Cinema de lágrimas

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Considerações sobre o filme de Nelson Pereira dos Santos

Em 1995, Nelson Pereira dos Santos lançou Cinema de lágrimas, longa-metragem que teve uma acolhida morna por parte da crítica. Quando o diretor foi escolhido pelo British Film Institute como um dos cineastas que contariam a história do cinema, por ocasião de seu centenário, as expectativas eram muitas. Provavelmente, esperava-se dele uma espécie de balanço daquela corrente cinematográfica que tinha ajudado a consagrar: o Cinema Novo.

Nelson Pereira dos Santos, no entanto, foi na contramão, abordando o melodrama latino-americano entre os anos 1930 e 1950, assim como havia ido na contracorrente no filme anterior, A terceira margem do rio (1994). Neste, em plena era Collor, quando todos pareciam tomados pelo frenesi de pertencer ao Primeiro Mundo, o diretor, desde o coração do Brasil, lançava na cara de todos nós o subdesenvolvimento do País, apresentando os bolsões de miséria que circundam a capital federal.

Cinema de lágrimas, dissemos, não teve uma boa acolhida, porque, além de apresentar alguns problemas que prejudicaram seu resultado final, não era uma obra modernosa; mas era um filme instigante. Vamos lembrar rapidamente seu enredo.

Depois do fracasso da montagem de sua última peça (Amor), Rodrigo, um ator e produtor teatral, atormentado por uma lembrança recorrente – a da noite em que sua mãe se suicidara –, resolve procurar a fita a que ela deve ter assistido antes de cometer tal gesto. Nessa busca, em que é auxiliado por um jovem pesquisador chamado Yves, passa a assistir, na Universidade Nacional Autônoma do México, a uma série de melodramas argentinos e, principalmente, mexicanos, realizados entre 1931 e 1953.

O próprio filme vai fornecer-nos uma série de pistas sobre o porquê de a mãe e as tias do protagonista se refugiarem no universo encantado do cinema: as mulheres tinham poucas opções fora da esfera do lar, estavam praticamente proibidas de sair sozinhas, a não ser para irem a alguns lugares, entre os quais o cinema (“sessão das moças”), onde os melodramas ofereciam modelos de comportamento e funcionavam como consultórios sentimentais.

Enquanto Rodrigo segue em sua busca pessoal, ecos e imagens de um outro cinema se insinuam no filme: são cartazes do Nuevo Cine Latinoamericano ou do Cinema Novo (e de seus herdeiros), que a câmera vai revelar en passant, percorrendo os corredores da UNAM e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; são trechos de aula que captamos, vindos das salas da universidade no México.

Nessas aulas, fala-se de como o cinema de autores se opôs a Hollywood e de como, por sua vez, em virtude de contradições políticas, seus diretores foram sendo superados por uma nova geração disposta a apagar as questões personalistas contidas nesse tipo de cinematografia. Fala-se ainda da nova postura ética dos cineastas em relação à sociedade, que os levou a tomarem consciência das injustiças sociais. São nominalmente citados Tomás Gutiérrez Alea (que, em seus filmes, já apontava para essas rápidas mudanças da sociedade) e Glauber Rocha – com sua câmera na mão e uma ideia na cabeça.

Localizada a fita, graças ao pesquisador, Rodrigo, ao assisti-la, entende o gesto da mãe, que se suicidou com medo de que o filho de quatro anos se matasse ao descobrir sua vida amorosa, assim como havia feito o jovem personagem de Armiño negro (1953), de Carlos Hugo Christensen.

Ao longo de Cinema de lágrimas, a imagem idealizada da mulher – ou antes, da mulher por excelência, a mãe (figura mítica que, em sua resignação e sofrimento, se equipara à Virgem Maria) – vem sendo lentamente desconstruída, para dar lugar a uma mulher mais carnal, mais humana, porém mais perigosa porque pode ameaçar a estrutura afetiva do homem. É a prostituta, é a mulher má, mas é também simplesmente a mulher que tenta se libertar dos grilhões do patriarcado que a confinou à esfera do privado, do afetivo, deixando ao homem o campo do público, da razão.

Purificado pelas lágrimas catárticas que banham seu rosto ao entender o gesto da mãe, Rodrigo também, como qualquer protagonista de melodrama, buscará o espaço da redenção, reintegrando-se a seu corpus social, ou seja, ao grupo ao qual deveria pertencer por ser um intelectual.

Ao terminar de assistir ao último melodrama latino-americano, Rodrigo, ainda perturbado, sai andando pelo corredor da cinemateca do MAM. A câmera, ao segui-lo, vai deslizando por uma série de cartazes de filmes brasileiros e, embora neste momento nosso protagonista ainda não tenha plena consciência da mudança que está se dando dentro dele, já podemos começar a ler essa passagem de forma simbólica: Rodrigo também pode ser visto como um dos atores do processo cultural brasileiro, empenhado em afirmar a própria identidade a partir do diálogo com o outro.

Ao seguir um rapaz que, visto de trás, parece Yves, Rodrigo entra na sala em que estão projetando a parte final de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, e, finalmente liberto das imagens de seu passado, se rende às imagens do presente: sai do velho para o novo, sai do familiar para o coletivo, sai da violação das normas morais para a transgressão das normas sociais e estéticas, sai do melodrama para o Cinema Novo.

Cinema de lágrimas foi apresentado um pouco antes do lançamento do livro de José Carlos Avellar, A ponte clandestina, obra que, ao tratar do novo cinema latino-americano, parecia retomar o discurso exatamente onde o filme de Nelson Pereira dos Santos o deixaria em suspenso. Para apresentar o grande mosaico do cinema latino-americano, fragmentado em suas particularidades, mas recomposto para formar uma unidade, o crítico carioca adota, em primeiro lugar, o bilinguismo (emprego simultâneo de português e espanhol), enquanto lastro linguístico-cultural de povos de mesma origem ibérica, que, dessa forma, podem dialogar diretamente entre si, sem nenhum intermediário.

Em segundo lugar, se vale da justaposição de vários fragmentos de discursos de diferentes diretores (Fernando Birri, Glauber Rocha, Fernando Solanas, Julio García Espinosa, Jorge Sanjinés, Tomás Gutiérrez Alea) para constituir um discurso maior, bem teórico, mas nada árido, ao contrário, bastante cativante, em que uma ideia remete a outra(s) como numa caixa de eco: “cada um de nossos textos teóricos foi apanhado pelo seguinte como um impulso para seguir pensando. Para retomar uma antiga ideia, ou menos que isso, uma impressão difusa esquecida numa entrevista ou debate, guardada num canto da cabeça. A ideia de um cine junto al Pueblo não nasce do cinema imperfeito, a estética da fome não nasce da brevíssima teoria de Birri, o cine imperfecto não nasce do tercer cine, a dialética do espectador não vem da estética do sonho. Nenhum deles é continuação, contestação ou ampliação do outro. Todos se superpõem. Discutem experiências particulares, mas próximas, vizinhas, simultâneas, no enfrentamento de um problema comum: o subdesenvolvimento, o neocolonialismo, a sub-realidade” (p. 236).

Resumindo, podemos dizer que são características desse novo cinema latino-americano: a aceitação do subdesenvolvimento como traço peculiar e a intenção de retratar a realidade como ela é, de opô-la a uma realidade “passada a ferro” e engomada, com a dos melodramas mexicanos e argentinos de matriz hollywoodiana perseguidos pelo protagonista de Cinema de lágrimas. A uma técnica apurada, prefere-se um conteúdo problematizador, a uma “perfeição sem sentido”, prefere-se um “sentido imperfeito”, nos dizeres de Fernando Birri. No próprio filme de Nelson Pereira dos Santos, num cartaz do Nuevo Cine Latinoamericano exposto na UNAM, podem se ler as palavras imperfecto e política.

Numa operação muito parecida à de Avellar, ao apresentar vários trechos de melodramas, Nelson Pereira dos Santos também acaba fazendo um mapeamento da realidade latino-americana do período que aquelas obras retratavam. É todo um jogo de remissões entre passado e presente, entre um filme e outro, entre imagens que se perseguem sem uma cronologia precisa, como se fossem determinadas pelo fluxo de uma memória em que várias alteridades se confrontam e se complementam para constituir uma identidade.

Há uma similitude entre os vários filmes que se estrutura deixando de lado (momentaneamente) as diferenças. Isso permite que cada trecho de filme seja o desdobramento de um outro, como se houvesse uma repetição ao infinito, como se estivéssemos diante de uma replicação dinâmica em que cada filme vai acrescentando mais uma nuança ao significado global de Cinema de lágrimas.

Os vários melodramas acabam funcionando como forças centrípetas, pois todos esses fragmentos do passado confluem para construir o presente. Todos os outros filmes confluem para construir o filme a que estamos assistindo. Os vários “territórios” confluem para construir um único território latino-americano, invertendo assim o processo de desterritorialização a que fomos submetidos al sur de Río Grande.

Embora de matriz estrangeira, esses filmes também retrataram nossa realidade, se não forem vistos só pelo viés político-ideológico, como os cineastas independentes ou cinemanovistas (como Nelson Pereira dos Santos na época) fizeram. Se os lermos nas entrelinhas, poderemos entender as razões que haviam permitido ao público se identificar com esses filmes e amá-los, pois eles refletiam uma série de condicionamentos sociais, culturais e morais, dentro dos quais esse público havia sido educado.

Ao se centrarem na questão amorosa, os melodramas transmitiam um valor universal dentro da cultura ocidental de matriz judaico-cristã, pela qual quem ama vale mais. A paixão ajudaria a dar sentido à mediocridade da vida do dia-a-dia; a paixão (aparentemente) subverteria a ordem social, ao permitir romper barreiras de classe e ao tornar rico o pobre. A essa paixão, aceita pela cultura ocidental desde que no fim gere a infelicidade e leve à separação, opõe-se muitas vezes o enlace matrimonial ou o amor sacrifício, sobretudo por parte da mulher, pois leva à renúncia e, consequentemente, à redenção e à conquista do céu.

Vistos desse ângulo, dos melodramas também resultará uma identidade cultural que se assenta (como em seguida farão os novos cinemas) naquele território mental que é o da cinematografia latino-americana. Assim sendo, esses filmes passam a ser um elemento indispensável para entender o novo cinema latino-americano, uma vez que ambos são fruto da mesma sociedade patriarcal.

Uma sociedade na qual a violência se manifesta tanto na esfera familiar quanto na pública, através da figura do patriarca, senhor de todos os destinos, de todos os corpos. Corpos enquanto pulsão sexual (esfera do feminino) ou enquanto força de trabalho (esfera do masculino), mas corpos também como territórios.

Na esfera familiar (âmbito do feminino), os conflitos se gerarão entre pessoas unidas por laços de sangue ou pelos afetos. Na esfera pública (âmbito do masculino), os confrontos se darão entre pessoas de uma mesma classe ou de diferentes classes sociais, mas serão sempre a reprodução da resistência a uma opressão.

Na passagem do melodrama ao novo cinema, dilemas pessoais (femininos) se transformarão em dilemas sociais (masculinos). A uma antiga ordem que as mulheres (do melodrama) romperam, substitui-se uma nova ordem que os homens (do novo cinema) querem criar. A paixão sentimental é substituída pela paixão revolucionária. A revolta na esfera do privado dá lugar à revolução na esfera do social.

Se, em Cinema de lágrimas, a figura da mãe pertence à esfera do privado, dos afetos, então ela é o melodrama e, em contraposição, o pai pertencerá à esfera do público, da razão, sendo então o novo cinema. Num dos primeiros filmes que Rodrigo assiste na UNAM – Distinto amanecer (1943), de Julio Brach –, o personagem masculino diz a seguinte frase: “Los hombres no hacemos otra cosa que perseguir a través de todas las mujeres a la primera mujer que deseamos y no tuvimos”.

Vemos, então, que só quando a ausência da mãe for preenchida, ou melhor, só depois de se aceitar que a presença da mãe se torne ausência, é que a ausência do pai (gritante em todo o filme de Nelson Pereira dos Santos) será sentida e transformada em presença a ser resgatada, numa espécie de complexo de Édipo distorcido. Por isso, uma vez solucionado o mistério da morte da mãe e superado o trauma do incesto, Rodrigo conseguirá sair do âmbito individual e participar de um quadro coletivo, descobrir um novo sentido/rumo para sua vida.

Ao entender a transgressão da mãe, Rodrigo entende também que é necessário transformar o impulso de morte em impulso de vida, canalizar essa transgressão para uma nova ordem, isto é, para o projeto “revolucionário” da década seguinte, o do Cinema Novo, no qual Nelson Pereira dos Santos acreditava e continuou acreditando.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de Nelson Pereira dos Santos: um olhar neorrealista? (Edusp).

Publicado originalmente em Estudos de Cinema 2000 – Socine (Sulina, 2001).

 

Referências


AMADO, Ana. “Voces de entrecasa: cuerpos, generaciones, familia y resistencia en el neo-melodrama latinoamericano de los 90”. In: Epílogos y prólogos para un fin de siglo. Buenos Aires: CAIA, 1999, p. 405-415.

AVELLAR, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, García Espinosa, Sanjinés, Alea – Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora 34/Edusp, 1995.

FABRIS, Mariarosaria. “Elogio da Imperfeição”. Jornal de Resenhas. São Paulo, 4 dez. 1995, p. 12.

OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Funarte, 1999.

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