromisso de extirpá-lo por dentro da democracia e da república. Os que colocam Lula e Bolsonaro no mesmo plano, como se fossem dois extremos, sobrarão, pois é impossível convencer a ampla maioria do povo que Lula e Bolsonaro são “a mesma coisa”. Não são, não serão e nunca foram, porque se dirigentes políticos cometem erros ao governar, aquele que não renuncia aos seus princípios humanistas para se tornar um semeador do ódio, da violência e do preconceito, leva uma vantagem exponencial, pois não constitui uma ameaça no futuro nem um bloqueio às energias simples do bem e da solidariedade, no presente.

A chamada terceira via se esgotou quando Lula, com a sua competência política, conseguiu demonstrar que ele era, ao mesmo tempo, a força mais consequente para derrotar o fascismo, deixando isso totalmente nítido para as formações à sua esquerda e deixando claro que viria, tranquilamente, ao centro, para formar um governo de nova maioria, sem preconceitos, sem ódio, sem promessas impossíveis de serem cumpridas.

Assumiu assim o compromisso com a nação republicana, não com um partido particularmente ou uma ideologia social, em especial, que alimenta – ainda bem – os grupos e lideranças da esquerda, que sabem, pela leitura das experiências históricas ou pelas suas experiências próprias, que se a democracia sucumbe nas mãos dos bandidos ou ditadores, nossas utopias de igualdade e justiça se tornam ainda mais improváveis e distantes. Com este movimento, Lula substituiu a sua visão sindicalista democrática originária, cabível no período imediatamente precedente ao que nós estamos vivendo, pela ideia de reconstrução da nação, dissociada e fragmentada pela aventura das classes dominantes que proporcionaram que Jair Bolsonaro chegasse ao poder.

Para Bolsonaro, interessa a violência de rua, que possa unificar os aparatos repressivos do Estado para suscitar o caos, e assim cortejar a grande parte do empresariado que não tem o menor interesse em direitos humanos, democracia, negociações políticas para restaurar algo da república, que sofre ameaças e chantagens do presidente todos os dias. Para Lula e a maioria do povo interessa – como metáfora adequada ao mundo real – o preço do gás e a liberdade de ir e vir para o trabalho, ganhar a vida e curtir os momentos de alegria que ela possa oferecer. A aquisição do gás e o gozo da caminhada, todavia, têm, no seu trajeto, a saúde, a educação, a segurança, que só um projeto de nação pode oferecer dentro do sistema global de crise, da miséria e da guerra. Quem sabe disso ganha eleição e quem sabe disso provou que já sabe.

No fundo dos campos do Rio Grande do Sul, no centro das florestas agredidas, nos grandes cinturões de miséria das metrópoles encardidas, nas famílias de todas as classes onde a empatia não desapareceu, no entorno das lágrimas deixadas nos cemitérios saturados, as vozes tristes das vítimas do delírio fascista vão se erguer. E uma rede de cantos límpidos dos galos da madrugada vão tecer a aurora de um novo pacto para reerguer a nação. E retirá-la do pesadelo que nos asfixia. E Lula então será de novo presidente: mostrou que sabe, mostrou que pode.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

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