György Lukács – estética e crítica literária

Pae White, Morceau Accrochant, 2004
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Por CELSO FREDERICO*

Estética é obra da maturidade, referência segura para se avaliar retrospectivamente os passos dados na trajetória de Lukács

Desde os anos 1930 György Lukács envolveu-se em acirradas polêmicas defendendo o realismo, método que receberia sua formulação mais acabada na Estética. Polêmicas que envolvem literatura e política nem sempre são serenas: é comum um autor, no calor da discussão, exagerar na argumentação para defender seu ponto de vista, ir além do que a prudência aconselha, não atentar aos argumentos dos adversários etc. Não é o caso da Estética, obra da maturidade,referência segura para se avaliar retrospectivamente os passos dados na trajetória de Lukács – tanto os que prefiguram as reflexões maduras quanto as que delas divergem.

Veremos, em seguida, alguns exemplos.

Realismo

Em vários momentos de sua extensa obra György Lukács recorreu à tese de Friedrich Engels sobre a “vitória do realismo”. A obra de arte, lembrava Engels, é uma realidade objetiva que muitas vezes contradiz as preferências ideológicas do autor. O exemplo típico é Balzac, que ideologicamente se identificava com a pequena nobreza, mas cuja fidelidade ao realismo levou-o a mostrar o caráter parasitário desse segmento social, condenado a desaparecer com o desenvolvimento da sociedade francesa. A realidade, portanto, se impôs, contrariando as preferências ideológicas do autor: vitória do realismo.

György Lukács, entretanto, nem sempre foi fiel à tese de Engels, como comprova o livro Realismo crítico, hoje.[i] Nele toda a análise é feita a partir das opiniões filosóficas expressas por diversos escritores (Joyce, Kafka etc.) e não pelo estudo imanente dos textos. György Lukács, nesse caso, contrariou o próprio método. Na Estética, advertiu: “as ideias dos artistas devem inferir-se da natureza de suas obras, em vez de entender as obras partindo das opiniões expressas de seus autores”.[ii] Essa desobediência em relação ao próprio método não é privilégio de György Lukács. Outro autor que sempre defendeu a análise imanente, como Theodor Adorno, teve o mesmo procedimento generalizante ao criticar o jazz sem ter analisado uma única música para fundamentar suas convicções.

No caso de György Lukács há um apego aos grandes escritores realistas da primeira metade do século XIX tomados como modelos. Mas o realismo na Estética é uma atitude perante a realidade que vigora dos gregos aos dias de hoje, e não um modelo a ser utilizado na crítica aos autores que dele se distanciam, como Lukács fizera nos anos 1930. Na Estética, as coisas são postas de modo diferente: “não há nada tão variado, tão radicalmente variável como o conjunto dos meios expressivos, dos sistemas de referências, etc. que possibilitam historicamente em cada circunstância determinada um estilo realista”. Na sequência, uma advertência: “A margem de movimento dessa mudança no meio refigurativo é tão grande às vezes que uma época pode descobrir que meios expressivos de outra são para ela obstáculos enfrentados à sua própria expressão realista”.[iii]

Em outros momentos, a fidelidade ao método apresentou resultados surpreendentes como quando, por exemplo, György Lukács deparou-se com a obra de E. T. A. Hoffmann e seus contos tradicionalmente considerados pela crítica como pertencentes à literatura fantástica, e não ao realismo. A análise de Lukács parte da chamada “miséria alemã”: contrariamente à França e à Inglaterra, a Alemanha era um país em que o capitalismo retardatário convivia com estruturas feudais e, por isso, a dinâmica do modo de produção capitalista não havia se desenvolvido plenamente, coexistindo com as relações pessoais herdadas do feudalismo. Em tal contexto econômico-social, as classes sociais e suas lutas não eram ainda plenamente visíveis.

Como então retratar realisticamente os nexos dessa realidade com o destino dos personagens literários? Como transitar da mediania à tipicidade? Como utilizar o método narrativo? Lukács chega a uma conclusão surpreendente: Hoffmann é realista, pois o seu realismo fantástico é o modo apropriado de retratar aquela sociedade em que “As formas fenomenais da vida social, na sua imediata desfiguração, se mostravam ainda rebeldes a qualquer representação direta”.[iv] Em outro texto, acrescentou: “Não é absolutamente necessário que o fenômeno artisticamente figurado seja captado como fenômeno da vida cotidiana e nem mesmo como fenômeno da vida real em geral. Isso significa que até mesmo o mais extravagante jogo da fantasia poética e as mais fantásticas representações dos fenômenos são plenamente conciliáveis com a concepção marxista do realismo. […]. as novelas fantásticas de Hoffmann e de Balzac representam momentos culminantes da literatura realista, porque nelas, precisamente em virtude da representação fantástica, as forças essenciais são postas em especial relevo”.[v]

Esses comentários nos são particularmente relevantes, pois na América Latina essa forma própria de realismo – o “realismo fantástico” foi, talvez, a mais característica de nossa literatura. No limite, podemos pensar que Machado de Assis, nosso maior escritor realista, se não o maior de nossa história literária, também fez uso de uma forma própria do Realismo, em que o narrador onisciente foi substituído pelo “narrador volúvel” (o marido envenenado pelo ciúme, o “defunto autor” etc.). Desse modo, expressou literariamente as condições específicas de uma sociedade provinciana, escravista, onde as relações humanas eram mediadas pelo favor.[vi]

Com esses exemplos, pode-se observar o predomínio da perspectiva ontológica, para a qual o método não é um conjunto de preceitos definidos a priori, um recurso epistemológico culminando na edificação estática de um modelo, mas uma entrega ao sempre surpreendente automovimento da realidade. Essa tensão entre epistemologismo e ontologia acompanha em todo momento a concepção de realismo e de reflexo a obra de György Lukács. Um dos textos mais representativo dos anos 1930, “Arte e verdade objetiva”, já anunciava no próprio título as dificuldades iniciais enfrentadas. Verdade objetiva, verdade como um objeto que parece alheio ao sujeito. Essa concepção “dura” de reflexo, entretanto, coexistia no texto com a ênfase criativa da fantasia, já anunciando o refinamento conceitual que irá se concretizar na Estética, quando a mimese é vista como categoria definidora da especificidade do reflexo estético.[vii]

Kafka e Brecht

A “suavização” da teoria do reflexo na Estética relativizou diversos julgamentos severos e dogmáticos feitos sobre alguns artistas, como Kafka e Brecht.

Carlos Nelson Coutinho observou que “Antes de 1956, Lukács jamais falara de Kafka; nem em seus ensaios literários da década de 1930, nem em sua Breve História da Literatura Alemã (1945), Lukács faz a menor referência a Kafka” [viii]. Em A destruição da razão, publicado em 1954, Kafka aparece num determinado momento em que o autor fez aproximações entre as teorias econômicas vulgares, que faziam apologia do capitalismo, e a literatura. O comentário não poderia ser mais infeliz: “Hoje, pelo contrário, temos como fenômenos literários paralelos, isto é, como representantes literários equivalentes à economia apologética direta e da filosofia semântica, nomes como Kafka ou Camus (falamos aqui da literatura como indicador de correntes sociais; as questões de valor estético não importam para a presente discussão)” [ix].

O texto lukacsiano que obteve mais críticas foi publicado inicialmente na Itália, em 1957, com o título Il significato attuale del realismo crítico (traduzido no Brasil como Realismo crítico hoje). György Lukács escreveu um capítulo inteiro propondo ao leitor uma escolha maniqueísta: “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. O autor de A Metamorfose é apresentado como um precursor das tendências anti-humanistas e anti-realistas representadas pelas vanguardas estéticas. Estas são criticadas não por meio da análise imanente das obras, pois György Lukács não se deu ao trabalho de examinar atentamente nenhuma delas, mas tomadas apenas como expressões das “concepções do mundo” expressas ou subjacentes. Esse tipo de interpretação, mais condizente com a metodologia de Lucien Goldmann, está em flagrante oposição à tese engelsiana da “vitória do realismo” e a tudo que György Lukács iria afirmar na Estética.

Boa parte da má-vontade dos críticos literários em relação a György Lukács provém dessa desastrada crítica da vanguarda. Consequentemente, os grandes estudos literários lukácsianos ficaram relegados ao esquecimento e o nosso autor acabou sendo mais conhecido pela “má fama” do que pela sua vigorosa obra.

Intelectuais mais atentos, como Adolfo Casais Monteiro, crítico literário português exilado no Brasil e referência nos estudos sobre Fernando Pessoa, percebeu que Lukács contrariou o seu próprio método ao atacar a vanguarda a partir das declarações esparsas do “eu empírico” e não da análise da obra (na qual o “eu artístico” se expressa). Mas, admitiu: “pela primeira vez em toda a história do marxismo, György Lukács aborda a literatura como literatura”.[x]

Carlos Nelson Coutinho, por sua vez, levou adiante “o desafio de tentar compreender à luz de Lukács um autor que Lukács não compreendeu”. O recurso à alegoria, base da crítica de György Lukács à vanguarda, estaria restrito aos textos menores de Kafka e não em livros como A Metamorfose e O processo. No primeiro livro, diz Coutinho, “a absorção de técnicas fantásticas não deve ser confundida com anti-realismo; trata-se, antes, de uma continuação da herança do realismo crítico fantástico de Hoffmann e de Gogol, ou seja, da intensificação dos processos reais para melhor romper a crosta da alienação fenomênica e penetrar na essência dos comportamentos reais. No segundo, através da irrupção de um fato excepcional, mas de uma excepcionalidade que é também a intensificação das possibilidades reais, Kafka desmistifica a crítica à falsa ideologia da “segurança” sobre a qual se apoia, em grande parte, a manipulação burguesa das consciências e sua conservação na alienação; e denuncia igualmente com uma universalidade estética elevada, as formas da alienação capitalista consubstanciadas na organização técnico-burocrática da sociedade”.[xi]

Em suas obras maiores, portanto, Kafka foi um autor realista e, para ser mais preciso, “o precursor novelístico da nova forma do romance”,[xii] forma necessária para dar conta das novas modalidades de alienação produzidas pelo capitalismo tardio. A interpretação brilhante de Coutinho foi retomada e ampliada posteriormente em Lukács, Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX.[xiii] Além da análise refinada, que agora incluía Marcel Proust, Coutinho fez um levantamento minucioso dos textos posteriores em que György Lukács esboçou recuos e auto-críticas não só em relação àqueles três autores como também ao Robert Musil de O Homem sem qualidades. Em anexo, o livro traz a correspondência mantida entre Coutinho e Lukács, na qual o então jovem crítico questionava algumas formulações do velho mestre.

Posteriormente, na Estética, Lukács reavaliou seus julgamentos, passando a afirmar a “superioridade de Franz Kafka sobre outros autores contemporâneos”. A contraposição, agora, não é mais com Thomas Mann, mas com Beckett: o humanismo e realismo de Kafka contra a capitulação perante a reificação e o niilismo irracionalista em Beckett: “Isso distingue, por exemplo, O Processo de Kafka de Molloy de Beckett; em O Processo o incógnito absoluto do homem particular aparece como uma anormalidade indignante, evocadora de indignação, da existência humana (…) enquanto que Beckett se instala auto-satisfeito na particularidade fetichizada e absolutizada”.[xiv]

Outro autor a merecer uma reavaliação de Lukács é Bertolt Brecht. A longa e conflitiva relação entre eles, iniciada no debate sobre o expressionismo nos anos 1930, foi tensionada por razões políticas e estéticas. Ambos eram intelectuais comunistas que defendiam, cada um a seu modo, o realismo, mas divergiam em questões de estratégia política. György Lukács, desde as “Teses de Blum”, escritas em 1929, defendia a política de “frente popular”: a aliança das forças progressistas como caminho para enfrentar o nazi-fascismo, aliança que incluía os setores democráticos da burguesia. Brecht, contrariamente, alinhava-se aos setores esquerdistas que defendiam a política de “classe contra classe” – nada, portanto, de aliança com a burguesia.

A política de “frente popular” refletia-se na questão cultural por meio da valorização lukacsiana da alta cultura burguesa e do realismo, entendidos como uma “herança cultural” a ser retomada e desenvolvida pelo proletariado. Além disso, György Lukács contrapôs a arte de uma burguesia em seu período democrático e revolucionário (anterior a 1848) a todas as tendências irracionalistas e anti-humanistas representadas pelas chamadas vanguardas estéticas, bem como pelos adeptos da Proletkult com seu desprezo pela cultura burguesa.

Brecht, que havia inicialmente trabalhado com o teatro político de Piscator e sofreu a influência do expressionismo em suas primeiras peças, esteve sempre próximo dos setores esquerdistas envolvidos nos experimentos do teatro proletário. Embora também defendesse o realismo e a função cognoscitiva da arte, Brecht construiu sua concepção de teatro épico em oposição à concepção aristotélica. Daí sua recusa à mimese e à catarse.

Consequentemente, a valorização do realismo crítico feita por György Lukács contrastava com o espírito criativo de Brecht, empenhado que estava em descobrir formas de expressão novas em substituição ao velho realismo, que, segundo ele, já havia esgotado suas possibilidades. A proposta de uma nova arte destinada a refletir criticamente a realidade e lutar por sua transformação revolucionária não deveria tomar a arte burguesa como paradigma – arte que nem mesmo a burguesia estava mais interessada em preservar.

O confronto entre os dois autores tornou-se explícito quando do “Debate sobre o expressionismo”. A crítica de Lukács a essa vertente estética, anunciada no longo do ensaio “Grandeza e decadência do expressionismo”, [xv] de 1934, foi o ponto de partida de uma polêmica envolvendo Ernest Bloch e Hans Eisler. A postura de György Lukács de condenação genérica do movimento creditava o fracasso do expressionismo à sua incapacidade de expressar artisticamente a nova realidade formada pelo advento do imperialismo, das guerras mundiais e do período revolucionário aberto pela revolução de 1917.

Politicamente, o expressionismo foi interpretado por ele como expressão cultural de uma pequena burguesia ligada ao Partido Socialdemocrata Independente, cujo horizonte ideológico limitava-se a opor-se de modo abstrato à burguesia e à guerra a partir de um anticapitalismo romântico e irracionalista. Tal corrente estética, concluiu, acabou sendo incorporada pelo fascismo. A realidade, entretanto, contradisse o veredicto de Lukács: na Alemanha, em 1937, realizou-se com grande estardalhaço a exposição “Arte degenerada”, em que as obras expressionistas eram ridicularizadas.

A crítica dogmática de György Lukács, antecipando o que faria em Realismo crítico hoje, além de generalizadora não analisa uma única obra, limitando-se a considerar todo o expressionismo como mera ilustração de uma visão do mundo pequeno-burguesa e irracionalista. A obrigação do estudo imanente da produção artística, como reza a futura Estética, não foi seguida. Além disso, a condenação in totum não levou em conta contribuições hoje consideradas clássicas na história da arte. Carlos Eduardo Jordão Machado cita, a propósito, “Musil, Kafka, Brecht e Döblin, na literatura; a pintura de Klee, Kandisky e Chagall; a música de Schöenberg etc.”.[xvi]

Brecht acompanhou o debate sobre o expressionismo evidentemente indignado com as ideias de György Lukács. Escreveu, então, um conjunto de textos criticando o formalismo de Lukács e seu desprezo pelas inovações formais (montagem, monólogo interior etc.). Esses textos não foram publicados pois, segundo Brecht, as divergências estéticas não deveriam prejudicar a unidade das forças que combatiam o nazi-fascismo [xvii]. O objetivo central desses escritos era a defesa do realismo, um novo realismo distante daquele praticado pela burguesia no século anterior e que servia de referência para Lukács.

O preço de se tomar a literatura oitocentista como modelo era a ausência, entre outras coisas, da luta de classes: “Da parte de um homem empenhado na luta de classes, como György Lukács, é uma espantosa eufemização da história o fato de ele considerar a história da literatura quase completamente isolada da luta de classes e encarar a decadência da literatura burguesa e a ascensão da proletária como dois fenômenos totalmente independentes. Na realidade, a decadência da burguesia revela-se no miserável esvaziamento de sua literatura, que formalmente se mantém realista: e obras como as de Dos Passos, apesar de sua desintegração, e por meio delas, mostram o aparecimento de um novo realismo, tornado possível pela ascensão do proletariado”.[xviii]

Igualmente, em seu Diário de Trabalho, György Lukács comparece em diversas referências nas anotações feitas em 1938 e 1939. Nos meios esquerdistas frequentados por Brecht havia desconfiança em relação a Lukács: seus textos escritos em Moscou eram interpretados erroneamente como endosso ao stalinismo. Brecht, que nunca teve papas na língua, anotou: “Lukács, cuja importância reside no fato de escrever diretamente de Moscou” [xix]. Comentários assim eram acompanhados de expressões irônicas, chamando-o de “bom”, “destemido” e “ousado” Lukács para, em seguida, ressaltar sua “obtusidade”.

A filiação de György Lukács à política de frente popular, segundo Brecht, teria levado à substituição do proletariado pela humanidade (“esta se instala onde quer que o proletariado abandone uma posição”). No campo literário, portanto, não haveria “contradição entre os realistas burgueses e os realistas proletários”.[xx]

Nos dois momentos, portanto, Brecht ressaltou suas diferenças com o pensador húngaro e reafirmou a defesa de um “novo realismo” centrado na compenetração e na razão, e na crítica ao realismo burguês voltado para a compaixão e para as emoções.

György Lukács, por sua vez, pouca atenção dispensou a Brecht nos anos 1930. Este, como vimos, sentiu-se atingido pelas críticas ao expressionismo e, também, à literatura proletária de seu amigo Ernst Ottwalt. No ensaio “Da necessidade, uma virtude”, ambos foram colocados lado a lado por Lukács: “Ottwalt diz: “Nossa literatura não tem por dever estabilizar a consciência do leitor e sim modificá-la”. Também Brecht opõe ao “homem inalterável” do teatro antigo o “homem cambiável e cambiante” do novo. Pode-se dizer que isso é correto? Me parece que não. Se observarmos a luta de classes de maneira concreta (…) devemos ver claramente que a situação política e econômica de qualquer classe muda ininterruptamente, que devido a isso toda classe sempre estava obrigada – sob pena de desaparecer – a mudar constantemente a consciência de seus membros” [xxi].

György Lukács, desse modo, critica o voluntarismo e a pretensão de mudar, num passe de mágica, através da arte, a consciência do público. Insinua-se aqui uma crítica ontológica: a consciência reflete os desenvolvimentos da realidade, necessariamente, não podendo ser modificada por uma intromissão subjetiva, voluntarista. O teatro de Brecht, segundo um crítico próximo de Lukács, Andor Gábor, seria, portanto, “um teatro da consciência e não do ser”.[xxii]

Em outros momentos, Brecht comparece junto a outros autores vanguardistas como representante da arte da decadência, aquela que se afastou do realismo crítico. Em 1944-5, Lukács afirmou também ser o “ataque” à “arte em geral” o eixo central da argumentação brechtiana, que utiliza “uma expressão dura e grosseira – “culinária” – para denominar esse efeito “mágico” descrito com ironia; e assim se propõe difamar, com esse termo extraído da arte culinária, todas as formas de gozo artístico, toda experiência a posteriori de um mundo plasmado artisticamente” [xxiii].

A partir de 1952, finalmente, os dois autores se encontram e tornam-se amigos. As divergências estéticas continuam, mas sem propiciar novos confrontos. Em sua Autobiografia em diálogo, Lukács relembrou: “Naquela época em Berlim eu considerava Brecht sectário, e não há dúvidas de que suas primeiras peças, as peças didáticas, tinham um fortíssimo caráter sectário. Por conseguinte, assumi uma certa posição crítica em relação à orientação de Brecht, que depois se acentuou muito. (…). Simplesmente, cometi o erro de, nos anos 30, quando eu estava ocupadíssimo, não ter escrito nem mesmo um artigo num jornal alemão sobre a grande diferença entre os últimos dramas de Brecht e os primeiros”.[xxiv].

Essa divisão entre as primeiras e as últimas obras de Brecht reaparece na Estética. O êxito das obras maduras se deveria, segundo György Lukács, ao fato de elas contrariarem o método seguido pelo teatro épico. Brecht, portanto, teria se aproximado do teatro aristotélico, do velho realismo, da catarse. A novidade aqui é que a catarse não aparece mais como oposta ao distanciamento e ao estranhamento. A “empatia”, por sua vez, passou a ser interpretada por Lukács como uma teoria artística “especificamente pequeno-burguesa” distante da praticada pela grande arte realista do passado. Nesta, o reflexo da realidade afirmava-se em contraposição à empatia, pois o que nela vigorava era uma vivência consciente que não estava restrita à subjetividade, à introspecção, mas referida a um mundo independente dela.

Feita essa divisão entre forma aparencial e realidade existente, György Lukács propôs uma generalização do conceito de catarse e, com ela, um surpreendente elogio ao “efeito de estranhamento” brechtiano. Ao contrário das primeiras peças didáticas, nas obras maduras a catarse ocupou um lugar central: “em um grande artista-moralista como Brecht, a preservação do núcleo da catarse é tão visível como a profunda desconfiança frente ao efeito meramente emocional da arte. O efeito de estranhamento (…) se propõe a destruir a catarse vivencial, meramente imediata, para dar lugar a outra que, mediante a comoção racional do homem inteiro da cotidianidade, imponha a este uma real conversão” [xxv].

Quando da morte de Brecht, György Lukács foi convidado a proferir um discurso fúnebre. Leu, então, um texto ressaltando sobretudo a importância das últimas peças: “Brecht é um autêntico dramaturgo. Sua intenção mais profunda permanece transformar as massas, os espectadores e os ouvintes de sua poesia. Eles devem deixar o teatro não meramente comovidos, mas transformados: praticamente voltados para a bondade, a consciência, a atividade, para o progresso. O efeito estético deve produzir uma mudança moral, uma mudança social. Este era o sentido mais profundo da “catarse” aristotélica. Ela deveria – assim entendeu corretamente Lessing – elevar a comoção a uma habilidade para o ético” [xxvi].

Theodor Adorno, ironicamente, afirmou a propósito que György Lukács fez um “reconhecimento póstumo” de Brecht. Curiosamente, Theodor Adorno seguiu um caminho oposto ao de György Lukács, preocupado que estava em manter Walter Benjamin longe da influência comunista exercida sobre ele por Brecht (“aquele bárbaro”, como se referia ao teatrólogo). Os elogios às inovações formais criadas por Brecht foram substituídos por ataques virulentos às peças, quando não extensivos ao próprio autor.

Adorno e Lukács, com posições opostas na interpretação das obras vanguardistas, tiveram um inesperado ponto de encontro na aceitação da tese da decadência ideológica – tese sempre defendida por György Lukács e endossada tardiamente por Theodor Adorno em seu famoso texto sobre o “envelhecimento da música”.

*Celso Frederico é professor aposentado da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Ed. Mórula). [https://amzn.to/3rR8n82]

Notas


[i] LUKÁCS, G. Realismo critico hoje (Brasília: Coordenada, 1969).

[ii] LUKÁCS, G. Estética, Vol. 4, cit., p. 398

[iii] Idem, pp. 542-543.

[iv] LUKÁCS, G. Realismo crítico hoje, cit. p. 85.

[v] LUKÁCS, G. “Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels”, in Arte e sociedade. Escritos estéticos 1932-1967 (Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Coletânea organizada por Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto), p. 107.

[vi] Um estudo clássico sobre as relações sociais no século XIX foi feito por Maria Sylvia de Carvalho Franco, Os homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Ática, 1974).

[vii] O conceito de mimese estética, herdeira da teoria do reflexo, abrigaria em seu interior “uma tensão não resolvida entre uma ontologia materialista, que encontra sua fundação sistemática na dialética da natureza e uma concepção do espelhamento que se baseia completamente sobre a especificidade da subjetividade humana”, segundo a interpretação de Hans Heins Holz em “Il ruolo dela mimesi nell´estetica di Lukácsin LOSURDO, Domenico, SALVUCCI, Pasquale, SICHIROLLO, Livio (orgs.), György Lukács nel centenário dela nascita (Urbino: QuattroVenti, 1986), p. 256.

[viii] COUTINHO, Carlos Nelson. “Introdução” à Realismo crítico hoje, cit., p. 10.

[ix] LUKÁCS, G. A destruição da razão (São Paulo: Instituto Lukács, 2020), p. 680.

[x] CASAIS MONTEIRO, Adolfo. “A crítica sociológica da arte”, in Revista Brasiliense, número 45, 1963.

[xi] COUTINHO, Carlos Nelson. “Introdução”, in Realismo crítico hoje, cit., pp. 14-15.

[xii] COUTINHO, Carlos Nelson. “Kafka: pressupostos históricos e reposição estética”, in Temas de ciências humanas, número 2, 1977, p. 23.

[xiii] COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka. Literatura e Sociedade no Século XX (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).

[xiv] LUKÁCS, G. Estética, Vol. 2 (Barcelona-México: Grijalbo, 1966), p. 343 e 484.

[xv] LUKÁCS, G. “Grandezas y decadência del expressionismo”, Problemas del realismo (México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1966.

[xvi] MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. Debate sobre o expressionismo (São Paulo: Unesp, segunda edição, 2016) p. 39.

[xvii] “Proponho, portanto, não converter em objeto de um novo debate a questão da ampliação do conceito de realismo em nossa revista da vasta frente anti-hitlerista”. Na sequência, assinalou a forma “virulenta” de um artigo publicado na revista Internationale Literatur em que Lukács denunciava “certos dramas de Brecht” como formalistas”. BRECHT, Bertolt. “Sobre el estilo realista” [Observaciones a mi artículo] in El Compromisso en literatura y arte (Barcelona: Península, 1984), p. 249.

[xviii] BRECHT, Bertolt. “Observações sobre o formalismo”, in Debate sobre o expressionismo, cit., p. 308.

[xix] BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho, Vol. 1, 1938-1941 (Rio de Janeiro: Rocco, 2002), p. 15.

[xx] Idem, p. 5 e p. 6.

[xxi] Cf. LUKCÁCS, G. “Reportaje o configuración? Observaciones críticas com ocasión de la novela de Ottwalt”, in Sociologia de la literatura (Barcelona: Península, 1968), p.142. Outro autor dessa corrente foi alvo da crítica lukacsiana no ensaio “Las novelas de Willi Bredel”, publicado no mesmo livro.

[xxii] GÁBOR, Andor. “Zwei Bühneereignisse”, in Die Linkskurve, 1932/11-12/29, p. 29, apud GALLAS, Helga. Teoría marxista de la literatura (México: Siglo Veinteiuno, 1977), p. 116.

[xxiii] LUKÁCS, G. Uma nueva historia de la literatura alemana (Buenos Aires: La Pleyade, 1971), p. 175-176.

[xxiv] LUKÁCS, Pensamento vivido. Autobiografia em diálogo, cit., p. 93-94.

[xxv] LUKÁCS, G. Estética, Vol. 2 (Barcelona-México, 1977), p. 514-5.

[xxvi] LUKÁCS, G. “Discurso proferido pela ocasião do funeral de Bertolt Brecht. Berlim, 18 de agosto de 1956”, in Carlos Eduardo Jordão Machado, Debate sobre o expressionismo, cit., p. 284.


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