Saúde mental

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Por ALFREDO BALEEIRO*

Considerações sobre as campanhas e a prevenção ao suicídio no Brasil

“Saúde é a nossa capacidade de lutar contra tudo o que nos oprime!”

É possível estarmos em uma boa condição de saúde mental no Brasil em um momento em que metade da população do país está vivendo em situação de insegurança alimentar, sem perspectivas ou segurança em relação a como estará a condição de sobrevivência no próximo mês, semana ou mesmo amanhã? Em que temos cerca de 15 milhões de desempregados/as e outra maioria de trabalhadores e trabalhadoras em condição de profunda informalidade, precarização e superexploração?

A classe trabalhadora vem sofrendo uma violenta retirada de direitos básicos em todas as dimensões da vida social, como o acesso à saúde pública, que está sendo cada vez mais negado por causa do sucateamento e destruição do SUS em benefício dos setores da saúde mercadológica; como o direito à educação regredindo para o patamar de um direito para poucos; como a intensificação da violência patriarcal em todas as suas formas e dimensões, afetando a existência das mulheres(maioria da população), sobretudo as mulheres negras, em cada aspecto de seus cotidianos; como o racismo delegando à marginalização, superexploração, encarceramento ou morte os negros e negras (também maioria da população).

Tudo isso em um momento histórico em que vivemos um profundo avanço ultra conservador e uma fascistização de setores da sociedade, que tem empurrado a consciência social para um intenso exercício de racismo, violência patriarcal, LGBTfobia, xenofobia, intolerância religiosa e naturalização de todo tipo de violência, combinado com uma acelerada destruição da natureza e das formas de vida e dignidade de inúmeros povos e comunidades. E, não podemos esquecer, em meio a uma pandemia que teve e segue tendo consequências drásticas no modo de vida social e que até o momento já levou a quase 600 mil mortes, cuja maioria ocorreu por omissão e negacionismo. Esses aspectos que vivemos se complementam ainda por atravessarmos nesse momento histórico uma profunda crise do capitalismo, momento em que o Estado burguês tem se reorganizado para mais que nunca eleger a maioria do povo brasileiro (as classes populares) como seu inimigo e aprofundar o abismo da desigualdade social no Brasil.

Esse é o nosso país em 2021, onde no mês de setembro, pelo menos desde 2014, são construídas as campanhas de prevenção ao suicídio, o Setembro Amarelo. Porém, o contraditório e aspecto importante a ser mencionado, é que geralmente todo esse contexto social mencionado, que significa aquilo que mais afeta e direciona as nossas vidas, são praticamente ausentes nas campanhas do Setembro Amarelo.

Isso significa dizer que as campanhas de prevenção ao suicídio e o debate sobre saúde mental que elas suscitam não tem importância? De forma alguma! Elas são profundamente necessárias, inclusive enquanto campanhas permanentes, porém, é necessário apontar primeiramente que não existe saúde individual sem saúde coletiva, e saúde coletiva significa basicamente em qual mundo, em qual sociedade e quais condições materiais estão colocadas para a nossa vida enquanto povo; e na sociedade capitalista, isso significa quais condições materiais estão colocadas para uma classe fundamental e majoritária da sociedade, a classe trabalhadora, as classes populares, a qual nós pertencemos.

Por isso, é necessário romper com a lógica individualizante da saúde que, em especial através da ideologia neoliberal, tenta nos fazer compreender, assim como em outras dimensões da vida, que somos indivíduos isolados e que tudo aquilo que nos afeta e nos interessa se dá em caráter individual, fragmentado, desvinculado dos aspectos sociais, culturais, econômicos e comunitários, aspectos estes que permeiam e são a base de nossas vidas. E entender essa base determinante não está em contradição com nos entender também como sujeitos e sujeitas singulares, ou seja, com histórias, percepção, personalidade, subjetividades únicas, mas sempre atravessadas pelo outro, pela vida social.

Outra reflexão que se faz importante é sobre a necessidade de entendermos a lógica pela qual a saúde é exercida historicamente pelas classes dominantes no Brasil, que é a lógica da saúde como mercadoria e que justamente por isso, é fator produtor de sofrimentos, o que nos coloca o compromisso de invertê-la em uma perspectiva de saúde popular, que atenda aos interesses da maioria do povo, passando a ser entendida como a nossa capacidade de lutar e viver com dignidade. Nessa perspectiva, fazermos o exercício de compreender o ser humano como um organismo integral, não dividido no paradigma inexistente entre corpo e mente, ou fragmentado entre órgãos e sistemas dissociados, como o faz a ciência dominante. Para isso, é necessário resgatar, por exemplo, os conhecimentos e experiências tradicionais dos saberes populares, formados na história de cuidado de nossos povos, através das sementes, das plantas, da espiritualidade.

Dito isso, afirmamos que o Setembro Amarelo no Brasil é uma campanha de grande relevância, inicialmente articulada pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) e busca estimular uma prevenção ao fenômeno do suicídio, que é uma das maiores causas de morte no mundo e um fenômeno cada vez mais crescente no Brasil, que denuncia o profundo sofrimento psicossocial em que nos encontramos. A Organização Pan Americana de Saúde aponta que cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio anualmente no mundo, e uma quantidade ainda maior, tentam o suicídio, o que nos leva a imaginar a quantidade de pessoas em processos de sofrimento e com ideações suicidas. É a segunda maior causa de mortes entre pessoas entre 15 a 29 anos, bem como um fenômeno presente em todo o mundo. Porém, identificou-se que, em 2016, 79% dos suicídios ocorreram em países em que a maioria da população possui baixa e média renda.

Segundo informações disponíveis no Boletim Epidemiológico (2017) do Ministério da Saúde, entre 2011 a 2015 foram registrados 55.649 óbitos por suicídio no Brasil, representando 5,5 suicídios a cada 100 mil habitantes. No mesmo estudo, aponta-se que o risco de suicídio é quatro vezes maior para os homens do que para mulheres, a partir da consideração de que os homens têm maior êxito na execução, apesar que um fator importante é o de que há um quadro maior de tentativas por parte das mulheres. Outro fator pouco mencionado é o de como o suicídio tem afetado fortemente os diversos povos indígenas a partir da relação de constantes violências e subjugação em que estão submetidos no Brasil. Logo, entendemos que se trata de um grave problema de saúde pública, que afeta o conjunto das classes populares.

Um dos maiores fatores associados ao suicídio é a depressão. Esta, enquanto consenso científico, geralmente é manifestada por um rebaixamento afetivo, pouco prazer na realização das atividades antes tida como agradáveis, cansaço constante ou perda de energia, diminuição da capacidade de concentração, tomada de decisões ou mesmo de pensamento, e também sintomas de alterações do sono, apetite, comportamento, isolamento social, crises de choro, ideação suicida, entre outros. As causas da depressão podem ser compreendidas como biopsicossociais, logo, é evidente que estão fortemente vinculadas ao contexto discutido anteriormente, com ênfase a elementos também já apontados, como as situações de violência contra as mulheres e na família, que além destas afetam crianças, adolescentes e idosos/as, como também fatores ligados à situações de alcoolismo, uso abusivo de outras drogas, alienação parental, precarização econômica, LGBTfobia e transfobia, entre outros fatores relacionados ao ciclo das principais violências constituídas em nossa sociedade. Diante disso, cabe a reflexão de um fator importante e costumeiramente apontado: diferentemente de esconder, não falar, tratar como tabu, medo e estigma, é necessário expressar a realidade do suicídio no Brasil, apresentar as formas de prevenção, as políticas e dispositivos, e debater amplamente o fenômeno como um problema de saúde pública a ser enfrentado.

O enfrentamento ao problema de saúde pública passa também, evidentemente, pelo fortalecimento das políticas públicas de prevenção e promoção da saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) – que possui dispositivos como a política de Atenção  Básica, os NASF’s, toda a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS),como os CAPS, a política de desinstitucionalização, redução de danos, etc. e no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), os CRAS, os CREAS, os Centros de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, entre outros. Sabemos que essas políticas foram e ainda são insuficientes, apesar de muito importantes. Porém, sabemos também que todas essas políticas vêm sendo intencionalmente precarizadas a partir da retirada massiva de recursos, fruto das políticas neoliberais levadas a cabo principalmente pelos Governos Temer e Bolsonaro, representantes dos interesses de setores da burguesia em ofensiva contra as classes populares, expressadas por exemplo, na EC 95 (teto de gastos) e em outras reformas neoliberais que vem nos últimos períodos desmontando toda a rede de proteção social e aprofundando a miserabilidade.

Outro aspecto de difícil enfrentamento no problema do suicídio e da saúde mental no Brasil são os estigmas históricos que esse campo enfrenta. No Brasil, a história da violência manicomial é profunda, nesse processo, tivemos avanços e conquistas importantes no campo institucional, a partir da Reforma Psiquiátrica e da construção das políticas de saúde mental, mas ainda permanecem contradições e aspectos muito fortes da ideologia manicomial, o que pode ser conteúdo para um outro texto. O fato é que ainda hoje essa violência alimenta estigmas repressivos contra a “loucura”, como a lógica da suposta racionalidade, que nega e diminui os sofrimentos mentais e os associam com fraqueza, frescura, drama, ou mesmo religiosos, que atribuem o sofrimento à “falta de Deus”, etc.

Aliado a esses estigmas, o histórico de atuação no campo da saúde mental pelas ciências como a Psiquiatria e a Psicologia, que ainda hoje, apesar das importantes disputas internas, não lograram romper com seu caráter hegemônico, que representa na sua prática ainda um enorme distanciamento das classes populares e pouca inserção no campo da saúde pública e dos direitos sociais e comunitários, ficando restrita aos poucos que podem pagar para ter acesso ao campo da clínica médica e psicológica. Logo, significa dizer que não temos no Brasil uma rede de saúde mental estruturada e enraizada. Pelo contrário, a experiência construída da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, apesar de fundamental e com grande potencialidade, não foi implementada no Brasil devido à recusa imposta pelos setores que controlam a saúde, representando os interesses das classes dominantes ao estabelecerem a precarização e mesmo a ausência de qualquer política de saúde mental como a lógica dominante na maioria dos territórios, aprofundada nesse momento histórico.

Diante do que já foi exposto, entendemos que os desafios da prevenção ao suicídio e a promoção de saúde no mundo e no Brasil passam por desafios gigantescos e estruturais. Eles se relacionam desde a luta pela reestruturação, criação e fortalecimento das políticas públicas no seio do Estado através do SUS, do SUAS e seus dispositivos de ação, das campanhas e da articulação em rede dos serviços. É de fundamental importância, ainda, fortalecer as chamadas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) como ferramentas de cuidado singulares, que abordam a saúde na sua integralidade, enquanto direito, com objetivo de promover a vida e a dignidade, e não de servir ao lucro de setores empresariais privados da indústria farmacêutica e hospitalocêntrica, e que incorporam (ou devem e podem vir a incorporar) um caráter popular e comunitário, exercendo um papel contra hegemônico frente às ciências e medicina dominante, que é limitada, que violenta e fragmenta as pessoas e o direito à vida com plenitude. E por isso, com um caráter de saúde popular, precisam ser expandidas e democratizadas no âmbito da saúde pública do Brasil.

Sendo assim, entendendo o contexto debatido e o que está em questão de forma mais ampla, enfatizamos que o enfrentamento ao problema do suicídio e do sofrimento psicossocial atravessa também a luta pela construção do conjunto de amplos direitos do povo. Isso implica, de modo mais imediato, em interromper o projeto bolsonarista e neoliberal em andamento – que representa o aprofundamento da violência contra a classe trabalhadora e forte vinculação com os setores da burguesia responsáveis pela destruição dos direitos sociais e da natureza – combinando esse enfrentamento coma construção e avanço de um programa e projeto popular que implique desde a democratização da educação no campo e na cidade; o enraizamento, ampliação e fortalecimento do SUS e SUAS a partir de seus princípios; a reforma agrária popular; a soberania e segurança alimentar para todo o povo; a garantia do direito à terra e à vida aos povos e comunidades tradicionais; a interrupção da destruição e do saqueamento dos nossos bens naturais; amplo acesso aos direitos básicos de moradia digna, emprego e renda; da diversidade cultural; dos distintos direitos e rompimento das violências que enfrentam a juventude, as mulheres, negros e negras, LGBTIA’s+, setores esses que conformam a maior parte do povo brasileiro; e um amplo conjunto de transformações que constituem o Projeto Popular para o Brasil, que implica a organização popular como base e que compreendemos ser viável somente a partir do exercício autônomo e soberano do poder pelas classes populares, nos conduzindo para a destruição do projeto de morte do Estado capitalista burguês e a transição para a sociedade socialista.

PS – O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias, de forma gratuita, através do número de telefone 188.

*Alfredo Baleeiro, psicólogo, é militante da Consulta Popular Núcleo Caetité-BA.

 

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