Diálogo digital na classe média

Imagem: Steve Johnson
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Por MARCELO SANCHES*

Os interesses geopolíticos dos americanos casam-se perfeitamente com as expectativas das oligarquias do nosso continente

Outro dia, recebi mensagem de Gerusa.

Gerusa é uma prima minha. Fomos criados praticamente juntos, embora eu tenha morado em cidades diferentes durante um bom tempo. Gerusa sempre me pareceu a mais sensível dos meus primos e irmãos. Era, digamos, com quem eu mais me identificava. Havia sempre uma ponta de melancolia em seu olhar.

Ela parecia sonhar com alguma coisa. Talvez tivesse sido convencida de que mereceria muitas coisas boas, rebuscadas, especiais; afinal, Gerusa é loira, bonita e ser loira (ou loiro) é algo bastante valorizado na nossa sociedade. Mas, apesar disso, havia aquela sensibilidade a mais, aquele olhar melancólico, aquele gosto por canções mais tristes, introspectivas. Havia também um olhar de compaixão aos sofrimentos alheios. A vida foi seguindo. Então, no ano de 2014, algo aconteceu com Gerusa.

Em uma ocasião em que voltávamos de uma cidade vizinha à nossa, Gerusa estava furiosa, demonstrando uma raiva que eu nunca havia visto nela. Quando era criança, ficava vermelha, tentava rir, mas depois chorava quando algo a aborrecia. Mas desta vez, ela espumava de ódio. O objeto do ódio? Dilma Rousseff. Eu fiquei perplexo.

Diferentemente de Gerusa, eu desde cedo apresentei problemas de adaptação social. Hoje me pergunto se era eu mesmo um sujeitinho com algum problema psíquico grave ou se a sociedade em que eu vivia é que era doente. Tendo a acreditar na ultima hipótese. O fato é que ganhei o prêmio e carreguei o título vida afora: passei a vida toda me defendendo do estigma de ser gorducho, depois de ser branquelo, de querer ser músico, compositor, de não conseguir empregos tradicionais bacanas, de ser filhinho de papai e de acabar me formando como sociólogo! Cruz credo! Que sopa!

Uma luta constante entre o que consegui ser, o que meu superego ordenava e o que esperavam que eu fosse. O fato é que, dizem os “vencedores”, gente assim como eu, que fica crítica, sente inveja por não ter virado um deles. Pode até ser que em determinados momentos eu tenha sentido. Mas sou humano, e negar a humanidade destes sentimentos não faz parte do meu cercadinho egoico. Na verdade, acho que tal condição faz a gente querer entender as coisas, ver como elas funcionam. Hoje em dia, dentro da racionalidade neoliberal, dizem que a culpa dos fracassos pessoais é apenas do indivíduo.

Duvidando desta sentença graças ao conselho de muita gente legal, eu fui estudar para entender as coisas e entender que a conta é da sociedade também, e talvez seja a parte mais substancial. Porque quando nos damos conta do mundo através da nossa cultura, as perturbações já estão ali, prontas para te abraçar. Para o bem e para o mal.

E como tenho estudado. E não só política: psicanálise, antropologia, história e até religião!

Mas e Gerusa?

Bem, sempre achei que Gerusa tivesse um pé nesta condição, apesar de aparentemente, tudo parecer perfeito para ela. Ela se adaptou bem ao modus operandi básico de nosso segmento social na infância e na adolescência. Sem contestações; Virou arquiteta e, claro, anos depois, torceu para Sergio Moro prender Lula, apoiou o golpe contra Dilma Rouseff, passou um pano em Michel Temer e, finalmente, votou em Jair Bolsonaro! Depois, quando viu o estrago, resolveu votar em Lula em 2022.

Gerusa gosta de política, tem interesse no tema, então fiquei torcendo para que ela, aos poucos, fosse ampliando seu leque de informações. Nunca deixei de mandar textos, informações, talvez até tenha me excedido. Mas desconfio de que, como o restante dos primos, ela nunca lê textos longos ou ouve os áudios que envio. Quase nunca há resposta ou um gentil “depois vou ler”. Silêncio como método para ignorar. Claro, quando o tema é a política.

Depois de anos de silêncio, Gerusa me manda um áudio, indignada:

– Lembrei de você outro dia, quando me falou certa vez que nós nunca tínhamos vivido na Venezuela. Que eu não poderia dizer que lá é ruim porque não conhecia o país. Mas quero lhe dizer que conheço pessoas que lá estiveram e que me falam que o Maduro está matando a população. Você não estava lá também e defendia o cara. Só ouviu falar. Não sabe o que é perder um parente ou um amigo assim, torturado, morto.

– Gerusa…só mesmo a Venezuela para fazer você entrar em contato comigo. Que bom! É uma pena o rumo que as coisas estão tomando na Venezuela. Eu não gosto de Maduro. Acho que ele já perdeu o bonde. Já virou um ditador. Mas deixa te falar: conheci gente aqui, em São Paulo, que perdeu pai e mãe para a ditadura brasileira que as nossas famílias apoiavam nos anos 1970. Éramos crianças, não sabíamos disso. Mas hoje todo mundo é velho, né, Gerusa, e isso foi muito falado e até hoje as famílias buscam por seus filhos desaparecidos. E você votou num cara em 2018 que defendia essas atrocidades que o Maduro está fazendo e que você condena, felizmente! Mas em 2018… bem, contraditória essa raiva, hein, Gerusa…

– Sim, a gente sempre fala de ditadores de direita, mas nunca dos de esquerda! E agora, ouvindo Reinaldo Azevedo, estou pasma com as atrocidades que o Maduro está fazendo!

– Gerusa, eu já te disse que não gosto de Maduro. Mas posso te perguntar uma coisa? Por que o Maduro te provoca tanta repulsa? Você tem a mesma repulsa pelo genocídio de Benjamin Netanyahu, por exemplo? E a ditadura na Arábia Saudita… você sabe o que eles fazem lá? E com a benção dos Estados Unidos?

– E você me responde com outras perguntas! Você passa pano! Que coisa!

– Gerusa, a gente tem que contextualizar as coisas. Desculpe, prima, mas quando você fala do Maduro me vêm outras coisas à cabeça. É imediato…não consigo me conter. O Maduro hoje é um autocrata, tá virando um Ortega, um ditadorzinho. Concordamos. Não gosto de ditaduras nem de esquerda, nem de direita. Mas vamos contextualizar. A Venezuela é atacada pelos Estados Unidos, que são ultraimperialistas, querem o petróleo, querem dominar o mundo desde o começo do século XX, financiam ditaduras pelo planeta, destroem governos que ameaçam fazer negócios com a China e com a Rússia, não querem o Mercosul e controlam os europeus. Invadem as culturas alheias e transformam em “eixo do mal” os países que não aceitam sua arrogância.

Os caras ficaram 222 anos em guerra. E existem como país há 239! Apoiam Benjamin Netanyahu contra Gaza, por exemplo, porque isso se reverte em lucro para a indústria bélica deles! E porque muitos sionistas financiam campanhas de políticos e dominam o dinheiro que alimenta negócios graúdos nos Estados Unidos. Eles são donos da indústria cinematográfica, da publicidade, da indústria da comunicação. Eu adoro muita coisa que vem dos Estados Unidos, principalmente a música que produzem. Não sou um xarope daqueles que não ouvem jazz ou rock porque consideram música de alienados, mas é uma contradição difícil de lidar, viu.

Gerusa, veja bem, tudo isso não é delírio meu. É informação comprovada, anotada, pesquisada. É história. Não estou falando de minha cabeça.

– Engraçado…tudo é culpa dos Estados Unidos, então?

– Não, lógico que não. Os povos latino-americanos têm uma organização social bastante atrasada, baseada em propriedades agrícolas, produção de produtos primários para exportação que concentram renda e oferecem poucos empregos locais. Oligarquias que sempre têm os exércitos locais como aliados. Isso acontece aqui no Brasil também. Com isso, consideram seus aparatos estatais propriedades suas; quando se trata de distribuir renda e ampliar direitos sociais para o povo, dizem que não precisam ter o Estado, e que cada um (o trabalhador/empreendedor) se vire individualmente.

Quando é preciso conter a população revoltosa ou os mais pobres que às vezes se organizam para protestar, usam o mesmo aparato estatal (as polícias) para descer o cacete, além de comprar os políticos para votar em projetos que concentram mais renda. São elites eternamente aliadas dos americanos, porque a renda deles está em dólares, está em paraísos fiscais, Gerusa, como já disse. Os interesses geopolíticos dos americanos casam-se perfeitamente com as expectativas das oligarquias do nosso continente, Gerusa.

Aí rola um casamento perfeito. Percebe? A parada é a seguinte, Gerusa: proteger o capital acumulado. E fazê-lo se multiplicar ao infinito. Sem distribuír um milésimo dele que seja para aqueles que deram a vida para produzir arduamente para os acumuladores. É uma lógica perversa, colonial, de exploração cruel, injusta.

– Você está exagerando e fugindo do assunto. Então por que os principais jornalistas que temos condenam o Maduro? Ora, Marcelo, você passa pano para a esquerda, você não dá o braço a torcer!

– Porque a grande mídia brasileira reproduz as opiniões dos americanos. Se o New York Times faz um editorial, os jornais brasileiros e a Rede Globo praticamente reproduzem aqui. Porque são comprometidos com a ciranda financeira que a sustenta. Porque seus proprietários convertem seu dinheiro em dólares no exterior, em off-shores.

Você já parou para pensar que a sua visão de mundo é totalmente favorável aos interesses geopolíticos americanos e dos grandes empresários e banqueiros? Por que será, Gerusa? Eu acho que você nem percebe. Porque ter os americanos como tutores e como referência sempre foi a marca de nossa oligarquia e de  nossa classe média. Jamais quiseram um país pujante e autônomo. Nós, de classe média, tomamos o partido dos mais ricos. Somos o boi de piranha deles. Sempre que precisam, nos induzem a sair nas ruas querendo derrubar governos populares. Desde Carlos Lacerda até Aécio Neves.

Porque nos identificamos sempre com quem está acima de nós na hierarquia social, esquecendo que viemos de famílias pobres, de trabalhadores braçais, de imigrantes italianos e espanhóis pobres… e aí a gente entra na onda porque vivemos numa sociedade hierarquizada e adoramos estar por cima de alguém também. E o mais engraçado: conheço um cara que trabalhou durante anos numa empresa, foi mandado embora e recebeu uma imensa indenização. E por que? Ora, porque tinha direitos trabalhistas. Porque alguém brigou pelos direitos sociais dele décadas atrás. Hoje esse cara prega menos Estado e menos direitos sociais. Como pode?

– Eu sei, mas eles conquistaram tudo com muito trabalho…

– Claro, e o povo brasileiro trabalha muito, muito, Gerusa…então por que nos posicionamos sempre contra os interesses deste povo? Nós nos formamos porque nossos pais tiveram e tem direitos sociais adquiridos, como aposentadorias. E querem acabar com esses direitos. Por exemplo: Você acredita que querem manter os juros altos por causa da inflação que prejudicaria o povo? Querem os juros nos céus principalmente porque isso os beneficia em seus investimentos, Gerusa.

Querem proteger os 700 bilhões de reais anuais que os juros da dívida pública lhes rendem. Tem muitos economistas progressistas que oferecem saídas alternativas, mais modernas, que muitos países da Europa estão voltando a praticar em termos de políticas econômicas; a mania de privatizar tudo que existe já está regredindo na mesma Europa, enquanto aqui eles vendem estatais lucrativas a preço de banana! Mas as mídias não abrem espaço para quem contesta a economia neoliberal. Ficamos sem a possibilidade de conhecer outras ideias e propostas. Obviamente porque contrariam os interesses dessa mídia, oras!

A elite brasileira não quer transformar o país. Quer ir para Miami e para Nova Iorque. Mas investir no Brasil, jamais! Depois culpam o povo por isso. Recentemente, um dos investidores de uma grande empresa teve um vídeo seu  circulando nas redes, onde ele falava mal dos brasileiros, alegando que eram trambiqueiros. E então a empresa dele sofre uma pedalada, um golpe, que dizem, foi uma operação contábil fraudada pelos próprios acionistas, e esse cara era um deles. Essa é a elite brasileira que faz pouco caso do país.

– Então você acha que Maduro é uma vítima? Affff!!!

– Não. O Maduro sucedeu Hugo Chaves, que fez uma revolução na Venezuela, livrando as camadas mais pobres da miséria. Porque a direita que sempre comandou a Venezuela, a oligarquia deles, sempre viveu do petróleo e deixou o resto do país passar fome. O Chaves cortou esse processo. O Maduro, pelo que vejo, se perdeu e está fazendo merda. Repito, Gerusa: eu não gosto do Maduro e acho que tem uma parte da esquerda que ainda prefere apoiá-lo simplesmente porque os EUA são o inimigo. Não conseguem destrinchar esse fato. É uma situação complicada.

Mas dá para a gente fazer as duas coisas: condenar Maduro e condenar os EUA ao mesmo tempo. A pobreza na Venezuela não é efeito apenas do estrangulamento de opções distintas da exploração do petróleo, mas também e principalmente por causa das sanções que os americanos lhes impõem. Vamos torcer para que um novo governo – se isso acontecer um dia – não repita o que a direita já fez de ruim na Venezuela. Maduro está no caminho errado, mas os adversários dele podem ser ainda piores. Não se engane.

Neste caso, especificamente, não tem bandido contra mocinho. Tem muito filho da puta velho de guerra e gente virando filho da puta. A questão é complexa e exige um entendimento mais profundo. O perigo é a gente cair na cilada midiática: odiar o Maduro e fazer link com o Lula. É isso que querem, Gerusa: desestabilizar Lula. E vão te convencer a fazer isso. A não ser que você procure ampliar seu entendimento.

– Bom, vamos encerrar essa discussão. Não quero falar mais nada. Chega! Você é de esquerda e eu sou mais para a direita. Eu já acho que o Lula está fazendo merda…

– Está vendo? Tudo se liga. Já está com ódio do Lula outra vez. O cara está fazendo uma ginástica para poder governar com esse Congresso que é considerado o pior da história do país e atua contra ele; já conseguiu reduzir o desemprego para menos de 7%; está reanimando a indústria nacional, fazendo o possível dentro das regras constitucionais, ao contrário do golpista que estava na presidência antes dele. Lula e o PT têm uma marca de republicanismo que até irrita. Pode parecer estranho, mas Lula não é de esquerda, isso é o mais engraçado. Ele é um liberal e tem gente que o considera um extremista de esquerda, deus do céu.

Está cumprindo as metas fiscais impostas pelo grande capital e tudo o mais… críticas ao Lula até eu tenho. E muitas. Mas bem diferentes das suas, Gerusa. Lula não é super-homem. Quer agradar a todos, mas ninguém consegue. E está fazendo um bom governo. Sua meta é distribuir um pouco da riqueza para o povão. É um homem justo. Mas qualquer deslize, pimba! Lá vem o exército neoliberal de “mercado” dentro dos jornalões criticar e jogar mau-olhado.

Gerusa, seus pensamentos estão moldados por opiniões de jornalistas da grande mídia, que trabalham para defender os interesses dos patrões e do mercado financeiro. Essa porra de mercado financeiro, um bando de tubarões que ambicionam apenas concentrar riquezas. Percebe que você os defende sem saber ao certo quem são, Gerusa? Percebe que no fim defende involuntariamente os interesses deles?

Silêncio zappiano.

Tenho a sensação de que Gerusa vive em outra esfera, como se fosse um planeta vizinho, como se houvesse uma nuvem cercando esse mundo protegido de contradições, de pluralismo de informações e de possibilidades. Qualquer coisa que conteste essa redoma de certezas é tratada como ameaça, um perigo de invadir seu mundo perfeito; qualquer voz é rotulada de “esquerda” e imediatamente calada.

– É, Gerusa…você não quer papo, né…então tá.

Horas depois, Gerusa, aquela menina loira de olhos outrora melancólicos e de sensibilidade juvenil cristalina, do outro lado do meu mundo de “esquerda”, me manda o emoji de uma mulher fazendo um sinal que sugere: “não posso fazer nada”.

*Marcelo Sanches é músico, graduado em sociologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP).


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