Legados — a coleção de arte africana Cerqueira Leite

Imagem: Jornal da Unicamp
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Por LISY-MARTA HELOÍSA LEUBA SALUM & RENATO ARAÚJO DA SILVA*

Introdução dos autores ao livro recém-publicado

A ideia do termo “legados”, título desta publicação, leva facilmente ao conceito de patrimônio. Vivemos em um mundo em que não há mais lugares, se não os transitórios e na maioria das vezes construídos, como o das chamadas diásporas africanas, forçadas pela escravidão nas Américas e pela colonização na África. Como, então, continuar associando memória e patrimônio? Como lapidar, tornar transparente e pluralizar o sentido monolítico de legado, e como aplicar este termo diante de todos os olhares que devemos ao tema?…

Porque não há um só, mas há — tem de haver — múltiplos e diversos olhares diante da arte africana sem que se perca a noção de sua inteireza, e de nossa inteireza diante dela. Muitos estudiosos de arte africana elevam arte e vida a um só patamar, como parte de um binômio. Não porque arte fosse vida, ou vida fosse arte, mas porque, em culturas antropocêntricas como as não-ocidentais, a arte faz parte da vida na mesma dimensão em que a vida faz parte da arte. Como um fenômeno de múltiplas direções, o etnólogo suíço Jean Gabus do Musée de Neuchâtel qualificou a arte africana de “objeto testemunho”, por suas funções variadas: desde a religiosa, a educativa, a mnemônica, ou, em muitos casos, a do próprio registro da história, material e visual, entre outras.

Tais funções sobreviveriam ao capitalismo desde a partilha do continente, ao processo de colonização por 60 anos? Para nunca esquecer, precisamos juntar os fragmentos desta história mal escrita. Devemos considerar que os objetos circulam; os homens não são isolados, a cultura é dinâmica, e, na linha do tempo, algumas categorias da produção artística mudam de função, alguns de seus elementos formais podem se modificar, mas há um sentido que perdura e se reflete em territórios de fronteiras políticas e linguísticas mescladas, como se observara mesmo antes da modernização política dos países no continente a partir da década de 1960.

Tratamento documental da Coleção

Muitas vezes, o estabelecimento de fronteiras, quaisquer que sejam elas, é arbitrário, como muitos critérios de classificação. É o que ocorre no emprego de sistemas classificatórios, necessários à catalogação dos acervos da maioria das coleções e dos museus, pelos menos nos mais antigos. Esta preocupação é mais gritante tratando-se das artes, povos e culturas da África representados na Coleção de Arte Africana Cerqueira Leite (ccl), de natureza quase enciclopédica. O critério da “continuidade de forma”, adotado pela Unesco e pelo Centre National de la Recherche Scientifique, de Paris, entretanto, aplicado a uma exposição itinerante de painéis que correu o mundo a partir de 1971, pareceu ser bem aplicável para o tratamento das artes africanas ditas “tradicionais”.

Na ocasião, a antropóloga Jacqueline Délange, uma das organizadoras do Musée do Trocadéro e fundadoras do Musée de l’Homme, dizia: “A obra plástica é antes de tudo uma criação material”, o que, em outras palavras, corresponde ao que primeiramente nos importa aqui destacar: a materialidade da obra como fundamento da criação plástica. Somada aos materiais e técnicas está a história dos criadores do que se constitui o amplo repertório de saques, sem informações suficientes disponíveis e muitas vezes deturpadas — saques estes que superaram a capacidade de propósitos de salvaguarda dos museus ocidentais prestes às lutas de libertação na África e mesmo durante os movimentos pós-coloniais.

A formação da Coleção de Arte Africana Cerqueira Leite, que vem de quarenta anos, está para além das peças retiradas à força da África, mas as obras que a constituem têm um valor que, além de permitir a fruição da diversidade de formas africanas de arte, implicam também em considerar o espólio colonial de um corpus que representa, nos catálogos de difusão, produções hoje tidas clássicas da arte africana. Entre elas, se junta o que, no Ocidente, antes da colonização da África, conservava-se desde os chamados “gabinetes de curiosidade”. Monarcas do Renascimento europeu foram dos primeiros fregueses dos ateliês existentes na costa centro-ocidental da África quando da chegada dos primeiros navegantes; muitos séculos antes, cronistas árabes antecipavam a existência de arte no continente desde sua parte setentrional e leste.

Assim é que decidimos manter como primeiro critério de estruturação deste catálogo o seu agrupamento por regiões geográficas, linguísticas e estilísticas, sem esquecer de que os registros históricos de “territórios étnicos” são construções ideologicamente manipuladas, ignorando dinâmicas de pertencimento. Do mesmo modo, a designação de formas e estilos da arte africana assim como das culturas e sociedades de que provêm (mesmo assim dizemos “a que pertencem”) é aqui feita a partir de uma literatura ampla, de múltiplos autores e orientada sobre metodologias díspares — assim não poderia deixar de ser, posto que tomadas em conjunto. Este critério isolado nunca suplantaria a arbitrariedade dos sistemas classificatórios.

Os fluidos limites dos centros estilísticos de cada grupo sociocultural se sobrepõem aos seus limites político-geográficos mas é preciso ter em conta a distorção, e também a revisão do que se tem feito sobre este tipo de recorte. Estes, por sua vez, são traçados — também de modo aproximado — dentro e entre os contornos dos países do continente africano, os quais foram repartidos, considerando a variabilidade de limites territoriais e identitários decorrentes das dinâmicas sociais internas antes da partilha colonial, sobretudo porque movidas pelo domínio estrangeiro, e as que se seguiram.

Para identificar a procedência das obras, cruzamos dados tipológicos advindos de raros catálogos “raisonnés” (como de estatuárias ou de armarias, por exemplo) com categorias de classificação da história da arte aplicadas pelos museus de antropologia, mesmo que em muito já ultrapassadas pela periodização que implica, mas ainda universalmente adotadas. Afinal a própria universalidade da arte é de princípio negada pela diversidade das relações entre os homens, e deles com os objetos — para o quê a arte, em amplo sentido, nos desperta.

Normas de redação e linguagem adotadas

Os nomes das sociedades ou culturas às quais identificamos as obras aqui publicadas vão grafados da forma mais recorrente nas principais fontes credenciadas sobre o assunto e foneticamente aportuguesadas quando necessário. Sua localização no mapa e dados populacionais, feitos através de fontes variadas, é apenas ilustrativa e não corresponde à dinâmica histórica vivida por cada uma delas e da relação entre elas.

Na grafia de palavras específicas relativas às artes, sociedades e culturas do complexo linguístico bantu, usamos a prefixação determinada por um dos processos próprios de formação dessas palavras — ki- no caso das línguas locais citadas; ba-, wa- e bena-, entre outros prefixos, no caso dos adjetivos gentílicos —; e, mantemos os radicais sem afixação, usando-os apenas para qualificar substantivos (objetos, pessoas, lugares, além de conceitos ou noções imateriais). Assim, a arte kongo (ou a arte dos bakongo) advém de artistas do complexo cultural kongo — deles vêm os estilos kongo, mas também os estilos yombe (dos bayombe) e vili (dos bavili).

Já os benakalebwe, que são uma das ramificações socioculturais dos bassongue, são renomados pelos estilos kalebwe da estatuária songue. Observa-se que, em nossa escrita, em vez do anglicismo songye, grafia hoje popularizada universalmente pelos catálogos de difusão, usamos songue e, como tal, bassongue — transcrição mais próxima da fonética do termo, conforme literalizado primeiramente em francês e alemão, basonge. Assim procedemos em relação a alguns outros nomes pátrios. A considerar, ainda tomando como exemplo as línguas bantu, formas da arte kongo podem ter características estilísticas dos bavili e dos bayombe, mas, diante do corrente entrelaçamento destes e outros de estilos a eles atribuídos por razões culturais e históricas, muitas de suas obras poderão ser tidas genericamente como dos bakongo, compreendendo formas ou estilos particulares dos demais sub-grupos eventualmente representados (bassundi, bassolongo, bawoyo). Além disso, devemos considerar esta norma para a maioria das sociedades e culturas de línguas bantu, mas nem todas (por exemplo, as inseridas nos limites do Gabão, Congo Brazza, Camarões).

Note-se ainda que os nomes dos grupos, sociedades ou culturas vão no singular e em minúsculas, de um lado porque a sinalização de gênero e número se difere em cada língua e, de outro, porque (ao contrário do inglês) no português do Brasil não se escreve sociedade brasileira nem brasileiros com inicial maiúscula.

Alguns nomes de sociedades africanas já são dicionarizados entre nós, assim se escreve ioruba com i em vez de y, mas, sem acento, pois essa denominação se vê pronunciada não apenas como palavra oxítona, mas, às vezes, como paroxítona também. Em virtude disso, que ocorre diversamente no conjunto de línguas africanas, decidimos não acentuar todos os nomes e termos vernaculares mencionados.

Apresentação e organização das obras

O catálogo está organizado em cinco partes. A cada obra ou conjunto de obras apresentadas corresponde um texto analítico-descritivo, com dados históricos e etnográficos referenciados em uma bibliografia especifica sugerida no final. Apresentam-se, primeiramente, as obras da ccl que se reportam às artes da África setentrional arabizada, bem como a do lado oriental do continente, também de forte penetração islâmica pelas rotas de comércio e de trocas político-econômicas.

O grande número de obras atribuídas a povos da África central permite melhor compreender as interconexões de tradições tecnológicas e estéticas que circularam no Continente. A África ocidental é também fartamente representada na ccl com obras de uma vasta tipologia que se expande, com grande diversidade de estilos e formas artísticas associadas à economia e à vida cotidiana, para além da estatuária, mobiliário e adereços que predominam nas duas primeiras partes. O catálogo se conclui com duas partes temáticas, uma destacando a arte do metal e a outra do marfim, enfatizando a importância da abordagem dialética da arte africana entre tradição e modernidade.

África circular e entrecruzada. Como dizia Fernando Augusto de Albuquerque Mourão, fundador do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana da Universidade de São Paulo, “a relação do mundo africano com a concepção dos eventos históricos tem natureza própria. Situando melhor, esta relação reside no conceito central de circularidade totalizante, envolvendo tempo e espaço. A gênese do passado surge como legenda maravilhosa na perspectiva de uma memória antiga num tempo novo — a epopeia oral, história viva dos povos africanos, constitui-se no início da história escrita. […] A escultura arquitetural, o mobiliário, a estrutura das construções são elementos que, se entrecruzados, poderiam fornecer importantes informações de natureza ampla. […] A concepção geral dessas obras está muito próxima à visão do mundo africano o que torna reveladora a relação entre estrutura arquitetural e pensamento (Mourão, 1996, p. 6; p. 17-18).

Além dos arabescos da produção artefatual provenientes de boa parte setentrional e oriental do continente, que também ocorrem na arquitetura tradicional, podemos citar aqui, como padrões de circularidade, o existente nas máscaras bifwebe dos baluba e dos bassongue, da África central, com formas e funções similares ou, da África ocidental, os estilos baulê, yaurê e guro. Os memoriais e outros suportes materiais de contextos fúnebres de sociedades intrínsecamente relacionadas como os obamba, betsi, okak, ntumu, bulu, dos limites entre a África central e ocidental, também são exemplos dessa circulação, do ponto de vista conceitual e formal.

O mesmo se pode dizer da abstração de certas formas etíope e akan, ainda que elas pareçam se antepor ao antropomorfismo quase sempre explícito de máscaras e estátuas. Resultante de uma suposta iconoplastia maometana fixada no continente africano desde os antigos períodos de invasão de seus territórios, a abstração de formas, na verdade, reconstrói de modo decorativo e abstrato, conceitual e estético, a representação da figura humana enquanto centro e periferia da imagem, com a mesma força em que se funda a criação de figuras antropomórficas — bem ao contrário do estereótipo pelo qual a arte africana é, ainda, identificada.

O desígnio, entre o efêmero e a tangibilidade

Pouco contaram para a historiografia da arte africana os ateliês e artistas tradicionais, que, por descaso e preconceito, não foram devidamente documentados. Quando apenas em favor da propaganda colonial e do incremento do mercado internacional de arte é que se deslanchou a corrida pela identificação de “mãos de artistas” (muitas já desaparecidos), através da análise morfológica de objetos preservados em museus e coleções.

Cópias? — Faz bem mais de 100 anos que os africanos passaram a criar “cópias” para europeus e norte-americanos. Mas, a dinâmica da arte africana superou todas as rupturas advindas das atrocidades e ambição de invasores — isso a ser constatado nas afro-Américas ou nos interiores da África atual, onde a arte tradicional sobrevive e se refaz.

Nos estudos atuais de arte africana domina a discussão sobre seu valor atual como comódite e sua autenticidade, o que aliás já vêm dos primeiros estudiosos do assunto preocupados com o advento da modernidade, com a colonização e sua repercussão nas religiões e artes tradicionais. Se há algo que, de fato, vem sendo “falsificado”, a questão se volta para a intenção ou interesse de quem procura saber se este ou aquele objeto de arte é “autêntico”.

O mais importante a considerar na abordagem da arte africana é a sua diversidade e pluralidade dentro das mudanças sociais e históricas. E isso só se alcança com o resgate do conhecimento do passado construído sobre essas produções, com espírito crítico, indispensável para novos levantamentos sobre contextos técnico-artísticos do presente relacionados.

Certa vez, ouvimos do colecionador Rogério Cezar de Cerqueira Leite uma frase que guardamos com muita estima: “Colecionar arte africana exige um espírito algo detetivesco e muito missionário”.

Figurativamente, ela não poderia vir senão da percepção, entre todos nós, de uma identidade implícita, e tão diversa na nossa sociedade, imbuída de um “algo a descobrir”, sempre às vésperas de eclodir, de se manifestar. Isso se expressa na imagem de capa que ele próprio escolheu, com que nos brinda a todos. Aos voltados à apreciação e ao estudo de expressões nucleares, originárias; àqueles que se identificam com as problemáticas implicadas e têm comprometimento com elas; aos artistas aqui representados.

 “Quem somos, de onde viemos e por onde vamos?” — são questões formuladas pelo professor Kabengele Munanga que possibilitam o reconhecimento das diferenças, na luta pela eliminação das desigualdades em nossa sociedade. Num Brasil, formado por uma população com mais que 50% de ascendência africana, a Coleção de Arte Africana Cerqueira Leite, com obras da África do norte ao sul e do leste ao oeste, se dispõe como mais um instrumento de reencontro com o universo de onde viemos, para que possamos vir a ser o que, de fato, viemos para ser.

*Lisy-Marta Heloísa Leuba Salum é professora de Etnologia Africana no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

*Renato Araújo da Silva é pesquisador da Associação Museu Afro Brasil. Autor, entre outros livros de Arte afro-brasileira: altos e baixos de um conceito (Ferreavox).

Referência


Lisy-Marta Heloísa Leuba Salum & Renato Araújo da Silva. Legados — a coleção de arte africana Cerqueira Leite. Campinas, Editora da Unicamp, 2024, 388 págs. [https://amzn.to/4gFX9Ij]


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