A teoria política da Terceira Internacional (1919-1924)

Imagem: Joel Kueng
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Lênin e Trotsky e os conceitos de equilíbrio instável e frente única

“As ideias têm peso no equilíbrio da ação política e no resultado da mudança histórica. Quanto mais radical e intransigente for o corpo de ideias, tanto mais abrangente será seu efeito, uma vez libera[da] em condições de turbulência [social e política do povo trabalhador insatisfeito com a ordem vigente]; ideias que não sejam capazes de chocar o mundo não serão capazes de sacudi-lo”. (Perry Anderson, Ideias e ação política na mudança histórica).

Desde o debate-Bobbio dos anos 1970 circula em certos ambientes intelectuais, políticos e, sobretudo acadêmicos, a compreensão que o marxismo de modo geral não possui uma ciência política e/ou teoria política. Respondendo aos comunistas de então o escritor político italiano afirmava que: “em geral persiste […] um subdesenvolvimento dos estudos marxistas nos campos […] da ciência política, [teoria política] e [filosofia] jurídica.” Em seus termos, uma ciência política e/ou teoria política marxista é “substancialmente falha” porque nela está ausente modelos analíticos de como administrar o poder; precisamente os centros organizativos do Estado moderno (burocracia, parlamento, exército).

Um dos meios para se dissipar esse profundo engano é investigar momentos históricos em que o marxismo alcançou grande desenvolvimento teórico e intelectual; de quando teve de elaborar e refletir acerca das condições subjetivas e objetivas da ação político-prática com vistas a revolução e à tomada do poder de Estado. A Terceira Internacional entre o período de 1919 e 1924 pode ser considerado como um desses instantes.

Formada no contexto da onda expansiva da Revolução Russa de 1917, a Terceira Internacional tinha dois objetivos fundamentais: primeiro, dispor ao movimento operário internacional de um dispositivo que permitisse, por meio da compreensão teórica, da organização, da estratégia e da tática, a conquista do poder político; segundo distinguir-se, politicamente, da Segunda Internacional, dos reformistas.

No discurso de abertura do primeiro congresso, realizado em 2 de março de 1919, Lênin evocava – “rogo a todos os presentes que honremos a memória dos melhores representantes da Terceira Internacional, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, pondo-se todos de pé”; na ocasião havia menos de dois meses em que Liebknecht e Rosa tinham sido assassinados pelos corpos francos da direita sob a conivência do governo social-democrata nas circunstâncias da Revolução Conselherista Alemã de 1918. Para realizar estes dois objetivos, os principais teóricos, intelectuais e políticos marxistas do período desenvolveram uma teoria política (ou se se preferir uma ciência política) que possibilitasse: entender, por um lado, as intrincadas dinâmicas das relações entre o Estado, a economia e a luta de classes, e por outro, (e a partir do primeiro objetivo) qual a estratégia e a tática que melhor conviesse para que os trabalhadores revolucionassem o mundo com sua insurreição socialista.

O núcleo formativo da teoria política nessa circunstância era composto pelos conceitos de equilíbrio instável e frente única. Foram Lênin e Trotsky os principais articuladores dessas noções. Dirá Perry Anderson que foram Lênin e Trotsky os principais arquitetos da construção do conceito de equilíbrio instável e da teorização clássica sobre a frente única no Terceiro Congresso da Internacional Comunista em 1920. (Importa dizer aqui que Perry Anderson sustenta que Antonio Gramsci identificava sua guerra de posição com a estratégia-tática de frente única.)

Assim, resumidamente, o significado da noção de equilíbrio instável vem a ser o constante processo de ruptura e reconstrução das estruturas e superestruturas do regime de dominação capitalista; enquanto o significado de frente única pode ser compreendido como a estratégia-tática de conquista da maioria das massas trabalhadoras e do povo pobre por meio de reivindicações e ações práticas comuns que unifiquem as demandas da maioria dos subalternos. Em termos interpretativos, o equilíbrio instável possui três momentos. Quais são eles? Como eles se combinam? E qual seu resultado dinâmico?

Se o equilíbrio instável se define, precisamente, como o constante processo (sobretudo na etapa imperialista) de ruptura e reconstrução das estruturas e superestruturas do regime de dominação capitalista (foi o que verificamos com a crise do sistema financeiro em 2008 e a rearticulação do poder de classe da burguesia oscilando entre o social-liberalismo e a direita intransigente de tendências fascistas), ele só se configura como equilíbrio instável enquanto tal se percorrer três momentos.

São eles: o primeiro, corresponde à situação econômico e da relação entre os Estados burgueses; o segundo, diz respeito ao conflito partidário (a disputa entre os partidos radicais, socialistas e comunistas e os partidos sociais-democratas e sociais liberais); e o terceiro, é o instante ou não em que as potencialidades subjetivas dos trabalhadores e trabalhadoras se põem à mostra.

A rigor, o primeiro momento, o do instante concernente à situação da economia e a relação entre Estados burgueses ocorre de quando a economia apresenta booms e crises, ou seja, é quando paralelo à curva de desenvolvimento ou decadência do capitalismo ocorrem picos de melhoria e surtos violentos de crise. Nos booms há conjunturas de crescimento do comércio, expansão de investimentos e concessão aos trabalhadores; nas crises há fechamento de indústrias, fusões de grandes corporações, financeirização, diminuição dos lucros (na formulação contemporânea de Robert Brenner, incapacidade do sistema capitalista de auferir taxas de lucratividade a contento, é o que caracteriza de maneira geral o que chamamos de neoliberalismo com variações no regime de acumulação de tempos em tempos, desde os anos 1980), ataques e ofensivas contra os ganhos que os trabalhadores conquistaram no momento do boom.

Do ponto de vista dos Estados burgueses e a relação entre eles, essa torna-se mais tensa e mais contraditória. Ao mesmo tempo, em que tem que estar mais coesos para empreender a dominação contra a classe trabalhadora, tem que disputar com seus principais competidores no espaço do mercado mundial, bem como consolidar seu poder e sua legitimidade internacional. Isto cria reconfigurações constantes nas principais estruturas do Estado burguês – expressadas por teorias políticas e sociais tais como as que escreveram Max Weber, Carl Schmitt, Joseph Schumpeter, Gaetano mosca e Vilfredo Pareto.

O Estado de exceção conceituado pelo pensador crítico de esquerda Giorgio Agamben nas últimas décadas, pode ser abordado pela perspectiva do equilíbrio instável, no instante de reconfiguração violenta do Estado e política burgueses: aqui, a lei se transfigura diante de eventuais guerras civis, em força-de-lei.

O segundo momento do equilíbrio instável é de fundamental importância. Pois, se estabelece na disputa entre partidos radicais (revolucionários) e partidos sociais-democratas e sociais-liberais. Por um lado, aqui existe um pêndulo que oscila entre uma maior influência dos comunistas tanto quando os trabalhadores e trabalhadoras estão mais unificados em circunstâncias de boom e buscam um maior ganho material e de quando nos momentos de crise e são atacados pelo capital precisando reagir para manter as antigas posições conquistadas estabelecem posições mais defensivas.

Por outro lado, a influência da social-democracia e do social-liberalismo aumentam, na medida em que o boom pode forjar uma consciência mais adaptada às concessões do capital – é o que Theodor Adorno enfrentou no cenário alemão dos anos 1960 –, assim como se adequam às configurações político-sociais existentes em cenários de reformas do capital, e procuram defender o que obtiveram (direitos sociais, melhores condições de trabalho, aumento de salário etc.) na situação anterior.

Especificamente, no que diz respeito à social-democracia, entendida conceitual, política e historicamente, ela enquanto tal, é um dos componentes internos de reconstrução do equilíbrio burguês, pois age como elemento de contenção da ascensão do movimento revolucionário, dando possibilidade para a classe burguesa recuperar e recompor temporariamente o regime econômico e político. O drama da Revolução Alemã, os conselhos espartaquista, de 1918, inscreve-se, categórica e fundamentalmente, no círculo de proteção ao Estado e regime burguês exercido pelos sociais-democratas (Ebert, Noske, Scheidemann; e tempos depois Kautsky) – no auge da insurreição o SPD “usou os Freikorps para [esmagar] e liquidar Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht” (Perry Anderson).

Duas observações: (i) no artigo “A Terceira Internacional e seu lugar na história”, Lênin deixava clara que a tarefa da nova internacional era combater e substituir a Segunda Internacional, em outras palavras, substituir a perspectiva da democracia parlamentar burguesa pela estratégia auto-organizada da ditadura revolucionária do proletariado. (ii) Trotsky no artigo The Main Leson of the Third Congress afirmava que a social-democracia era um escudo da burguesia contra a revolução dos trabalhadores e trabalhadoras.

O terceiro momento do equilíbrio instável está centrado na potencialidade subjetiva ou não do movimento operário. Podemos dizer que na questão político-psicológico o equilíbrio instável traz a repercussão para o sujeito revolucionário dos outros dois momentos acima estabelecidos. Contraditoriamente, a potencialidade subjetiva dos trabalhadores é o mais importante dos três momentos. Ou seja, como vai atuar a classe operaria? Ela irá a uma ofensiva revolucionaria para completar a ruptura da estabilidade relativa ou vai refluir e permitir a sua recomposição pelas forças da ordem do capital? Com efeito; sugere-se que de acordo com as elaborações de Lênin e Trotsky haverá, no âmbito mesmo de estruturação do equilíbrio instável, oscilações constantes com períodos de ofensivas revolucionarias e períodos de refluxo do movimento após batalhas em que não se consegue a conquista do poder.

O significado desta configuração tripla do conceito de equilíbrio instável (mais uma vez, rupturas e reconstruções ds estruturas e superestruturas do regime capitalista) empreendida pela teoria política da Terceira Internacional era que somente através de uma compreensão do conjunto das relações de força entre as classes é que se poderia desdobrar uma estratégia e tática precisas para a revolução e conquista do Estado. Em outras palavras, ainda que a economia fosse decisiva como totalidade imanente da existência como lembravam Lênin e Trotsky (e outros teóricos do período) constantemente em seus textos, era na correlação de forças políticas que se decidiria os destinos da revolução ou não. Daí que a teoria-estratégia ou teoria-tática de frente única.

A teoria da frente única era justamente a proposição prático-conceitual desenvolvido nos congressos da Terceira Internacional; mais precisamente a partir do 3º Congresso em 1920. Como sustenta Perry Anderson, já referido acima, foram Lênin e Trotsky, que na crítica à ofensiva direta e sectária de alguns agrupamentos comunistas, os elaboradores teóricos do documento clássico sobre a frente única. Assim, a estratégia-tática de articulação unificada permitiria com que a classe operária rompesse o equilíbrio instável a seu favor.

Na medida em que esse era conformado, como vimos, por rupturas e reconstruções (booms e crises; relações contraditórias entre Estados imperialistas, semicolônias e colônias; disputa entre comunistas e social-democratas e oscilação na potencialidade subjetiva dos trabalhadores/ras), era patente que as massas proletárias avançariam e refluiriam, sendo necessário deste modo, colocar como tarefa a conquista da maioria dos subalternos pelos partidos comunistas por intermédio de exigências e demandas materiais contingentes e imediatas, por vezes politicamente transitórias, para os que vivem da sua força de trabalho.

Por outras palavras: a frente única é o momento, instante, pela qual os partidos radicais-revolucionários em articulação com a classe trabalhadora empreendem ações político-práticas que busque realizar os anseios mais objetivos (hoje os anseios subjetivos são de considerável importância, em decorrência das transformações da economia capitalistas e as formas de existência que ele desencadeia) concernente as condições de vidas do conjunto dos explorados e oprimidos.

Na formulação sintética de Lênin – “devemos defender sem falta […] como primeiro ato [do Terceiro Congresso da Internacional Comunista] o ato [e a ação] do método prático de atrair a maioria da classe operária […] devemos conquistar a maioria da classe operária, [mas também] a maioria da população rural explorada e trabalhadora”; esse deve ser o artifício histórico-político da united front. Cabe insistir que a teoria da frente única surge nos debates da Terceira Internacional como resposta à teoria da ofensiva de uma minoria que arrastaria atrás de si a maioria do proletariado; tal concepção foi elaborada e desenvolvida pelos teóricos da revista vienense Communism, levando à derrota a Ação de Março de 1921 – na ocasião, a classe operária não seguiu os idealizadores da teoria da ofensiva (a minoria consciente) face uma correlação de forças desfavorável naquele momento preciso e determinado. Por fim, deve-se lembrar que a teoria da frente única é uma ação entre organizações da classe trabalhadora, empreendida para impulsionar os próprios sujeitos subalternos para posturas coletivas com capacidade revolucionária. Isso compreende duas considerações: a frente única não é no interesse das instituições da democracia liberal-parlamentar ou mesmo dos partidos envolvidos nela; nem é uma frente popular (ou frente ampla no vocabulário contemporâneo, sobretudo no Brasil) que congregue demandas da burguesia progressista e da classe média liberal-conservadora.

É certo que este breve ensaio se orienta por uma reflexão histórico-conceitual de um tempo de há muito afastado das questões mais urgentes da luta de classes atual. Evocar duas formulações elaboradas nas circunstâncias dos anos 1920, pode parecer excessivamente antiquarista. Não se trata de sermos guardiões eruditos do instante de glória da história do socialismo, nem mesmo de sermos exegetas de textos da tradição clássica do marxismo – ainda que esses exercícios intelectuais sejam de extrema importância.

Entretanto, a abrangência dos problemas enfrentados pelo conjunto da esquerda radical é incomensurável. Conjunturalmente, não se trata, apenas, de combater a direita intransigente, de tendências eminentemente reacionárias, antipovo e fascista; ocorre que o social-liberalismo (o vestígio longínquo do ideário social-democrata que é sobreposto às políticas multiculturalistas e das identidades, o reconhecimento cultural) – que disputa com aquela quem irá consagrar melhor as novas formas do regime de acumulação de capital, com vista a reestabelecer taxas de lucro aceitáveis para a classe burguesa – apresenta-se hoje, com as devidas diferenças políticas, como adversário na busca pela reconstrução da esquerda.

Ora, não se conseguirá soerguer uma alternativa autêntica para os de baixo, o povo trabalhador, se não difundirmos por toda a sociedade: ideias insurrecionais, temperamentos transformativos extremos, cultura marxista, pensamento crítico, teoria socialista e hipóteses revolucionárias. Desse modo, os dois conceitos, o de equilíbrio instável e de frente única delineados por Lênin e Trotsky no contexto da Terceira Internacional até 1924 e suas implicações, conceitos esses que compõem uma teoria política e/ou ciência política histórico-materialista, são sugestivos no atual estágio de refazimento da esquerda (radical-revolucionária) contemporânea, sobretudo a brasileira.[1]

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor de Ciência Política na UFSCar.

Nota


[1] Esse debate fundamental e decisivo na história político-intelectual da esquerda no século XX, pode ser lido e estudado nas seguintes referências bibliográficas: Theodor Adorno – Resignação, Cadernos de Filosofia Alemã, v. 23, nº 1, 2018; Giorgio Agamben, Estado de Exceção, ed. Boitempo, 2004; Perry Anderson – A Antinomias e Gramsci. In: Perry Anderson – Afinidades Seletivas, Boitempo, 2002, As Ideias e a Ação Política na Mudança Histórica, Revista Margem Esquerda, nº 1, 2003; Norberto Bobbio – Qual Socialismo? Uma discussão alternativa, ed. Paz e Terra, 1983; Robert Brenner – Novo Boom ou Nova Bolha?; a trajetória da economia norte-americana. In: Contragolpes – Seleção de Textos das New Left Review (Org. Emir Sader), ed. Boitempo, 2006; Milos Hájek – A Discussão sobre a Frente Única e a Revolução Abortada na Alemanha. In: Eric J. Hobsbawm – História do Marxismo, v. 6, Paz e Terra, 1988; V. I. Lênin – I Congreso de la Internacional Comunista (Discurso de Apertura del Congreso el 2 de Marzo). In: V. L. Lênin – Obras Escogidas-Tomo IX, ed. Moscou, 1977, Discurso em Defesa da Tática da Internacional Comunista no III Congresso da Internacional Comunista [19 de Julho de 1921]. In: V. L. Lênin – O Trabalho do Partido entre as Massas, ed. Ciências Humanas, 1979; A III-Internacional e seu Lugar na História-https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/04/15.htm; Leon Trotsky – La Situación Mundial. In: Naturaleza y Dinámica del Capitalismo y la Economia de Transición, ed. CEIP, 1999, Flujos y Reflujos: La conjuntura económica y el movimento obrero mundial. In: Naturaleza y Dinámica del Capitalismo y la Economia de Transición, ed. CEIP, 1999, The Main Lesson of the Third Congress-https://www.marxists.org/archive/trotsky/1924/ffyci-1/, On the United Front- https://www.marxists.org/archive/trotsky/1922/03/ufront.html.


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