Por MÁRIO BAGGIO*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Otto Leopoldo Winck
Falo por mim: Forte como a morte, de Otto Leopoldo Winck, é um dos romances mais impressionantes que li em anos. Pela trama e sua condução, pela sofisticada linguagem (que finge ser simples), pela engenhosa estrutura que vai e volta no tempo sem prejuízo algum para a compreensão, pelos personagens carregados de verdade, pelos diálogos prenhes de verossimilhança, pelas reflexões que provoca, pela pertinência do tema, pela riqueza do vocabulário, pela erudição do autor, pelo desfecho que não poderia ser mais impactante. Um livro que eu gostaria de ter escrito, tivesse eu o talento do Otto Winck.
Já na abertura o romance mostra a que veio, em referência explícita a A metamorfose, de Franz Kafka:
“Quando certa manhã Rosália Klossosky se levantou, depois de sonhos inquietos – e que sonhos, meu Deus! –, percebeu que havia uma mancha levemente rosada na palma de cada mão. Sob a luz do lampião de querosene, ela observava, intrigada, aqueles estranhos sinais.”
Há três grandes eixos na estrutura de Forte como a morte:
(i) Estamos na zona rural de uma cidadezinha do interior do Paraná, no seio de uma família de imigrantes poloneses, gente religiosa, humilde e iletrada, lavradores. Seu Boleslau e Dona Florentina não sabem o que acontece com sua filha adolescente, que passa, sem que houvesse explicação, a verter sangue em alguns pontos das mãos e na região da costela: são as “chagas de Cristo”. Rosália é uma “estigmatizada”, quase uma menina santa. Padres e médicos são chamados, sem que consigam decifrar o mistério.
A notícia se espalha e têm início as romarias: aparece gente de todo lugar em busca de milagre, cura de doenças, melhoria de vida etc. Doações em dinheiro, em nome da boa vontade e do espírito religioso, começam a ser feitas pelos romeiros aos donos da casa, os pais da “santa”. A semente do fanatismo foi plantada.
(Abro parênteses: num determinado momento da leitura, lembrei-me de Os Mucker, filme brasileiro de 1979, dirigido por Jorge Bodanzky e Wolf Gauer, que trata do fanatismo religioso entre imigrantes alemães nos anos 1870, também na zona rural de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Era uma seita cristã liderada por Jacobina Mentz Mauer, que, acreditavam os seguidores, era a reencarnação de Jesus Cristo. Fecho parênteses.)
(ii) Muito tempo depois, Rosália, agora casada com Felício e mãe de três filhos, vive num assentamento do MST, aqui chamado de “Movimento”, e participa da fundação de Nova Canaã, ocupação de uma fazenda improdutiva e ponto inicial da reforma agrária tão sonhada.
(iii) Padre Hugo, em aguda crise de fé e vocação. Na véspera de Natal, após celebrar a Missa do Galo, despede-se dos paroquianos e dá livre curso às dúvidas que tem sobre o Divino e Seus desígnios. É francamente adepto da Teologia da Libertação e da existência das Comunidades Eclesiais de Base e não esconde sua opção pelos pobres, ecoando o posicionamento de Dom Pedro Casaldáliga, Bispo do Araguaia.
Entrecortando os eixos narrativos, reflexões teológicas e filosóficas acerca da Kénosis, teoria cristã sobre o “esvaziamento” de Cristo, segundo a qual Ele teria se despojado (se esvaziado) de Seu poder e glória para tornar-se humano e submeter-se ao sacrifício nessa condição.
Os três eixos vão convergir, com grande impacto, no terço final do livro por meio da escrita habilidosa do autor, que soube equilibrar o tempo, o espaço e os acontecimentos, mantendo a curiosidade e o interesse. Não digo, mas garanto: o desfecho é surpreendente, impactante, que deixará o leitor dilacerado.
Na minha opinião, Forte como a morte, de Otto Leopoldo Winck, é um dos grandes livros deste ano da graça de 2024.
*Mário Baggio é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de A vida é uma palavra muito curta (Penalux).
Referência
Otto Leopoldo Winck. Forte como a morte. São Paulo, Editora aboio, 2023, 256 págs. [https://amzn.to/3Wno0Ry]
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