Sofismas econômicos

Imagem: Ekaterina Astakhova
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O desempenho coletivo de todos os inseridos no sistema não pode ser simplesmente inferido a partir do entendimento dos comportamentos dos seus componentes individuais

“Sofisma” é um argumento com dolo, isto é, construído com a intenção consciente de enganar o interlocutor, enquanto “falácia”, ao contrário, seria sem dolo. Embora seja construída sem a intenção de enganar, seria enganosa do mesmo jeito.

Sendo o sofisma um pensamento ou uma retórica com intenção de induzir ao erro, é apresentado com aparente lógica e sentido para leigos. Porém, possui fundamentos micros contraditórios com os macros – e leva a enganos.

Por exemplo, a abordagem do individualismo metodológico se concentra nas ações e decisões dos agentes individuais. Essas partes são componentes de um sistema complexo emergente de interações entre essas diversas decisões. Podem ser diferentes entre si e mesmo assim resultar em um padrão coletivo identificável pela análise macroeconômica – e distinta da intenção dos agentes individuais!

Portanto, o desempenho coletivo de todos os inseridos no sistema não pode ser simplesmente inferido a partir do entendimento dos comportamentos dos seus componentes individuais. Essa falácia lógica ocorre quando se assume o verdadeiro para as partes individuais de um sistema ser verdadeiro para o todo.

Ao confrontar várias hipóteses ou explicações, para um fenômeno macrossistêmico, a mais simples requer o menor número de suposições ou premissas e é a mentalmente mais plausível para os seres humanos. No entanto, uma simplificação excessiva pode não conseguir explicar a totalidade da realidade ou dos dados observados, inclusive porque haverá outras explicações igualmente simples a serem testadas. Ciência exige medição ou teste de hipóteses.

O Paradoxo da parcimônia indica um aumento generalizado na poupança pessoal levar a uma diminuição na demanda agregada. De acordo com a ciência econômica, haverá uma redução na produção ou renda e esta, por sua vez, reduzirá a poupança futura. É um sofisma ou uma falácia?

Paradoxalmente, a poupança pessoal é boa para indivíduos, mas não se todos deixarem de gastar! Pregar a massificação da poupança não é uma boa política…

Outro sofisma da composição aparece nas finanças corporativas. Quando as empresas contratam trabalhadores, elas aumentam seus custos de produção. Em análise de curto prazo, um arrocho salarial pode elevar os lucros das empresas.

No entanto, os trabalhadores recebem salários e gastam parte de sua renda em bens e serviços, contribuindo para a demanda efetiva na economia. Pela ciência econômica, um corte na massa salarial leva a uma queda na demanda por produtos e serviços e prejudica as empresas se elas produzem bens e serviços destinados ao consumo doméstico. Afinal, salário é custo, para empresas, mas a massa salarial é componente da demanda agregada. É um dilema empresarial?

No caso das finanças públicas, o sofisma da composição se apresenta na extrapolação das finanças pessoais, feita por fiscalistas ortodoxos, ao proclamarem: “a dívida pública interna deve ser paga em algum momento”. Analogamente, seria todos os bancos deverem pagar todas as suas dívidas com os seus depositantes em algum dia catastrófico. Ou todas as sociedades abertas terem de ser dissolvidas, algum dia, para pagar todas as obrigações aos indivíduos investidores em suas ações ou debêntures. Dívida é para ser rolada!

Uma ameaça é o sofisma da composição nas finanças bancárias. Se houver plena endogeneidade da moeda digital e/ou escritural, no sistema bancário, não será bom para os bancos, porque o multiplicador monetário poderá ir ao infinito!

O multiplicador monetário é o quociente ex-post entre os saldos de fim de período dos meios de pagamento (papel-moeda em poder do público e depósitos à vista) e da base monetária (papel-moeda em circulação e reservas bancárias). Expressa a forma pela qual os bancos em conjunto, isto é, o sistema bancário cria moeda.

Caso o papel-moeda em poder do público desapareça, diminuirá o incentivo para manter encaixe monetário nos bancos. Assim, o único controle monetário será via exigência de reserva bancária compulsória pelo Banco Central, senão o multiplicador chegaria ao infinito, caso não ocorresse antes um choque monetário contra dada oferta agregada, gerando uma “inflação verdadeira” – e a exigência.

Quando os bancos operam com alta alavancagem (ativos em relação ao capital próprio), estão mais expostos a choques no mercado e a riscos sistêmicos, como ocorreu na GCF de 2008. Se os depositantes perceberem um grande banco estar em risco de bancarrota, devido a ativos de baixa qualidade ou perdas substanciais em suas operações, entram em pânico e sacam seus depósitos em massa.

Essa corrida bancária tem efeitos devastadores sobre o banco e, pelo efeito contágio e/ou demonstração, sobre o sistema bancário como um todo. Se muitos depositantes sacarem seu dinheiro ao mesmo tempo, o banco pode ficar sem reservas suficientes para atender a todas as demandas de retirada, levando-o à insolvência e/ou à falência, caso a Autoridade monetária não o socorra.

Por fim, há também sofisma da composição nas finanças internacionais. Os investidores podem seguir a tendência de um boom nos preços dos ativos em todo o mundo. Aí quando tudo vai bem para eles e os países com superávit no balanço comercial, subitamente, uma potência econômica resolve fazer uma guerra comercial contra outra emergente por causa do déficit estrutural em seu balanço comercial e passa adotar um protecionismo de seu mercado interno, estabelecendo barreiras à importação.

Nesse contexto instável, quaisquer problemas em uma parte do sistema, como um colapso bancário em um país ou uma crise de endividamento externo em outro, podem se espalhar e afetar outras partes do sistema financeiro global. Isso ocorre devido às interconexões complexas e cadeias de contágio.

Portanto, economistas necessitam ser formados como analistas de sistemas complexos. Compreendem muitos componentes interativos com a capacidade de gerar uma nova qualidade de comportamento coletivo através da auto-organização, com a formação de estruturas temporais, espaciais ou funcionais.

Em termos coloquiais, para a explicar, basta lembrar: “em companhia de dois, três resultam em complexidade”… O mundo real vai muito além de pares e/ou raciocínios binários, tipo Tico-e-Teco (“2 neurônio” sem S e sem conversarem entre si em DR – “Discussão da Relação”).

Os sistemas complexos, como são caóticos, caracterizam-se pela extrema sensibilidade às condições iniciais. Seus comportamentos emergentes não são facilmente previsíveis ou completamente determinísticos. Logo, uma abordagem reducionista (tipo bottom-up ou de baixo para cima) é uma descrição incompleta de um fenômeno macro sistêmico complexo. Necessita também de uma análise top-down (de cima para baixo) complementar.

Deve-se alertar: complexo não significa complicado. Algo complicado compreende muitas partes pequenas, todas diferentes, e cada uma delas tem o seu próprio papel no “mecanismo” dinâmico. Um sistema complexo resulta de muitas partes similares, cujas interações são capazes de produzir um comportamento globalmente coerente.

Sistemas complexos têm muitas partes interagindo através de comportamentos de acordo com regras simples e individuais. Mas o comportamento do sistema como um todo não pode ser previsto apenas a partir dessas regras simples como ocorrem em laços familiares, afetivos, profissionais, religiosos, políticos etc.

Suas interações resultam em propriedades emergentes. Como Aristóteles escreveu: “o todo é diferente da mera soma de suas partes”. Ele se configura, de maneira dinâmica, a cada momento e a cada escala de análise.

Complementarmente, Aristóteles também disse: “a única verdade é a realidade”. Porém, hoje, busca-se a integração transdisciplinar de distintos níveis de realidade: objetiva, consensual e pessoal.

A realidade objetiva é aquilo “concreto e dado, independente da crença”. A realidade consensual é aquilo “combinado ser real” pelo coletivo, por exemplo, dinheiro ou valorização do mercado. A realidade pessoal é aquilo considerado como “real para nós mesmos”. Um valor pessoal, porém, pode não ser validado, nem pelo coletivo (como consensual), nem pelo objetivo (como objetos sólidos) – e a pessoa viver em uma realidade paralela. Os religiosos e os ateus não vivem em mundos paralelos?

A conclusão é: a verdade é uma aproximação provisória por haver distintos níveis de realidade. Lembro-me de Hegel afirmar: “a verdade é o todo”. É inalcançável…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]


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