Por RENATO DAGNINO*
Os candidatos da esquerda às eleições municipais, por serem de esquerda, não podem deixar de falar de Economia solidária
Neste momento, em que a democracia política se encontra ameaçada em todo o mundo e, aqui, chantageada por não termos conseguido, a esquerda, implantar uma democracia social, vamos ter eleições municipais…
Por ser a Economia solidária um espaço extraordinariamente significativo para retomar, ainda que num cenário bem distinto, a marcha interrompida há seis décadas de construção de nossa democracia social, e por ser o município um território especialmente propício para tanto, considero oportunas as observações que seguem.
Os candidatos da esquerda às eleições municipais, por serem de esquerda, não podem deixar de falar de Economia solidária. São suas características que irão convencer os eleitores a apoiá-los.
Ao se comprometerem com o fortalecimento das redes de produção e consumo e dos bancos da Economia solidária eles vão receber aprovação dos diferentes tipos de eleitores simpáticos às ideias de esquerda.
Os potenciais eleitores mais conscientes da crise, mais do que global, civilizatória, e de seus desafios econômicos, sociais, ambientais, sabem que sua característica de solidariedade (ao invés da competição da economia capitalista das empresas) faz com que ela seja hoje em todo o mundo reconhecida como a única possibilidade de enfrentamento desses desafios.
Eles sabem também que a autogestão (ao contrário do que ocorre com a heterogestão e do controle autoritário inerentes à economia capitalista), mediante a qual trabalhadoras e trabalhadores decidem sobre seu futuro sem a imposição de gerar lucro para o proprietário dos meios de produção, é que realizará nosso potencial cognitivo e assegurará o bem-viver de todos.
Aqueles mais preocupados com o fato de que dos 170 milhões de brasileiros em idade de trabalhar menos de 40 têm carteira assinada apoiarão esses candidatos por que sabem que os quase 80 milhões que nunca tiveram ou terão emprego só terão uma vida digna se puderem gerar suas próprias oportunidades de trabalho e renda. E que estas dependem da característica de propriedade coletiva dos meios de produção (e não privada ou estatal) em que se baseia a Economia solidária.
Há outros que ao ver a cada ano a classe proprietária, devido ao seu poder político-institucional, se apropriar de uma grande parcela do que é arrecadado como imposto, também percebem a importância da Economia solidária.
Eles sabem que, entre outros benefícios, 6% do total da riqueza que produzimos (PIB) é apropriado como serviço da dívida pública, 10% como sonegação, 5% como renúncia fiscal. E que aumentar o pouco que é destinado a satisfazer às necessidades da classe trabalhadora via a expansão da Economia solidária é a maneira mais efetiva de diminuir aquele poder.
Eles sabem, também, que a correlação de forças políticas não é ainda favorável para que a esquerda possa, com a legislação vigente, mudar essa situação, alterar a injusta estrutura tributária que penaliza os mais pobres e, desta forma, destinar recurso público para a Economia solidária.
Mas visualizam que existe um caminho possível de ser trilhado progressivamente com esse objetivo através da reorientação do recurso que o Estado gasta comprando os bens e serviços (saúde, educação, energia, comunicação, transporte, etc.) que recebemos em troca do imposto que pagamos. Esse recurso – a compra pública –, que equivale à quase 18% do PIB, é hoje destinado, com exceção de uma parte ínfima (o que vai para a aquisição de alimentos da agricultura familiar, o PAA e do PNAE), às empresas.
Os candidatos da esquerda devem apontar a seus potencias eleitores a infinidade de coisas que as prefeituras podem imediatamente, caso forem eleitos, comprar da Economia solidária. E que, paulatinamente, a mobilização do potencial de geração de conhecimento do cidadão e das pessoas envolvidas nos seus municípios com os diferentes níveis de ensino irá gerar a tecnociência solidária que tornará a Economia solidária competitiva em relação à economia capitalista e suas empresas.
O que há tempos falamos – “nosso próximo Minha Casa Minha Vida deve ter janelas de alumínio fabricadas na Economia solidária” – dá uma ideia do que é possível fazer com o acoplamento da reindustrialização solidária que propomos à empresarial, do Nova Indústria Brasil.
Ao propor esse curso de ação, nossos candidatos estarão também satisfazendo ao interesse de um quarto tipo de eleitores. Aqueles que sabem que é através da organização da classe trabalhadora para subverter a regra de ouro do capital, de que “ninguém pode produzir o que consome e ninguém pode consumir o que produz”, que ela fará o país a avançar. A justiça, a equidade, a responsabilidade ambiental e a realização da capacidade intelectual que têm os seres humanos de serem felizes depende dessa subversão.
Esses eleitores sabem, talvez mais do que os dos outros tipos, que os cinco processos retroalimentados (conscientização -mobilização-organização-participação-empoderamento) que a Economia solidária irá disparar no seio da classe trabalhadora é uma condição para o bem-viver.
E, também, que no curto prazo, ao longo desses processos e antes mesmo que se inicie o trânsito do “Estado herdado” e “Estado necessário”, são as trabalhadoras e trabalhadores organizados na Economia solidária os atores que garantirão a governabilidade dos governos de esquerda e exorcizarão o fantasma do fascismo.
O diálogo dos agentes públicos de esquerda com a Economia solidária deve levar em conta um aspecto que começa a ser percebido cada vez mais claramente: a necessidade de gerar uma “plataforma cognitiva de lançamento” que a torne competitiva em relação à economia capitalista. Refiro-me aqui à pertinência da adoção da perspectiva da adequação sociotécnica da tecnociência capitalista (aquela dos sete pecados capitais: deterioração programada, obsolescência planejada, desempenho ilusório, consumismo exacerbado, degradação ambiental adoecimento sistêmico e sofrimento psíquico) visando a conceber o pacote cognitivo que temos denominado tecnociência solidária.
Para isso, é necessário empregar o potencial das trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento de nossas instituições de ensino e pesquisa que já se deram conta desses sete pecados e perceberam que a separação em “desumanos” e “inexatos” que o capitalismo lhes impõe é um obstáculo ao reprojetamento da tecnociência capitalista; mediante, inclusive, o aproveitamento do imprescindível conhecimento historicamente espezinhado e excluído das suas agendas de ensino, pesquisa e extensão.
Essas trabalhadoras e trabalhadores do conhecimento (e me refiro aqui especialmente aos formadores que serão objeto da primeira fase do Programa de Qualificação Social e Profissional em Economia Popular e Solidária nos Institutos Federais) desempenharão um papel central – como formadores e como mobilizadores, respectivamente – nas duas ações imediatas e combinadas de consolidação e expansão da Economia solidária.
Na primeira, que tem a ver mais diretamente com a satisfação das necessidades mais urgentes das redes de Economia solidária (e cujo ataque é moralmente inadiável), eles atuarão como formadores, das pessoas com elas envolvidas. Aqui, a complexa tarefa de priorizar entre os temas que o movimento da Economia solidária vem abordando e os assuntos que os formadores trazem em sua bagagem de intelectuais militantes, pode ser facilitada mediante uma práxis associada aos cinco processos retroalimentados acima citados.
Na segunda ação, que tem a ver com a imprescindível expansão da Economia solidária e que depende crucialmente da sedução e convencimento, entre outros atores, dos agentes públicos de esquerda, eles atuarão como mobilizadores.
O amplo repertório de conhecimento, linguagem, experiência laboral, trânsito institucional vivência social que dominam é essencial para fazer com que esses atores se convençam da superioridade da economia solidária para a implantação do projeto político da esquerda.
O vetor que atravessa essas duas ações, e que por isso deve influenciar a substância da atividade dos formadores-mobilizadores, se dá no âmbito de um movimento absolutamente central a ser realizado por aqueles agentes públicos de esquerda para a consolidação das redes que é a orientação do poder de compra do Estado para a Economia solidária.
Voltando ao que motivou essas observações, reitero minha expectativa de que elas ajudem nossos candidatos da esquerda para seduzir seus eleitores a alavancar nossa democracia social pela via revolucionária da Economia solidária. E para lembrar que essa construção começa pelo que eles possam realizar mediante a reorientação da compra pública de seus municípios.
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Tecnociência Solidária, um manual estratégico (Lutas anticapital).
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