Chegou a hora!

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLÁVIO AGUIAR*

José Cardoso Pires e o 25 de abril

“É a hora!” (Fernando Pessoa, em Mensagem).

1.

Em meados de 1975 o novo governo português enviou uma missão de escritores ao Brasil para “explicar” o que fora a Revolução dos Cravos, o 25 de abril. Eram cinco ou seis escritores que percorreram universidades e outras instituições culturais brasileiras.

Foram também ao curso de Letras da USP, que então se localizava no “antigo” CRUSP, como uma tropa de ocupação para impedir o retorno dos estudantes ao seu conjunto residencial. Além disto havia uma outra ideia subjacente àquela “ocupação”: a de criar um Instituto de Letras, ideia naquele momento patrocinada sobretudo por um grupo de professores de direita, o chamado “Bando da Lua”.

Esta ideia naufragava desde uma assembleia de professores, realizada no ano anterior, em que vencera por pouca diferença a proposta de permanecermos no que restava da Faculdade de Filosofia, esquartejada pela reforma de 1970. Mas ela não desaparecera do horizonte. Até mesmo renasceria mais tarde, sob a égide de outros debates. Mas isto é outra história. Retornemos aos portugueses.

Do grupo, liguei-me mais, por motivos diferentes, a Ernesto de Melo e Castro, alto, de magreza elegante, barbudo, que, graças a razões afetivas, permaneceria no Brasil; e sobretudo a José Cardoso Pires, baixinho, de físico forte e atarracado, grande apreciador de conhaques e afins.

Contava então o José Cardoso com 50 anos de idade. Ainda viveria até os 75, sucumbindo a um derrame logo após seu aniversário, comemorado no mês de julho. Já era um escritor de fama; fora perseguido na ditadura salazarista por suas ligações com o Partido Comunista, de que se afastaria logo a seguir.

Nas Letras os escritores cumpriram sua missão na parte da manhã. Fui assistir sua palestra com meus alunos. Tinha 28 anos e concluía meu mestrado sobre o teatro de Qorpo-Santo. Fazia parte do corpo docente da Faculdade desde 1972, a convite do professor Décio de Almeida Prado, para repartir com ele as aulas sobre dramaturgia brasileira.

Por afinidades eletivas e por indicação de amigos comuns, à tarde fui encontrar-me com o José Cardoso num boteco do centro de São Paulo. Ficamos bebericando conhaques até o anoitecer e ele, com uma prosa de fino sabor, narrou-me sua participação nos acontecimentos do 25 de abril em Lisboa, no ano anterior.

Sem poder reproduzir seu sotaque lusitano, vou confiar-me ao que na minha memória ficou de sua curiosa narrativa, abrindo aspas e recordando com emoção a amizade que nos uniu.

2.

Contou-me ele:

“Na noite de 24 estava eu em minha casa quando, pelas dez horas, tocou o telefone. Atendi, e escutei a voz de uma velha amiga do Partido Comunista, que vivia clandestina há tempos. Disse-me: ‘Estás lá, José’? ‘Estou’, respondi. Disse-me então: ‘José, chegou a hora!’ E desligou!

Estupefato, contei o que que acontecera para a Maria Edite, minha mulher. Ela perguntou-me: ‘o que ela quis dizer com isto: chegou a hora?’. ‘Sei lá’, respondi, ‘vai ver que virão prender-me’.

Continuei: ‘Maria, prepara-me, por favor, uma maleta: umas peúgas, a escova de dentes, camisa, essas coisas”. Assim ela fez, e ficamos a esperar, sem poder dormir. Passada a meia-noite, batem-nos à porta, assim, já diretamente dentro do prédio. ‘Chegou a hora!’, eu disse à Maria, e abri a porta. Dei de cara com dois militares, um sargento com as divisas e um soldado de rifle a tiracolo, por detrás dele. Repeti para a Maria: ‘chegou a hora’!

Para minha surpresa, o sargento entrou e deu-me um abraço, a dizer: ‘sim, camarada, chegou a hora! Esta é uma revolução democrática, e viemos buscá-lo para levá-lo à televisão onde faça um pronunciamento’. Eu estava proibido de ir ao rádio e à televisão e de dar entrevistas. Fiquei desconfiado, mas fui. Afinal, eles estavam armados. Despedi-me da Maria Edite e desci com os dois à rua. Esperava-nos um caminhão do Exército e ao subir na sua carroçaria reconheci alguns camaradas que lá estavam em meio a outros soldados. Perguntei a um deles o que estava a acontecer. ‘Não sei’, disse-me, ‘só sei que chegou a hora!’. E lá nos fomos para a estação de televisão.

Lá nos levaram – éramos uns dez ou doze – para uma sala, com uma mesa ao centro e em cima dela uma garrafa de uísque. E lá ficamos horas a fio, a conversar e sem saber o que estava a acontecer. Até que já ao raiar do dia, eu pretextei ir à sala de banhos e consegui escapulir do prédio.

Procurei uma cabina telefónica e liguei para minha mulher. ‘Olha’. disse-lhe, ‘vou dar uma volta ao centro para saber o que se passa e volto para casa. Devo chegar aí por volta de uma dez horas’.

Foi uma loucura. Eu estava ao lado do Otelo Saraiva de Carvalho quando ele chegou ao edifício da polícia política, a PIDE, para soltar os prisioneiros e prender os carcereiros, que tinham atirado contra a multidão. Mataram algumas pessoas e feriram outras. Foram as únicas vítimas na revolução’.

Só voltei para casa três dias depois. E minha filha não voltou até hoje”.

Ainda falamos do Brasil e da esperança que a Revolução dos Cravos nos dava. Despedimo-nos emocionados.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES