Por TARSO GENRO*
A tragédia que nos assola nos dá a oportunidade de reconstruir o Rio Grande do Sul e ajudar o Brasil a reerguer-se do negacionismo estatal e ambiental do bolsonarismo criminoso
Toda a região metropolitana e a maior parte do território gaúcho – em maior ou menor grau – enfrentam a fúria da natureza em rebelião e a presença constante da morte. Os rios e os arroios querem voltar para os seus cursos imemoriais, apertados nas suas margens por toneladas de argamassa e tiras de asfalto; as raízes das árvores não mais conseguem prendê-las nas terras altas; as hortas, os plantios e as encerras dos animais, são afogadas nas enchentes das novas catástrofes climáticas.
A correta decisão do Governo Federal de tratar, em primeiro lugar, da questão humanitária e iniciar o refinanciamento dos negócios e o financiamento das obras necessárias para que sejam amortecidos os efeitos da catástrofe, foi e é correta. E mais ainda: revelou o liberalismo de opereta de grande parte dos grandes empresários gaúchos, que rapidamente deixaram de lado o seu ódio às funções públicas do Estado Social e recorreram – alguns até com desaforos e mentiras – ao Estado, para repor-se no cenário produtivo e comercial do país.
Vai chegar a hora todavia – acho que em janeiro de 2025 – que a história poderá cobrar da comunidade política gaúcha e especialmente do Governo federal, qual o papel reservado ao nosso estado nesta brutal tragédia socioambiental, não somente nas questões humanitárias e de reconstrução, mas também sobre o que ela ensinou ao Estado brasileiro e ao seu governo nacional para, a partir do Rio Grande do Sul, não só recuperar o que foi destruído, mas também sobre o que legaremos para o futuro, como estratégia de construção de um desenvolvimento nacional com inserção global soberana.
Penso que é necessário formatar um novo “bloco histórico” para governar o país e localizo na tragédia que se abateu sobre o Estado essa possiblidade. A do Estado tornar-se dominante – não acessório – na questão climática global e reduzir drasticamente o “estoque” de necessidades que acumula a nossa população. Ela precisa comer melhor, fruir novas fontes de energia alternativa, educar-se melhor, morar melhor, proteger-se melhor e – a partir de uma nova concepção de desenvolvimento – distribuir melhor a renda, promover a pesquisa voltada para novas tecnologias produtivas e induzir – a partir do Estado – uma construção socioambiental ecologicamente equilibrada.
Tudo isso já era sabido, mas o que tem de novo é que a tragédia que nos assola nos dá a oportunidade de reconstruir o Rio Grande do Sul e ajudar o Brasil a reerguer-se do negacionismo estatal e ambiental do bolsonarismo criminoso, ainda instalado em nosso meio. O olhar de El Greco, desconfiando da eternidade e a genialidade de Turner, abordando a dramaticidade da luta para controlar a naturalidade, pode nos dizer muito sobre isso.
A construção de um modelo socioambiental correto para o Estado, aproveitando as suas carências e potencialidades também abrirá novos horizontes para o Mercosul e recolocará o Rio Grande do Sul no bloco “paulista-norte-nordestino”, que tem mais influência sobre os destinos da Federação desde há muitas décadas. Desde a deposição de João Goulart, aliás, em função do déficit da nossa estrutura política o Rio Grande tem sido objetivamente subestimado na sua capacidade de ajudar-se ajudando o Brasil.
A beleza trágica de um quadro de Turner, que viveu entre 1775-1881, exposto no Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa (um óleo sobre tela nominado “Naufrágio de um Cargueiro”) pode ilustrar a síntese perfeita de uma – das duas características – da grande arte pictórica da humanidade. A primeira delas está nesse quadro de Turner, de 1810, que mostra a luta dos humanos para subordinar as forças da natureza ao seu desejo de conquista, a partir do que estes, à época, concebiam como progresso.
No quadro, a rebelião das ondas, a velocidade cruel dos ventos e as costas rochosas impassíveis, vencem toda a ciência e toda a técnica, dispostas na construção do cargueiro que naufragará. O “afastamento” de todas as barreiras da natureza, para que os humanos imperem sobre ela, controlem as suas regras insondáveis a olho nu e dominem os seus impulsos, todavia, é uma experiencia de milênios.
A racionalidade moderna adaptou esta experiência, tanto em valores materiais (o dinheiro, a propriedade) como imateriais (a ciência e a arte) e construiu as narrativas dos futuros, ora épicos, ora trágicos. Sua “razão”, porém – neste momento – está exposta como decadência em Porto Alegre, num só monumento de destruição negacionista e ultraliberal da capital: é o “Muro da Mauá”. O muro é uma síntese do vírus ideológico da extrema-direita, destrutivo da solidariedade social e da empatia que, combinado com o ultraliberalismo econômico solapa as bases de uma coesão social mínima para a construção de um destino comum.
A precariedade criminosa da sua manutenção é – ela mesma – um totem do negacionismo climático e as “obras de arte”, nele desenhadas – financiadas pelos donos da cidade para homenagearem a si mesmos – é a exploração dos limites entre o grotesco e a idiotia publicitária, através do qual eles querem – pela força do dinheiro – registrar para o mundo a sua passagem na vida, com poderes sobre a vida, a morte e a moradia dos habitantes de Porto Alegre.
Na guerra para dominar a natureza com as virtudes do progresso, nossos empresários e seus pintores não puderam fazê-lo com uma grande arte, dotada de uma dolorosa força civilizatória ascendente, como foram – por exemplo – os desenhistas das Pirâmides egípcias, construídas pelos humanos da época, submetidos à escravidão. Nem nossas obras físicas foram concebidas como as obras de irrigação dos Aztecas, que submetiam o fluxo das águas – originárias de fontes naturais – para fazer uma cuidadosa compensação natural, para os humanos sobreviverem à escassez e às intempéries pré-colombianas.
Diferente do aristocrático El Greco, que viveu entre 1541 e 1614) autor do espetacular “O enterro do Conde de Orgaz” (pintado em 1587) que tratava da dupla dimensão da vida – uma terrena e factual e a outra celeste e eterna – Turner concebe a natureza como um inimigo a ser vencido na luta pela sobrevivência. Em El Greco, ao contrário, os Santos do céu baixam para receber o Conde, mas ele parece olhar para a vida eterna com o medo de quem não quer testá-la. Parece que com seu olhar mortiço, se pudesse, evitaria a morte e não apreciaria subir da terra para uma eternidade celeste puramente presumida.
O confronto com a morte e o confronto com a natureza são “valores” sempre renovados no cotidiano e na história dos humanos, pois não gratuitamente eles percorreram a história do Renascimento e todas as revoluções posteriores até chegaram aos nossos dias com os traços mais cruéis e desatinados do “capitalismo” liberal-rentista: é o ciclo histórico em que o domínio do homem sobre a natureza e o seu negacionismo climático já se tornaram tão perfeitos que conquistaram o senso comum na promessa de extinção da humanidade trocada pelo progresso infinito.
Ter a morte coletiva como uma perspectiva previsível e “natural” – já fixada como um degrau definitivo do futuro – (uma segunda natureza incapaz de ser contornada por decisões políticas) é uma grande conquista da extrema direita global, que se refletiu – aqui em nosso estado – no monumento-síntese do Muro Mauá, transformado em outdoor. O descaso com a sua manutenção e a idiotia da sua “arte”, reverenciando os usufrutuários absolutos da cidade, diz mais do que as Pirâmides diziam dos Faraós, numa civilização escravista ascendente. Ele, o Muro, fez transparecer a alma do capital sem freios, devorando o que resta de solidariedade humana, ao que tudo indica já no ocaso desta forma fraturada de democracia liberal.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]
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