A geleia geral da memória

Câmara Municipal de Porto Alegre alagada. Foto de Elson Sempé Pedroso
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Por JORGE BARCELLOS*

As chuvas que caíram no Rio Grande do Sul resultaram também em graves prejuízos à memória contida no acervo histórico da Câmara Municipal de Porto Alegre

“Alguém [que] chora por mim”
(Geleia Geral, Gilberto Gil e Torquato Neto, 1968).

As chuvas que caíram no Rio Grande do Sul não vitimizaram apenas a sua população. Também resultaram em graves prejuízos à sua memória. Do ponto de vista dos cidadãos, milhares perderam seus álbuns de fotografias, suporte essencial das comunidades para arquivar lembranças. No meio da dor, cidadãos relatavam o esforço para resgatar fotografias antigas. Além de cidadãos, instituições também foram atingidas como o Museu de Artes do Rio Grande do SUL (MARGS) e o Arquivo de Mapas de Terras Públicas do Rio Grande do Sul, localizado na Av. Praia de Belas, localizados em regiões tomadas pelas águas.

O arquiteto Juhani Pallasmaa diz que “é difícil recordar, por exemplo, uma fotografia familiar ou icônica como uma imagem bidimensional em papel fotográfico: tendemos a lembrar o objeto, pessoa ou evento retratado em sua plena realidade espacial”, razão a mais para considerar como trágica toda e qualquer perda de suportes de memória.

Foi o que também aconteceu com o acervo histórico da Câmara Municipal de Porto Alegre, instituição onde trabalhei por mais de 36 anos, 20 apenas no Memorial. As primeiras imagens do que aconteceu com meu lugar de trabalho depois das chuvas do dia 16 de maio. Até então, os servidores só sabiam que a enchente tinha alagado o andar térreo. Foi o fotógrafo da câmara Elson Sempé Pedroso que teve a iniciativa de divulgar e registrar o que sobrou depois que a água baixou: as nove primeiras fotos que chegaram ao grupo do WhatsApp dos servidores, para eu que vivi três décadas no legislativo, eram desoladoras.

O primeiro andar, logo na entrada, onde eu fazia a recepção dos alunos que visitavam o legislativo no projeto Visita orientada, estava tomado por lama. Na sala do Ambulatório Médico da casa, onde já levei alunos e estagiários, móveis derrubados, tudo sujo. Em frente ao pórtico do legislativo, por onde ônibus escolares vinham para estacionar no pátio da câmara para depois serem atendidos, peixes estavam sobre a grama. Os jardins de inverno, espaços que serviam para chamar a atenção dos estudantes para obras artísticas neles instalados ou mesmo a microflora, encharcados. As imagens mostravam a água cercando a Câmara, e dentro dela, pisos levantados, exatamente como nas casas das famílias da capital atingidas pela cheia e transmitidas pelos meios de comunicação. A “casa do povo” sofria como seu povo.

A última imagem daquela seleção que chamou minha atenção é do Memorial. Ela mostra um dos armários históricos onde estavam documentos valiosos, vazio, felizmente, marcados pela água. Pelas imagens, é possível ver que a água chegou a meio metro de altura, pouco considerando a proximidade do rio, provavelmente porque ali ainda fez diferença a barreira de proteção. Um segurança fornece luz para que a foto seja feita, porque naquele momento, a Câmara não tem energia elétrica.

Foi então que vi, ao fundo, o imenso armário deslizante em ferro também atingido pela água e pude imaginar a tragédia em termos arquivísticos. Memorial, assim como o Protocolo e o Arquivo Histórico, são setores localizados no andar térreo da instituição para facilitar acesso do público. Nunca se imaginou que seus arquivos, a base material da memória política do legislativo, e, portanto, da cidade, pudessem estar em risco. Há também neste andar os arquivos da área de Recursos Humanos, com toda a vida dos servidores e vereadores da casa. Aqueles arquivos deslizantes fechados tinham a função de oferecer segurança, mas como as comportas da cidade, não foram o suficiente para o avanço das águas.

Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre alagado. Foto de Elson Sempé Pedroso/ CMPA

Posso falar do Memorial pois ajudei a reunir seu acervo. Eu me entristeço não apenas pelos documentos perdidos, mas pela biblioteca que ajudei a organizar ali. Porquê uma biblioteca? Para pesquisa. Você olha os livros encharcados e lembra o fato de que ao longo do tempo em que foi chefe ali, eu mesmo adquiria com recursos próprios a literatura que necessitava para os projetos que criei como Visita Orientada, Aula na Câmara, Câmara vai a Escola e Exposições Itinerantes.

Só este último projeto, que chegou a 50 exposições, foi feito com base nesse acervo. Felizmente, a maior parte da biblioteca e da documentação do Memorial não foi atingida, já que apenas a estante mais próxima do solo foi tocada pelas águas. Mas o estrago é suficiente para provocar uma imensa tristeza, compensada por imaginar o enorme esforço dos servidores que conseguiram salvar a maior parte dos acervos, de vereadores, mapoteca e objetos, dias antes.

Um gesto heroico, em condições de ausência de luz e no fim de semana, que infelizmente não impediu que fossem perdidos parte de dvds das gravações da tv Câmara, e parte de negativos de fotografias, outra base importante da memória. É que quando você salva, você tem de fazer escolhas no tempo em que as águas sobem. Exatamente como o cidadão acuado pelas águas.

Fui chamado pela chefe do memorial numa terça-feira, 4/6, para auxiliar na indicação de obras que deveriam ser estudadas para futura recuperação. Eu voltava à Câmara exatamente um ano após o início de minha aposentadoria e ao meu espaço de trabalho. Como na famosa cena de O Planeta dos macacos (1968), onde o personagem Taylor, interpretado por Charlton Heston, encontra a parte de cima destruída da Estátua da Liberdade e se dá conta de que está em casa, eu me dava conta do que as águas fizeram com a memória do legislativo: na ampla sala onde era antes um refeitório de servidores, foi montado o bunker de resgate de centenas caixas de acervo, documentos e livros de diversos setores atingidos.

Essa cena foi a revelação da face da destruição de uma memória. Na área de documentos que cabia a mim colaborar naquele espaço, algo em torno de 3m2, indiquei pastas de arquivos de jornais, documentos datilografados e outras doações que deveriam que deveriam ser avaliadas para fins de preservação. É a primeira triagem. Existirão outras. É que acervos, processos e fotografias são fontes primárias fundamentais para a memória da casa e da cidade que cabe a câmara preservar.

No contexto da enchente, é sua responsabilidade no limite que a técnica de salvamento permitir. Felizmente, graças a ação de seus servidores, chefia, acervos de vereadores foram preservados. Eles revelam a agenda do vereador, suas preferências políticas. São eles que ajudam o vereador a fundamentar os projetos de lei. Quando um vereador doa um acervo, ele doa seu “modo de pensar”.

Havia coleções de recortes de jornais que não eram do acervo de vereadores. Eles eram um acervo transferido pela biblioteca para o Memorial. Quando fui chefe, me preocupei com acervos que estavam em outros setores e que tinham valor para memória. A antiga hemeroteca da Biblioteca, organizada nos anos 1970 e 1980 pela bibliotecária chefe à época, quando foi introduzida o processo de digitalização e contratada empresa para este serviço, foi suspensa. Havia então uma enorme quantidade de recortes de jornais, tudo o que saia na imprensa, à época, organizado. Esse material é inestimável.

Imagina o tempo que o pesquisador hoje leva para encontrar essas informações nos jornais de época em nossos museus, como o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. O material organizava a produção jornalística da cidade sobre a câmara, trabalho da vida de 30 anos de uma servidora. Aquilo era parte da memória dos anos 1970 e 1980 do legislativo que estava sob as águas, tudo organizado em pastas ano a ano, por assunto. Tem ideia do trabalho que isso dá? É uma vida dedicada a catalogação. Isso é notável. Nas sucessivas reformas administrativas da câmara, o cargo de arquivista desapareceu. Com a enchente, é hora de recria-lo. Fica a dica aos vereadores.

Acervo do Memorial atingido pelas águas. Foto Jorge Barcellos (acervo pessoal).

Vi também uma série de arquivos de fichários. Essas peças eram muito importantes porque eram as fichas de processos que ficavam no antigo Protocolo, na câmara velha, ainda no Prédio da Siqueira Campos. Com a mudança de prédio nos anos 1980, eu as levei para o memorial e depois foram para o arquivo histórico da Câmara. Porque elas são importantes?

Quando eu entrei no legislativo, no início dos anos 1980 e antes da revolução informática, um servidor organizava em fichas as informações de um processo, na linha dos processos mais antigos, tradição que vinha dos anos 1940 em diante. O problema é que com a informatização, os processos foram para um lado, o Arquivo Histórico, e as fichas para outro, o Protocolo. E no Arquivo Histórico, a organização é por número de processo. Como achar um tema? Não pode. Tem de ter um número. Só através das fichas. Coisas da organização arquivística.

A única forma de achar os assuntos ou vereadores e seus processos era por meio daquelas fichas. Entendeu o drama do pesquisador? Sem número, sem pesquisa. Os processos num setor, as fichas noutro. Imagine a dificuldade. Quando me dei conta disto, imediatamente corri para as fichas irem para o memorial. Fichas. Parece que não tem importância, mas tem. Entende? Nos anos 1980 e 1990, eram estes os problemas que enfrentávamos no campo da memória em mutação com o advento da informática e que aquele acervo ali encarna. As soluções começaram a vir nos anos 2000, com a ideia da digitalização. Esse processo estava em andamento, mas a chuva chegou antes. É hora de acelerar o processo, outra dica.

Caixas de acervo dos demais setores atingidos Foto: Jorge Barcellos (acervo pessoal)

A maior parte dos livros foi salva, especialmente os relativos à história de Porto Alegre, essenciais para a pesquisa no Memorial. Outro momento de emoção. A parte que foi atingida pelas águas era produto da captação de doação institucionais para fins de pesquisa. Você começa a lembrar que cada livro foi uma luta, cada obra uma busca. Cada instituição que lançava uma obra, lá eu ia buscar um exemplar doado para a biblioteca. Imaginou o trabalho de “formiguinha” que é isso? Ver um lançamento e ir pedir por correspondência e assim um acervo vai se constituindo com a história recente da cidade e utilizado nos projetos da casa: livros sobre a história do Registro Notarial, da vida de Assis Brasil, tudo isso ajudava a construir uma história imediata da cidade e do estado. Aqueles livros fazem parte, portanto, da trajetória intelectual de uma instituição.

Exatamente como estavam os livros que vi? Viraram… geléia. Geleia geral, como a música. A maioria sofreu o que se chama de emblocamento, que é a união das folhas entre si. Não sou restaurador e não faço ideia se aquele material poderia ser salvo, mas dadas as condições, duvido. Meu critério foi considerar apenas para fins de estudo de preservação as obras raras ou notáveis do acervo, sem possibilidade de encontrar em sebos, livrarias ou outras bibliotecas e o material documental de base.

Para os primeiros, seleção com base na avaliação visível do acervo. Para os segundos, indiquei a seleção integral para uma avaliação posterior. A seleção tem como base princípios enumerados no documento “Recomendações para o resgate de acervos arquivísticos danificados por água”, produzido pela Câmara Técnica de Preservação de Documentos do Conselho Nacional de Arquivos (2012) que indica, entre as técnicas, a seleção para fins de congelamento e posterior recuperação. É importante dizer que as equipes fizeram todos os esforços para a preservação da infraestrutura da câmara municipal após a enchente, através da edição da Ordem de Serviço 6/2024, que aprovou o Plano de Recuperação e Contingências da Câmara, o qual define todas as atividades, tarefas e orientações aos servidores para possibilitar a reocupação das instalações com segurança, após a calamidade sofrida.

Alinhado a esta proposta, apontei o que considerei raro e que estava nos bens do memorial atingidos e solicitei que fosse incluído: um exemplar do Regulamento Interno da Companhia Carris, publicado em 1929, um raro volume que descreve a importância dos cobradores dos ônibus; um exemplar da Contribuição ao Estudo da Urbanização de Porto Alegre, de Ubatuba de Farias, página da história do urbanismo da capital do qual foram feitas pouquíssimas reproduções nos anos 1930. Além disso, obras que considerei simbólicas e raras para a registrar a enchente na câmara, entre outras peças, como o Atlas Ambiental de Porto Alegre, de Rualdo Menegat, uma obra notável de referência. Se tivéssemos ouvido o autor, talvez o dano não tivesse sido tão grande.

Perderam-se muitas coisas infelizmente, como livros e kits da ação educativa de diversas instituições doadas ao Memorial. As coleções em caixas de fotografia, organizadas pelo Banco Itaú, hoje esgotadas, eram inspiração para projetos de fotografia junto as escolas com o material do legislativo; publicações notáveis sobre direitos humanos para crianças, usados nas visitas, transformaram-se em geleia. Não há o que fazer e os responsáveis pelos projetos terão de se reinventar para retomar as ideias desses projetos.

Além disso, terão de enfrentar o drama de que recuperar o que for possível desta parcela de acervo comprometida com a tragédia das enchentes não será barato. Envolverá qualificação de servidores, disponibilização de recursos e equipamentos, entre outras medidas. Isso precisa ser feito porque envolve o legado do legislativo: o parlamento só estará habilitado a deixar algo para a cidade, para as futuras gerações, oferecendo o que ela realmente é, sua história. Para isso é preciso que tenha consciência de que aqueles documentos molhados dão a consciência do que é a instituição, do que tem a oferecer a seus cidadãos.

Por que tanto trabalho em salvar documentos antigos? Porque história importa. Muitas vezes, os vereadores e servidores estão perdidos em sua rotina. Por isso, mais do que nunca, precisam realizar uma viagem interior que só a memória possibilita, o autodescobrimento do que se é que somente a história oferece. Agora, ao preservar sua memória da e na enchente, o parlamento reconhece novas formas de estar político na capital e seu papel nisso tudo ao longo do tempo.

Somente se o parlamento assumir um compromisso consigo mesmo, com a preservação de sua memória, ele poderá assumir um compromisso com o outro, com o cidadão. Se a imagem da tragédia documental tem um mérito, é de servir para aprimorar a cosmovisão dos vereadores, de lhe oferecer uma nova leitura do mundo, de que os políticos também estão conectados com a natureza e que devem, em sua esfera de competência, fazer esforços para sua preservação.

Isso também é empatia: atingida pela enchente, o legislativo sente a mesma dor que sentem seus cidadãos, e por isso, está em condições ampliar sua conscientização política e ambiental para cumprir sua função. Como na música “Geleia Geral”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, do disco Tropicália ou Panis et Circenses (1968), a geleia geral de documentos é um chamado para os vereadores reconhecerem a importância da agenda ambiental, ao mesmo tempo em que se pede uma nova visão de nossos políticos sobre o tema.

Jorge Barcellos, historiador, é doutor em Educação pela UFRGS e servidor aposentado do legislativo municipal de Porto Alegre. Autor, entre outros livros, de Educação e Poder Legislativo (Clube dos Autores).


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