A derrota do neofascismo no Chile

Imagem: Hugo Fuentes
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ATILIO A. BORON*

Foi rejeitada uma proposta com vícios processuais, devido ao caráter antidemocrático de sua gestação e funcionamento; e à redução de direitos e garantias ainda contidos na Constituição de 1980

O referendo de domingo no Chile não era apenas sobre a aprovação ou não de uma retrógrada aberração constitucional, mas também um primeiro ensaio de disposição de forças políticas com vistas às eleições presidenciais de novembro de 2025. Felizmente, o veredito das urnas pôs fim à nova proposta constitucional e proporcionou um duro revés às esperanças da direita neofascista de estabelecer-se na pole position da futura corrida presidencial. Isto porque, se o “A favor” tivesse triunfado, o Partido Republicano de extrema direita e seu líder, José Antonio Kast, já teriam iniciado a campanha presidencial procurando capitalizar a decisão tomada pelo povo chileno, aprofundando a desorganização e a desorientação dos setores democráticos e progressistas.

Pouco depois de conhecido o resultado, surgiram vozes, em muitos casos mal intencionadas: diziam que com seu voto a população tinha ratificado a Constituição de Pinochet. Esta conclusão não é apenas maliciosa, mas também errônea, porque não era isso que estava em jogo. Não se pode esquecer que, em 2020, 78% do povo chileno votou para rejeitar este corpo constitucional. O que se decidiria no domingo era se a nova proposta, elaborada nos esgotos do poder oligárquico chileno, seria aceita pela população. O resultado foi categórico: o “Contra” venceu com 56% dos votos, apesar das intensas campanhas de desinformação, de resignação e de incentivo ao abstencionismo, desesperadamente lançadas pela direita.

O voto agora é obrigatório no Chile, mas a taxa de participação de 88% diz muito sobre o fracasso desta campanha e a saudável vontade de participar que foi evidente neste domingo. Em poucas palavras, rejeitaram uma Constituição que violava direitos sociais e trabalhistas fundamentais, abençoava a mercantilização total do meio ambiente, enfraquecia ainda mais a soberania nacional sobre os bens comuns, consagrava a impunidade em matéria de direitos humanos e restringia significativamente os direitos das mulheres e das diferentes identidades de gênero.

Em suma, foi rejeitada uma proposta com vícios processuais, devido ao caráter antidemocrático de sua gestação e funcionamento; e, substancialmente, à redução de direitos e garantias ainda contidos na Constituição de 1980, especialmente se considerarmos que – de acordo com um estudo do PNUD sobre mudanças constitucionais em nível internacional – no período pós-ditatorial, este diploma tinha sido objeto de 69 leis de reforma. Isto fez dela a Constituição mais reformada da história do Chile.

Como resultado destas alterações – que, de todo modo, mantiveram a filosofia básica de seu redator reacionário, Jaime Guzmán Errázuriz –, foi eliminado o artigo 8º, que “proibia os grupos ou partidos de caráter totalitário ou baseados na luta de classes”, ou seja, os comunistas; foram eliminadas também a faculdade presidencial de exílio e a exigência de que as reformas constitucionais fossem aprovadas por dois Congressos consecutivos. Além disso, anulou-se a existência de senadores designados e vitalícios (9), que se somavam aos 38 eleitos por vontade popular. E o mandato presidencial foi reduzido de seis para quatro anos.

Tendo em conta estes antecedentes, a proposta urdida pelos libertários constituía um retrocesso significativo que, felizmente, foi abortado pela derrota do “A favor”. O Chile terá que enfrentar nos próximos anos a tarefa de se aprovar uma Constituição genuinamente democrática, expurgada dos legados de Pinochet e das aspirações restauradoras e autoritárias de sua voraz classe dominante e da partidocracia que governa em seu nome, nenhuma das quais aceita a instauração de uma democracia digna desse nome.

Isto não acontecerá no restante do mandato de Gabriel Boric, mas é um assunto inacabado que deverá ser resolvido sem mais delongas no próximo mandato presidencial e que exigirá enormes esforços de conscientização e organização das forças democráticas e populares. Entretanto, é tempo de festejar. Não porque se elegeu algo bom, mas porque o povo chileno impediu sabiamente que o mau fosse sucedido por algo muito pior. E, aliás, vendo as coisas deste lado dos Andes, impediu-se que uma vitória da extrema direita no Chile reforçasse a “selvageria de mercado” do anarcocapitalismo argentino.

*Atilio A. Boron é professor de ciência política na Universidade de Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de A coruja de Minerva (Vozes).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal Página 12.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES