Por LEONARDO CABRAL*
A atual conformação da realidade virtual evidencia o problema filosófico que diz de como o subjetivo e o objetivo interagem na realidade que não a virtual, para constituir simplesmente o que é “realidade”
A partir de uma autorreflexão crítica, o artigo “A lógica da realidade virtual” – postado recentemente no site A Terra é Redonda – trouxe questões que merecem ser discutidas. É conveniente que este comentário, após a exposição da lógica da realidade virtual, quebre esta lógica em nome da abertura de possibilidades.
Afirma-se que o processo definidor do sujeito em novos termos – por convergir na realidade imediata – faz as sociedades regressarem até o ponto historicamente moderno de onde os conflitos sociais contemporâneos foram iniciados. Este “moderno”, quando definido a partir dos processos de secularização que começam no século XIX, é o que causa anomia social: a perda de pertencimento a realidade que forma o que na existência é coletivo – condição que agrava os conflitos sociais.
Não será isto, porém, o que motiva a reflexão aqui exposta. Perfaremos a continuidade da reflexão sobre o que designamos ser realidade virtual, para chegar à definição do conceito de liberdade, quando o “eu”, por compreender que é “eu”, sentirá na postulação forte do termo liberdade o que esta é. E a reflexão assim exposta passa por questão que é essencialmente um começo: o que faz da realidade virtual o que podemos chamar esta assim?
A subjetividade entra na realidade virtual, que passa a ser compreendida como objetividade quando há a presença do outro – assim é a proposição elementar para o que constitui “realidade virtual”. Porém, ao passo que o outro é igualmente subjetividade que entra na realidade virtual, a relação entre sujeitos é o que cria a ilusão de objetividade a constituir “realidade virtual”. O “eu” virtual é ilusão porque é inexistente.
Assim, o cerne deste texto partirá da seguinte premissa: a atual conformação da realidade virtual evidencia o problema filosófico que diz de como o subjetivo e o objetivo interagem na realidade que não a virtual, para constituir simplesmente o que é “realidade”. Se o eu existe em relação ao outro, e este são os polos que criam objetividade – conformando realidade –, o eu e o outro têm perspectivas subjetivas, e assim a ilusão de objetividade é o que configura qualquer realidade como ilusória. Se o “eu” é a única realidade – quando o conteúdo interior ao sujeito é o que vem da realidade para ser expresso na realidade, isto é, se o “eu” é a potência de constituir realidade –, o que acontece a partir da recusa por expressar-realidade?
Retornemos à realidade virtual em seu estatuto artístico. Quando a realidade virtual é intrinsecamente artística – fotos e vídeos (em suma, textos) são produzidos para serem reproduzidos –, a identidade da realidade virtual não é necessariamente artística. Afirma-se no texto anterior que o sujeito cuja identidade é a realidade virtual tem nesta o que condiciona sua realidade imediata, o que de fato é compreensível, porém, a realidade imediata é atravessada pelo conceito que François Hartog chama “regimes de historicidade”, que forma a linha temporal a sobrepor.
Esta sobrepõe a realidade virtual quando o regime de historicidade é presentista: se o regime de historicidade atual é presentista – o que significa dizer que o presente está condicionado pelo que acontece no tempo presente –, o sujeito cuja identidade é a realidade virtual, se não está condicionado pela realidade imediata, está condicionado a expressar o presente em relação com o presente. (Ainda que seus conteúdos abranjam regimes de historicidade que não estes, a base material do sujeito – o corpo – é o que está no presente.) Portanto, reengendremos a questão: se o “eu” é a potência de constituir realidade, o que acontece quando há a recusa por expressar-realidade, se expressar esta é estar limitado pelo tempo presente?
A resposta pode ser a seguinte: se a formação do sujeito em termos novos converge na realidade imediata, há o reengendrar de conflitos modernos e contemporâneos cujo efeito é romper com a cadeia alienante do tempo no capitalismo ultraliberal. Há resposta que não esta. (Porém, pode-se parar de ler aqui e esperar que estes conflitos aconteçam; do contrário, convida-se ao prazer e à fruição do texto).
Quando a realidade virtual é intrinsecamente artística – fotos e vídeos (em suma, textos) são produzidos para serem reproduzidos –, e quando a realidade virtual condiciona a realidade imediata, o que é excluído da lógica da produção para reprodução é o que tem o estatuto de realidade que pode ser expressa por este nome. A vida, à parte realidades virtual e imediata. Se o “eu” é a potência de constituir realidades por expressar-realidade, havendo a recusa disto, o “eu” está diante do que é vazio – a falta que é constitutiva ao ser, a falta que quando é constitutiva ao ser é o que libera à criação do que Friedrich Schiller define ser ilimitado.
Porém, o que faz do vazio o que é vazio enquanto potência que cria o ilimitado? A recusa por expressar-realidade é a recusa por expressar a realidade historicamente conformada: se esta tem a direção do fim, dizer desta é o que imobiliza a direção do fim, imobilizando a direção do fim para reverter este em direção que é outra: a direção da criação, que sabemos ser o que ocorre após fim que é inevitável.
É assim que existir na realidade virtual passa à condição de aparência, à medida que este existir escapa à determinação de existir no regime de historicidade presentista, para que a existência aconteça na ausência de regimes de historicidade, o que significa existir no lugar irredutível do “eu”, o que significa preparar o pensamento para o socialismo.
A ausência de regime de historicidade a condicionar é o que demove o tempo para abrir o que é o “lugar do eu”, e este é o que o ser concebe intrinsecamente para si, porém, a questão é: será que o eu concebe infinitamente para si? Para a criação coletiva do ilimitado, reescreve-se a lógica que constitui a realidade virtual: “Se o eu existe em relação ao outro, e estes são os polos que criam objetividade – conformando realidade –, o eu e o outro têm perspectivas subjetivas, e assim a ilusão de objetividade é o que configura qualquer realidade como ilusória.”
Reescreve-se para a seguir avançar sobre o negativo da realidade virtual: assim como a realidade virtual é ilusão, qualquer realidade é ilusão, porém, ao igualar duas realidades que são ilusórias, retém-se o espaço de realidade que é incondicionada, e este é o espaço de realidade socialista onde a interação entre sujeitos torna a sensibilidade o que é elemento central. A criação do ilimitado – onde o que fazemos é o que fazemos quando a única pragmática é destruir o capitalismo – passa pelo pensamento quando incondicionado: se a produção do que fazemos para ser reproduzido é o que não diz do que somos, esta é produção que diz do que seremos, e o que seremos é irredutível quando é o que existe em nossa vida interior, nascendo desta.
Existindo em nossa vida interior – dispondo nesta o que são conteúdos elementares: a sensibilidade que produz inteligência – o “eu” em relação ao “outro” não forma o sistema antes pertencente à realidade historicamente conformada; o que há é potência de realidade nova, esta que nasce da liberdade inerente ao ato de sentir, criar e sentir, continuamente, nesta que é a essencial definição de liberdade. O igual processo de criação de realidade – após a inferência crítica que diz do lugar do conflito social e do lugar do pensamento – é processo que retorna, abrindo a existência para a dimensão onde as utopias acontecem.
O que é contra a utopia é a anomia, esta ausência de significação coletiva que paralisa o pensamento e a ação, quando o que movimenta o pensamento e a ação depende da sensibilidade que produz inteligência, diante de tempos que conflitantes são o que instauram a anomia a partir do medo. Assim, a dialética entre realidade virtual e vida, ao revelar que aquela pode ser dissociada desta – quebrando o que o texto anterior define ser a lógica da realidade virtual –, faz isto, e faz com intensidade, para que a vida não seja reduzida pelo pragmático algoritmo, este que pretende determinar o indeterminável, este que diante da criação do ilimitado é apenas o número que diz da época o que a época não é, quando humanidade é o que não aceita ser reduzida ao cálculo.
*Leonardo Cabral é historiador em formação e escritor. É autor do romance Os esboços camponeses (Telha).
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