Por ALEXANDRA LUCAS COELHO*
Israel está em autodestruição há muito. Antes de 7 de Outubro, à beira de uma guerra civil entre os que acreditam que o país é uma democracia e os que querem uma autocracia, ou teocracia
1.
Gaza já foi um campo de concentração, num tempo remoto, há cinco meses. Agora é um campo de extermínio, nos nossos ecrãs. Vi, no meu telefone, uma menina de Gaza pedir ao seu gato, com festas: quando formos mortos, por favor não nos comas. Vi gatos a rondarem gente morta no meio da rua. Cães a desenterrarem valas para comerem gente. Gente que comeu a comida dos cães, dos gatos, fez pão com isso. Que está a comer erva da rua, algas do mar com esgoto.
Milhares a lutar por um saco de farinha da ajuda humanitária. Uma menina com a metade de um limão porque não há pão. Crianças na areia de Rafah a brincar de amassar pão imaginário, cozer pão imaginário, porque estão esfomeadas. Como aquele judeu que cobiçava o pão do vizinho em Auschwitz, e nos perguntou – continua a perguntar – se isto é um homem.
Nunca vimos tantas provas de quem morre. E de quem mata. Soldados dedicam bombas às namoradas antes de carregarem no botão. Mandam pelos ares prédios de Gaza ao melhor estilo PlayStation. Montam vídeos com banda sonora, hits israelitas de guerra, raves de pastilha. Estão só doentes, ou também drogados?
Como aqueles soldados a espancarem coisas já muito destruídas numa loja da Cisjordânia: espancavam e espancavam, eufóricos, com tacos de baseball, com martelos, numa orgia. Um deles urrava, regando tudo com um jacto de espuma.
Muitos grafitam casas e mesquitas, insultos, estrelas de David (fotografei dezenas em Jenin). E agora roubam casas em Gaza por sistema: tapetes, cosméticos, motos. Um dos mais ricos e bem equipados exércitos do planeta, na sua versão gangs de Israel. Comportamentos que eu nunca tinha visto desde a primeira vez que lá estive, há 22 anos. Tal como israelitas com idade para serem pais e avós, sempre amorosos com os seus, e com os seus animais, dizem agora, como nunca antes: “Fuck Gaza”.
Porque para eles é 7 de Outubro. Não passaram 141 dias e 30 mil mortos em Gaza. Toda a compaixão que têm é para os 1000 mortos israelitas, os mais de 100 reféns do Hamas ainda vivos. Gente que merece estar tão viva como toda a gente. Incluindo o milhão e meio de moribundos nas barracas de Rafah, que já não movem esses israelitas laicos. Não os levam às ruas.
2.
E a cada manhã acordo e mais uma estrela da TV em Israel, mais um ministro, por vezes ministra, diz: “Estou orgulhosa das ruínas de Gaza.” Ou: “Não há inocentes em Gaza, as crianças de cinco anos não são inocentes.” Ou: “Vamos matá-los à fome, destruir tudo para partirem voluntariamente.” Ou: “Nunca haverá um Estado palestiniano.” Ou: “Como se atrevem a criticar-nos? Somos os filhos do Holocausto.” Ou: “Ninguém diz a Israel o que fazer”.
Não faltam declarações de intenção, além de comprovativos. Não falta orgulho nisso. Um país mais que narcísico: em grande parte doente.
A brava pequena minoria que combate a ocupação e a guerra, que se nega, por exemplo, a combater, é ostracizada, presa, mesmo. Em 25 de fevereiro, Sofi Orr, 18 anos, enfrenta a prisão. Entrevistei-a em sua casa no começo de janeiro.
3.
Nos últimos dias, multiplicam-se relatos de mulheres em Gaza, até já avós, que foram levadas pelos soldados, obrigadas a ficarem de roupa interior, ameaçadas, interrogadas sobre o Hamas. Na sua guerra “até à vitória final”, Israel está a tentar extrair informações torturando incontáveis multidões de palestinianos. Já acontecia com os homens, e era registado em imagens há meses, mas tudo se agravou, a escala dos detidos, a pressão das torturas, com simulação de afogamento, espancamento com barras de ferro, ferros metidos pela boca. Soldados de elite a humilharem milhares de homens, filmando-os despidos, vendados e amarrados, uns atrás dos outros, de cabeça curvada. O fascismo dos 120 dias de Saló-Sodoma que Pasolini retratou no cinema. Mas agora há 141 dias nos nossos telefones, pela mão armada dos descendentes de Auschwitz.
Então o que havia depois de Auschwitz era Auschwitz-em-direto.
4.
Lula da Silva quebrou um tabu entre líderes democráticos ao comparar o que está a acontecer com o Holocausto. O governo de Israel declarou-o persona non grata. Vi um cartoon em que Benjamin Netanyahu lhe chamava extremista enquanto lhe pingava sangue das mãos. Pois. Fora Israel, e bolsas sionistas aqui, ali, não dei por uma indignação alargada contra Lula. Um sinal de como ele toca em algo verdadeiro. Podemos preferir que algumas palavras dele tivessem sido outras.
Sabemos, como Lula sabe, que nunca antes nem depois seis milhões foram exterminados, com uma “Solução Final” decretada por um homem, e câmaras de gás e fornos adjudicados a toda uma máquina, e burocracia, de morte industrial. O Holocausto dos judeus da Europa tem circunstâncias únicas, e Lula não põe isso em causa. Mas claro que a comparação que ele faz está na mente de toda a gente com memória, com cabeça, com coração.
Masha Gessen, intelectual judia que citei há semanas, também foi criticada por essa comparação, e respondeu que não só ela pode como deve ser feita. Claro que fazê-la perturba, mas devíamos estar todos a perder o sono é com o que se passa em Gaza, diz Masha Gessen. E deve ser feita agora, porque é agora que temos de salvar vidas.
Foi isto que Lula percebeu. Um estadista com a intuição de poucos. Lula liberta os líderes para pressionarem o cessar-fogo, apontando a Israel o espelho que Israel mais teme. E que é o que lhe cabe, sim. Vou mais longe do que dizer que a comparação deve ser feita: essa é “a” comparação. Porque é de Israel que falamos. Da excepção que Israel representa no mundo. Do Holocausto que Israel explorou, transformando-o numa arma apontada para nós até hoje, na maior chantagem política de que há memória. Lula tocou no ponto, na ferida, no horror: que sejam os descendentes do mal maior a fazer isto. E que estejamos nós paralisados na culpa, deixando os vivos de agora morrer.
A comparação não é só incómoda para Israel. É para todos nós. O que diz isso sobre o humano.
Há mais de quatro meses escrevi aqui que travar a morte em Gaza seria honrar enfim a memória do Holocausto. Logo a seguir, que era preciso uma força de interposição em Gaza, e um boicote do mundo ao governo de Israel. Dezenas de milhares de mortos depois, e com milhões em risco de morrerem à fome ou doença, Gaza é o maior campo de extermínio do nosso tempo de vida.
Lula falou. Faltam sanções, boicote e desinvestimento. Israel tem de ser isolado: em nome de Gaza, dos palestinianos, de todos nós, dos judeus em geral. E dos israelitas. Não o fazer será ser parte do crime e da doença. O tabu do Holocausto acabou. Tal como a utopia de Israel.
Saudei que o ainda ministro Cravinho contrariasse as sanções à UNRWA, com um simbólico milhão extra de apoio, e falando no isolamento de Israel. Falta tudo o resto, isolar de facto, espero que também pela mão do próximo governo português.
5.
Israel está em autodestruição há muito. Antes de 7 de Outubro, à beira de uma guerra civil entre os que acreditam que o país é uma democracia e os que querem uma autocracia, ou teocracia. É o grande fosso entre sionistas laicos e religiosos. E o 7 de Outubro, que foi o maior trauma do Estado de Israel, não apaziguou isso. Ao contrário do que tende a acontecer quando um país se sente atacado, Israel não se uniu. A guerra interna segue latente.
Um dos frutos de todas estas décadas, e de todas as contradições. Desde a contradição de origem — querer ser um Estado judaico e uma democracia — a continuar a ocupar e colonizar um povo, depois de o destituir da sua terra, forçar a tornar-se refugiado.
O historiador israelita Ilan Pappé elencou em Janeiro cinco fatores para o que chama “começo do fim do projeto sionista”. O fosso laicos-religiosos é um. Outros quatro: o apoio crescente à Palestina, agora numa lógica anti-apartheid inspirada na África do Sul; a ocupação e a guerra sugarem a economia de Israel (e a Moody’s rebaixou Israel há dias, inédito e muito falado lá); a incapacidade de defesa que o exército demonstrou a 7 de Outubro; e cada vez mais judeus no mundo, sobretudo nos EUA, já não acreditarem que a existência de Israel protege os judeus. Ao contrário, pensarem que os ameaça. Subscrevo tudo.
Israel foi uma utopia a mentir para si mesma coisas como: “Uma terra sem povo para um povo sem terra.” Presa na culpa, a Europa sustentou a utopia. Foi cúmplice, com o dinheiro e as armas americanas. Israel chegou a 2023 mais doente que nunca. A ferida interna mais a gangrena colonial apodrecendo o colonizador. Mais três mil casas nos colonatos anunciadas anteontem (em retaliação a um ataque a colonos à entrada de Jerusalém).
Benjamin Netanyahu é um escroque. Mas não é a origem do mal, é o desfecho, muitos milhões de desalojados e mortos depois. O Hamas cravou uma faca em Israel a 7 de Outubro. A faca veio de fora. A doença vem de dentro. Israel não vai destruir a Palestina. Autodestrói-se.
*Alexandra Lucas Coelho é jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Líbano, labirinto (Editora Caminho).
Publicado originalmente no jornal Publico.
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