Por GABRIELA BRUSCHINI GRECCA*
O tempo presente tem se mostrado cada vez mais essencial para retomarmos o contato com as tragédias gregas
Prólogo – Alexandre, um grande
Era início de 2010, nas salas do último andar do bloco G34, da Universidade Estadual de Maringá, quando fui apresentada ao programa de disciplina que mudaria toda a minha relação com a literatura. A disciplina intitulava-se, como até hoje, “Práticas de Leitura do Texto Literário”. Em minha turma, o docente responsável era o professor Alexandre Villibor Flory.
Devo a tudo o que aprendi com o Alexandre Villibor Flory o conteúdo para a construção de uma frase que, sempre que posso, repito publicamente, principalmente se tal público se constituir por discentes de graduação: a literatura é muito para querer ter notícias dela usando apenas nosso sentido visual. Quando me proponho a ler um livro por prazer, isso não pode acarretar em uma leitura passiva – “não tenho compromissos ou prazos em relação a este livro, portanto, posso estar e não estar aqui, tratá-lo com certo descuido”.
Ao contrário. Quando leio, não quero apenas ler; quero descobrir todos os sentidos que um ser, sozinho, pode conseguir descobrir enquanto lê. Preciso colocar composições do mesmo período histórico para serem ouvidas. Preciso confrontar a obra com outras manifestações escritas. Abrir outras páginas, sentindo de maneira tátil o diálogo sendo criado entre mais de uma obra, a partir da ação do tato das próprias mãos. Preciso ouvir o que outras vozes têm a dizer sobre aquela obra. Preciso de pinturas, do sono, do sonho diurno e do caminhar.
Eu não quero só ver o livro. Eu quero ouvi-lo, degluti-lo, me desafiar a entrar em sua temperatura, grande seja o desconforto, sentir suas texturas, imprevisíveis sejam as dores. Quero poder atar e desatar seus laços a todo instante.
Isso, quem me ensinou, foi Alexandre Villibor Flory. Lembro-me nitidamente de todas as aulas em que este professor passou pela porta de entrada da sala carregando um rádio, com CDs em sua pasta. Ele nos colocava para ouvir Schubert para poder falar do século XIX em contexto alemão; colocava “Construção” para nos ensinar sobre o gênero lírico e a rima esdrúxula; nos chamava aos sábados para assistir à versão cinematográfica do Luchino Visconti de Morte em Veneza.
Mas, mesmo quando não munido de tecnologia, uma coisa sempre me chamava a atenção no Alexandre Villibor Flory: aquele professor trazia para a sala de aula, todo dia, o corpo do ator – dos anos de aprendizagem teatral, dos estudos sobre teatro. Não havia uma aula sobre gênero dramático (ou qualquer outra) em que o corpo do Alexandre não era a “tecnologia” central: ele entoava as falas, dramatizava os diálogos em momentos inesperados. Trazia-nos os personagens à vida. Fazia da frente da sala o seu palco particular.
Na primeira vez em que me peguei fazendo o mesmo diante de um primeiro período de Letras, uns dez anos depois, sendo Creonte e Tirésias em Édipo Rei, encarnando mimetizando um personagem proferindo insultos um ao outro, ambos ao mesmo tempo, tudo junto e misturado, lembrei-me de Alexandre Villibor Flory mais uma vez. Não que não tivesse o compreendido antes – mas me fascina o quanto, ano após ano, entendo cada vez mais os passos que ele dava e a visão sobre formação que ele carregava por trás delas.
Inclusive o que ele fez quando, àquela menina de recém-feitos dezessete anos, deu nas mãos a peça Perdoa-me por me traíres, do Nelson Rodrigues, sugerindo, como quem não queria nada, uma iniciação científica. Alê: o tempo passou, e eu entendi.
De Schubert a Schöenberg
Não segui com a pesquisa em textos dramáticos. Nunca fiz um mês de teatro na vida, nunca tive qualquer vínculo ou participei de qualquer forma de espetáculo tradicional. À parte disso, desenvolvi todo o amor do mundo pelo drama. Segui as disciplinas sobre texto teatral moderno com o Alexandre até onde pude, até o Mestrado na mesma instituição, e, tantos anos depois, me realizo sendo professora de literatura – Emília Gallotti, Nora Helmer, Polly Peachum (e tantos outros seres que nunca conheci e que habitam minha cabeça!). Na frente dos alunos, semestre a semestre, aprendi que, mesmo quando o tema da aula não é sobre texto teatral, toda aula é uma situação teatral. O tempo todo.
Também aprendi a fazer da sala o meu campo experimental de atuação favorito – no qual nunca reivindico o protagonismo, mas me coloco à disposição para ser atravessada para que algo possa surgir para além do corpo que ali preciso levar. Ao mesmo tempo, quão des-opressor é, diariamente, poder ter outro papel para incorporar. Entendo hoje o fascínio pelas aulas de teatro – as quais nunca tive – e o poder de ter um momento para substituir o rosto por uma prótese que não seja a própria prótese narcísica.
Esse processo de incorporar personagens e narrativas me lembra constantemente da flexibilidade e da empatia que a prática teatral exige e fomenta. Na sala de aula, sou tanto diretora quanto atriz, tudo ao mesmo tempo, à exaustão – orquestrando discussões e encenando teorias, permitindo que os textos ganhem vida e ressoem, ao mesmo tempo em que preciso incomodar os alunos. No sentido de perturbar seus pensamentos e me solidarizar afetuosamente com seus relatos e expressões. Se não for para ser assim, então tenho certeza que não haveria o menor sentido em querer fazer o que faço.
Talvez a paixão que desenvolvi pelos textos dramáticos, para além dos ensinamentos do mestre Alexandre, tenha a ver com a paixão pela intensidade da literatura – do ter aprendido a ver, ouvir, deglutir e tocar a literatura, expressões que usei mais acima. Por isso, a experiência da greve na Universidade Estadual de Minas Gerais, pouco mais de um mês depois de seu início, me causou inquietação.
É preciso entender o contexto. A Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) é uma universidade pública cujo processo de estadualização se concretizou de uma vez por todas apenas a partir de 2014. Conhecida há muito tempo nas cidades onde está pelas fundações privadas que existiam antes de terem sido absorvidas pela estadualização – no meu caso, na unidade de Divinópolis (ainda não é um campus, e sim uma unidade), muitos divinopolitanos ainda chamam a instituição de “FUNEDI” e pensam que é preciso pagar mensalidade para estudar lá – mais de 85% dos discentes da universidade vêm de escola pública.
A Universidade do Estado de Minas Gerais
A Universidade do Estado de Minas Gerais é uma universidade popular, com 22 unidades espalhadas entre a capital e o interior mineiro, que recebe os filhos da classe trabalhadora, tendo inclusive a peculiaridade de oferecer, como poucas no Brasil, um programa de vagas no vestibular para candidatos por Inclusão Regional – destinada a estimular o acesso à universidade àqueles que são residentes do estado de Minas Gerais e que cursaram os três anos do ensino médio em rede pública (estadual, municipal ou federal).
Apesar de toda a precarização que envolve a universidade, cujos relatos criados a partir dos recentes cinquenta dias de greve são diversos na internet (um, inclusive, neste site), a Universidade do Estado de Minas Gerais é reconhecida como a 3ª maior universidade pública de Minas Gerais em número de alunos, com mais de 21.000 estudantes matriculados e aproximadamente 2.000 docentes.
Desde o primeiro grande concurso (em número de vagas) feito ao longo de 2019, a partir do qual deixei a última cidade que morei – Araraquara – para tomar posse nele, não somente diversos/as mestres/as e doutores/as começaram a ocupar a universidade trazendo, consigo, suas formações acadêmicas de diversas regiões do Brasil, mas, pouco a pouco, também é possível ver alunos e alunas de mais estados começando a também fazer mais parte dos assentos ocupados na sala de aula.
Porém, na Universidade, tudo é um processo. Assisti, nos últimos anos, às primeiras departamentalizações na minha unidade – antes, quando entrei, eram somente cursos, sem Departamentos – cujo processo auxiliei na documentação. Ocupei e ocupo cargos acumulados de gestão e representação por falta de corpo docente suficiente (nosso Departamento de Letras, por exemplo, só possui nove professores efetivos e só ofertamos Letras – português/inglês à noite, mais nenhum, pois não ainda não conseguimos carga horária possível para a quantidade de professores que temos para justificar, por exemplo, a criação de um curso de Letras na parte da manhã, ou qualquer outra habilitação).
Assisti à posse da primeira chefia de Departamento. Fui uma das mãos que criaram, nos últimos três anos, o primeiro projeto pedagógico de curso feito pelos professores concursados do curso de letras. Mas ainda não tenho sala dos professores (existia uma sala até pouco tempo atrás com uma mesa e cerca de seis cadeiras, mas ela foi trancada e virou outra coisa). Não tenho gabinete, nem banheiro só dos professores. Não existe secretaria para cada Departamento. Não existe analista ou técnico concursado na Unidade. O Wi-fi só funciona (mal) em partes específicas do campus. Abriu uma cantina somente ano passado – mas ainda zero copiadoras/xerox em toda a unidade. A unidade, reaproveitada da FUNEDI, ainda é puro vestígio dessa Fundação que há tanto já não existe mais.
Mas tenho a razão de sair todo dia de casa e querer dar aula: alunos/as excelentes, interessados/as, que sempre me receberam muito bem. Em cinco anos, fui paraninfa de turma duas vezes, e professora homenageada em uma. A resposta afetiva que eles nos dão é constante, e muitos sabem o que era morar numa cidade onde estudar em uma universidade pública era um sonho praticamente impossível; pessoas que majoritariamente trabalham, despontam como os primeiros da família e/ou da comunidade a ter um diploma de ensino superior; pessoas que hoje começaram a ocupar os contratos em escolas públicas e privadas, que começaram a ingressar em programas de Mestrado em outros lugares.
Quando entrei, quantas vezes não precisei contar o que era um mestrado – ou que “pós” não era somente “especialização” – ou que existiam bolsas de pesquisa que eles poderiam pleitear. Hoje, meus alunos do primeiro período entram sabendo que existe programa de pesquisa, extensão, monitoria acadêmica – coisa completamente desconhecida para os discentes dos anos anteriores.
É assim que entro, semana após semana, com livros embaixo do braço, em disciplinas principalmente de literaturas em língua inglesa e de teoria literária. Antes da greve, em “Teoria da Literatura I”, estávamos justamente começando a descortinar a Poética de Aristóteles e as tragédias como parte do que habitualmente tende-se a se chamar gênero dramático. Conforme os dias de greve avançavam, a angústia da ausência da sala de aula começou a me afetar. Porém, sabendo que a greve também é pedagógica, comecei a pensar em como poderia chamar meus alunos do 1° e de outros períodos de Letras (e de outros cursos) para comparecerem à Unidade e fazermos algo ligado à literatura. Lembrei de onde havia parado. Mas poderia eu trazer uma tragédia clássica para uma experiência de greve? Foi então que pensei novamente no que aprendi com o Alexandre, e me coloquei na pretensão de propor a atividade, ainda que falhasse.
Assim, pedi para que o comando de greve local incluísse, em uma das agendas semanais, no dia 04/06, uma noite de leitura coletiva de Antígona, de Sófocles. No dia, éramos cerca de vinte pessoas, somente três das quais eram docentes (eu e mais duas do Departamento de Letras), e todo o resto, para a minha surpresa, discente (havia já semanas que não via tantos dali!). Fizemos um círculo de cadeiras de plástico no meio do salão administrativo da Unidade, e eu havia solicitado previamente que todos pudessem baixar uma tradução de Antígona em seus celulares, afinal o Wifi não funciona direito na Unidade, dispondo o link para o PDF no banner que fazia a chamada virtual.
Havia discentes de outros cursos para além de letras – e uma egressa do curso de jornalismo, que havia sido convidada por uma de minhas alunas para estar ali também. Duas alunas haviam percorrido um pouco mais de 90 km para estarem ali naquela noite, tendo saído de sua cidade natal, Arcos, horas antes, por meio da contratação particular de assentos em uma van que saía da cidade com destino a Divinópolis.
Devido ao já mencionado contexto social, muitos alunos não moram em república na cidade de destino da universidade, mas permanecem trabalhando e morando com familiares em suas cidades de origem, custeando as vans (ou pleiteando-as junto às prefeituras dos municípios), e viajando por horas todos os dias para estudarem ali na Unidade. Ressalto isso porque reconheço, da parte de alunas como essas, que estar ali chegou a literalmente ter alto custo.
Expliquei a eles que seguiríamos uma dinâmica – e expus, desde o início, o plural, sinalizando que ninguém ficaria em silêncio naquela noite. De início, contei, apenas, que a leitura duraria cerca de uma hora, sucedida por um tempo para tomarmos um café (sugerido e organizado, principalmente, por uma aluna do 1° período do curso de Letras), e depois mais um tempo de debate – na minha previsão, um debate de meia hora, que se esticou, em realidade, por mais meia. Antes, disse a eles que havia uma questão primária a responder: Por que Antígona?
Por que Antígona?
Tentei, nesse instante, compartilhar com eles as razões pelas quais tenho cada vez mais acreditado que o tempo presente tem se mostrado cada vez mais essencial para retomarmos o contato com as tragédias gregas – ao contrário do que se poderia acreditar. Expliquei ao público sobre o que era a trilogia tebana de Sófocles, sobre a fábula mítica e trágica do Édipo para contextualizar Antígona enquanto personagem da trilogia, bem como em que momento tomamos notícia dos eventos que a cercam. Além disso, dada a diversidade do público, julguei importante tecer breves comentários sobre o período histórico e político em que esta peça foi encenada, bem como o papel das tragédias – tanto nos rituais dionisíacos quanto para o complexo hospitalar grego, do qual o anfiteatro era uma das partes fundamentais (daí a importância da catarse). Prefiro sempre que seja repetitivo para alguns, se isso significar deixar todos à par das mesmas premissas importantes. Nunca abro mão de tentar alcançar a todos, o máximo que “todos” puder significar.
Por fim, expliquei aos alunos o que era uma leitura dramática enquanto prática cênica. Coloquei algumas considerações sobre a importância de retomar a leitura coletiva, no geral, como ato que nos une em torno da literatura e nos lembra que ela não nasceu no isolamento dos sujeitos, ainda que nossa idealização do papel do autor quando produz (e do leitor quando consome) nos leve a crer no contrário.
Em particular, ressaltei a eles que, salvo engano, ninguém ali era ator/atriz, e nem era necessário ser. A ideia era se soltar, se expressar e tentar sentir, conforme a leitura, como se constrói a curva dramática em uma tragédia clássica. Queria que eles percebessem que não há alívio cômico, relaxamento da tensão, e como somente rimos quando há ironia dramática – que, afinal, acaba trazendo mais aflição e retesamento para nós, que acompanhamos a trama, do que relaxamento.
Após a atribuição de papéis – aqueles que ficaram sem personagem específico estavam, automaticamente, concordando em ser parte do coro – liguei uma caixinha de som e disse-lhes que iria colocar cinco minutos de uma composição para ser ouvida, mas que de forma alguma estava dizendo que havia um paralelo entre a criação da composição de 1899 (com instrumentação para orquestra de 1917) e a criação de Antígona, até porque a composição realiza relação dialógica explícita com outra obra literária, de Richard Dehmel – mas que, de toda forma, havia um sentido que queria reforçar com aquilo, como modo de auxiliar cada um a entrar no seu papel.
Tratava-se dos primeiros minutos do primeiro movimento de Verklärte Nacht (op. 4), de Arnold Schöenberg – a Noite transfigurada. Pedi aos discentes que fechassem os olhos, caso se sentissem à vontade, e somente deixassem a imaginação circular em silêncio – pois, se endosso a necessidade de ler com os múltiplos sentidos, também acredito que se deva ouvir também provocando os sentidos da visão.
Claro que tinha um propósito específico em mente. Noite transfigurada é uma obra fundamental no expressionismo musical, densa e harmonicamente audaciosa para a época. No primeiro movimento, que havia colocado para os alunos, as harmonias e o tratamento temático são extremamente cromáticos, quase atonais, com muita dissonância. O resultado é tensão pura, sem alívio – tal como numa tragédia clássica, em que não se deve, para Aristóteles, haver momentos que distraiam o espectador da construção do movimento de ascensão da curva dramática – e sua posterior queda vertiginosa.
André Cílio Rodrigues, em “A Forma da Noite: uma proposta de análise formal da Noite Transfigurada” (2021, p. 188), citando o próprio Anton Webern em texto de 1912, revela que este chamou Noite transfigurada de “uma livre fantasia” [frei phantasierend]. Creio que, de alguma forma, eu entendo o que Anton Webern quis dizer. Lembro-me até hoje de uma noite de calafrios e sentimentos que até então não havia experimentado quando coloquei, repetitivamente, Noite transfigurada para me acompanhar durante a leitura de um dos capítulos mais angustiantes (ao meu ver) de A montanha mágica, de Thomas Mann – “Neve” – em que Hans Castorp se perde em meio a uma tempestade de neve enquanto pretendia esquiar.
Trago viva dentro da minha memória a sensação de cada pedaço daquela seção enquanto os movimentos da composição de Schöenberg se repetiam e eu me sentia perdida naquela tempestade junto a Hans Castorp, ao mesmo tempo em que atravessava outros montantes de resíduo e de tormenta da minha própria vida. Havia sido uma experiência praticamente psicanalítica. Portanto, não era uma inquietação teórica que eu queria provocar – era da ordem da experiência, de quem queria compartilhar o que sabia que era, talvez, possível de ser sentido por mais alguém. Começar a entrar nas aflições de Antígona antes mesmo que a peça homônima começasse a ser lida – primeiro pelos ouvidos, só depois pelos olhos.
Quando interrompi a música, abdiquei da posição de teorizar muito com os alunos sobre ela, uma vez que, como havia dito, a provocação não era de ordem teórica. Optei por confiar que haveria um entendimento tácito do que estava acontecendo – justamente no inominável, naquilo que a linguagem não daria conta de traduzir naquele momento. Muitas vezes, é importante que nós, docentes, saibamos quando fazê-lo. Apenas comentei superficialmente sobre a questão do expressionismo, e que acreditava que aquele momento nos auxiliaria a agregar camadas à rede de representações nas quais estávamos entrando à medida em que nos despedíamos do saguão administrativo – que agora era palco – e da pretensa estabilidade de nossas identidades – posto que éramos agora papeis outros. Algumas cabeças acenaram positivamente em minha direção. Sabia que haviam entendido. Era hora de entrarmos, de fato, em Antígona.
Assim, a leitura coletiva deu-se em uma hora. Mas, antes de comentar onde ela nos levou, devo dizer, sobre a dificuldade de sair e entrar de papéis, que não foram somente Schöenberg ou Sófocles que me sopraram nos ouvidos naquela noite. Foi também, mais discretamente, Winnicott.
De Schöenberg a Winnicott
Por mais variados que possam ser os recursos para convocação de discentes para assumir papéis em práticas cênicas – e não se deve ceder ao silêncio, não se deve extinguir as chances de que haja novas formas organizações que surjam a partir da necessidade – é, ainda assim, fazer com que eles se mobilizem. Foram longos minutos e muita paciência para que todos os papéis de Antígona fossem assumidos. Noto esse mesmo problema em relação aos meus ex-alunos que têm se tornado professores, sobretudo de adolescentes – queixas de que não participam, não entram em simulações.
Isso não é um problema (ainda!) para os professores de crianças. Não acho que seja coincidência – até porque, nas vezes em que precisei perguntar “Fulana/o, você assumiria esta personagem?” para discentes que visivelmente estavam se digladiando em dizer ou não algo, o convite foi aceito sem demora. Portanto, não era um problema com a demanda, mas sim em aceitá-la publicamente com voracidade, sem pedidos diretos.
Não pude deixar de ir para casa, nos meus vinte minutos de carro, pensando em Donald Winnicott e, mais especificamente, no “brincar” após a infância, outra inquietação recente em minhas reflexões pessoais. Em O brincar e a realidade (1971), Winnicott atesta a tese de que “[é] no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (1975, p. 89).
Brincar, expressar a criatividade, interpretar um personagem em um faz-de-conta: é curioso que, para as crianças, nada disso é um problema. Conforme avançamos para adolescência e para a fase adulta, ao mesmo tempo em que nos tornamos esses seres cheios de fantasias (mal-resolvidas!), passamos a ver a proximidade com a brincadeira como algo que deve ser negado ou rejeitado quando diante de pequenos ou grandes grupos.
Em um artigo extremamente sensível de Fábio Belo, professor de Psicanálise das Relações Objetais na UFMG, o autor identifica uma proximidade entre Winnicott e Schiller, para quem o homem só é pleno quando joga (Belo, 2013, p. 93). Schiller teria criado um termo próprio para sustentar essa afirmação – Spieltrieb, o impulso lúdico: “uma área ou estágio transicional que permite que razão e sensibilidade atuem juntas sem que haja a sobreposição de uma à outra” (p. 98) – área esta criada justamente pelo jogo/brincar. Conforme vamos nos sentindo parte das instituições, da cultura, me parece que negar publicamente o brincar faz parte de um ritual macabro que topamos, sem assinar nada, participar.
Mas, por outro lado, talvez seja difícil para nós, professores, recriarmos práticas coletivas que impliquem a ação dos discentes – nós, tão entusiastas do aluno com autonomia! nós, que lemos tanto sobre metodologias ativas! nós, os freireanos! – porque lidamos com jovens e adultos cujas relações com o brincar têm se tornado mais e mais travadas, sobretudo para os nativos digitais. Talvez também por muito tempo tenhamos alimentado a ideia de que a última coisa que um/a professor/a espera é que se possa ser criativo diante dele.
Seríamos nós pessoas que recebemos bem a possibilidade de os alunos brincarem com os próprios erros, faltas e incompletudes na nossa frente? Seríamos nós pessoas que nos autorizamos a colocar diante dos alunos o fato que também temos faltas e que estamos dispostos a fantasiarmos com elas? Seriam eles – entre eles – uma geração que tem sabido fantasiar sem o autoritarismo das influências da internet que diariamente os convencem sobre como supostamente eles deveriam fantasiar?
De Winnicott a Sófocles
Sobre as discussões que tivemos, começo lembrando que um dos presentes, mesmo antes de fazermos a pausa para a deglutição (figurada!) de Antígona, havia dito a seguinte frase: “No fim das contas, o desfecho da peça é sobre ‘eis a peça: obedeçam aos deuses, sigam o vaticínio ou o destino é a morte’”.
A partir disso, iniciei o retorno ao nosso círculo chamando a atenção dos alunos para o fato de que não poderíamos ser ingênuos com relação à expectativa sobre uma peça do teatro clássico: por todo o contexto sumarizado antes da leitura da peça, dos rituais aos “hospitais”, é preciso lembrar que uma das questões mais importantes para o teatro era a promoção da catarse, visando, por meio dela, endossar também um tipo de educação civil, seguindo o esperado para um cidadão ideal – que não tema a morte, mas sim à servidão, e que não se sobressaia aos deuses (como esquecer o coro que, em Édipo rei, diz que não acredita em Édipo por acreditar nele tanto quanto se acreditaria em um deus, mas sim por ter respaldo prévio pelas ações desempenhadas por este quanto à Esfinge?).
Neste momento, mesmo antes de terminar a explicação, uma aluna de outro curso me interroga sobre o coro: como eram? Chegavam a entrar em cena? Que posição deveriam ocupar? Foi então que me vi na interessante posição de remediar nosso estranhamento com relação a qual seria o papel do coro no teatro, hoje. Pensei, depois, em como isso tem tudo a ver com nossa posição de adultos que vamos nos despedindo das referências do passado (mesmo aquelas que nós mesmo nunca chegamos a conhecer).
É como se me visse diante de uma pessoa mais jovem que me perguntasse: “diga-me, que lugar ocupou esse corpo que você, de alguma forma, conhece?”. Não é o que fazemos quando nossos amados se vão, o tempo passa e eles viram nomes em nossas cabeças? Seria a morte e o passado aqueles que nos convidam a melhorar as nossas habilidades enquanto narradores, à custa de perdê-los para sempre se não o fazemos?
Assim me peguei em uma espécie de quebra-cabeças para explicar-lhe: “este corpo era assim, ele vinha por aqui, apresentava-se de tal forma, representava tais papéis”. Novamente, senti o arrepio de me ver, em ato, apresentando o passado – bem como o meu, pois, apresentando-lhe o passado tal como eu o conhecia, também era o passado tal como o Alexandre havia passado em aula. Talvez realmente exista uma razão pela qual não escrevemos tanto sobre nossas aulas e experiências de fala: vermos a nós mesmos perdidos nesse caleidoscópio de tempos e espaços é mesmo aterrador. E tudo isso confiando que o que temos a dizer é o melhor naquele momento – e torcendo, jogando para o vento, que assim seja.
Continuando. Depois de falar sobre o coro e retomar a questão sobre educação e catarse, talvez o lugar para onde eu tenha partido tenha frustrado os alunos se eles desejaram que eu falasse sobre a Antígona que está dentro de nós. O que fiz foi o contrário: teci alguns comentários sobre o Creonte que habita em nós. O tirano. Talvez fosse mesmo mais fácil dizer que Antígona está para Creonte tal como nós, grevistas estamos para a tirania do Estado. Mas eu não ia conseguir – até porque seria completamente desonesto com a própria peça de Sófocles. O terror e a piedade é construída em torno da obstinação em Creonte em não permitir a soltura de Antígona – e essa obstinação também faz parte de nós.
A tirania do Creonte habita vários espaços diferentes, inclusive nas instituições, mas quanto ela não está igualmente na reação do sujeito quando o outro lhe nega algo que aquele deseja? Quem, indaguei a eles, nunca sentiu um desejo desenfreado de posse de uma situação ou de um sentimento, que precisou ser contido, e se sentiu inflamado a fazer algo a respeito – cega e obstinadamente? Como lidar com o Creonte que surge quando nos sentimos certos de que a nossa posição sobre o outro é a definitiva e a possível de existir?
Claro, não se tratava de uma mera provocação. Ela tinha intuito de sintonizá-los (e a mim!) com a tendência cada vez mais crescente, sob a roupagem da dignidade, da realização do exato oposto: de um moralismo cada vez mais disfarçado. Creonte não nos serve para pensar sobre a inflexibilidade autocrática somente quando esta encontra o Estado, mas também quando aparece como destino de nossas pulsões. Se era para tematizar a injustiça, a opressão e os gestos de recusa na greve, isso só poderia fazer sentido se fosse realmente na greve, e nãopara a greve. Que não instrumentalizasse os discentes, mas que Sófocles pudesse fazer parte do repertório deles no dia depois de amanhã.
Nessa esteira, também não foi difícil que os discentes logo chegassem às questões ligadas à tirania e às questões de gênero.
O que pensar, perguntei eu aos alunos, de uma questão como a colocada por Creonte, ao tomar conhecimento que Polinice havia sido enterrado: “Que dizes? Quem? Que homem se atreveu a tanto?”
Nesse momento, para além das diversas contribuições e falas, principalmente por parte da ala feminina do corpo discente, acredito que uma das perguntas mais interessantes veio de uma das alunas que já cursava Teoria da Literatura I comigo. Retomando de cabeça a leitura que havíamos feito sobre a Poética, de Aristóteles em sala de aula, ela coloca pela segunda vez uma indagação que havia feito antes da leitura da peça (pois não havia segurado a ansiedade e lido antes!). Sua pergunta foi formulada mais ou menos desta forma: “Nós lemos que, para Aristóteles, nas tragédias, o erro do heroi é causado pela hybris que, desmesurada, acaba causando uma falha de julgamento [hamartia], fundamental para a ocorrência desse erro. Ou seja, você trazia, nas suas aulas, que para o Aristóteles o erro não vem do desvio de caráter, mas do desconhecimento. Mas algo me incomoda: não me parece ser o caso de Antígona. Fiquei sem entender: o erro é sempre por desconhecimento?”.
Ao passo que devolvi à roda com outra pergunta: “Em Antígona, para iniciarmos a conversa, é a heroína que tem a hybris? É a heroína quem falha?” Durante boa parte do que se sucedeu, quis mostrar aos alunos como, para cada ótica, uma possibilidade de leitura totalmente diferente surgia. Se é Antígona que tem a hybris, certamente ela não vem de um desconhecimento, mas na recusa a ceder. Se não é Antígona, e, sim, Creonte, temos o caso de um antagonista que assume a hybris – e que também estaria justamente na recusa a ceder. Seja num caso, seja no outro, a hybris vem da recusa.
Portanto, a aluna estava correta: o erro nem sempre vem do desconhecimento, já no teatro grego clássico. Daí outro poder de Antígona: ela nos obriga também a reconsiderar o que é e onde está a falha dos sujeitos. É a singularidade dos conflitos que traz à tona a singularidade desta questão.
A intervenção da aluna ainda foi fundamental em outro ponto, no que diz respeito a poder retomar uma ideia tão cara (e cada vez mais rara) que todo aluno de letras deveria se lembrar – o óbvio que não pode ser esquecido em nenhum instante: o objeto literário não vem para servir à teoria. O que havia acontecido com a discente é que ela estava precisando lidar com a subversão de suas expectativas, permitindo-se ser desafiada pelas categorias teóricas, as quais, pré-estabelecidas em sala de aula, tomou como guia, mas teve (ainda bem!) autonomia para questionar – e acertou no questionamento. Não seria também dizer que a discente se permitiu brincar com o pensamento? E quanta razão não teria ela, tão cedo no curso de Letras, já encontrou através de seu movimento no jogo?
O que significa a penalidade de Antígona ter sido enterrá-la viva? Teria Creonte agido tiranicamente justamente pela instabilidade do poder, que caiu em suas mãos por força das circunstâncias? O quanto o corpo feminino ainda circula detido em vivências mais de objeto do que de sujeito em sociedade? Quem tem direito, em sociedade, a um rito funerário básico – e o que significa negá-lo? Quem merece respeito na hora da morte – e quem não merece? Qual o abismo que existe entre a Lei e a interpretação da lei? (Nesse sentido, estou com Jorge Luis Borges, em Kafka e seus precursores [1951]: se, no paradoxo de Zenão, “o móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens kafkianos da literatura” [p. 127], no imbróglio entre Antígona e Creonte igualmente reside a idiossincrasia de Kafka!).
As questões acima, dentre uma e outra que certamente também devem ter aparecido, são as que me ficaram na memória como outros importantes disparadores da discussão naquele 04 de junho. Não sei o quanto desse dia ficará nas lembranças dos presentes – pensar sobre isso já é sentar-se junto às margens com o eu-lírico de The Waste Land, de T. S. Eliot, enquanto Hieronimo enlouquece outra vez. Com esses fragmentos foi que escorei a minha tentativa.
Sei que, no final das contas, espero tê-los convidado a se permitirem ser perturbados pelas questões em aberto que ficam do que é pensar a recusa, a intransigência, a motivação pela justiça social, e que possam se abrir mais para os dilemas do nosso tempo, cuja complexidade não é fácil de se abstrair – exige um olhar demorado, calmo, coletivo, em voz alta. E, claro, que deixar transparecer o desejo de fantasiar a céu aberto também pode ser um importante gesto de recusa ao mal-estar.
*Gabriela Bruschini Grecca é professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Minas Gerais – unidade Divinópolis.
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