Coringa(s) — os filmes de Todd Phillips

Coringa (2019)/ Divulgação
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Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JÚNIOR*

A controvérsia ao redor de Joker (2019) foi mais uma tentativa de despolitizar uma crítica contundente às desigualdades sociais do que uma resposta genuína ao conteúdo do filme

1.

O filme Joker (2019), dirigido por Todd Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix, gerou um debate acalorado na mídia e entre o público na época, não apenas no que diz respeito a suas qualidades cinematográficas de fato, mas principalmente pela controvérsia quanto a suas possíveis implicações sociais. Antes mesmo de seu lançamento, críticos e comentaristas apontaram preocupações de que o filme pudesse se tornar um catalisador de violência comportamentos destrutivos por parte de um público “incel”, isto é, celibatários involuntários (para os fins do debate em questão, exclusivamente homens) que, em fóruns online, frequentemente expressam ressentimentos de caráter misógino e antissocial.[1]

Com o lançamento do filme, no entanto, logo tornou-se claro que a maior parte dessa reação foi completamente desproporcional ao verdadeiro conteúdo da obra, e parecia motivada por outras preocupações ideológicas. Uma análise crítica revela que essa tentativa de caracterizar Joker como um filme perigoso para um público de jovens solitários e perturbados visava desviar a atenção de seu componente central: a crítica incisiva às desigualdades sociais, ao isolamento urbano e à luta de classes. Não seria a primeira vez em que algo assim teria ocorrido, muito menos o caso mais ridículo.

Três anos antes, por exemplo, surgira o rótulo dos Bernie Bros como um espantalho para apoiadores supostamente masculinos e sexistas de Bernie Sanders, utilizado durante as duas últimas primárias do Partido Democrata para demonizar o eleitorado do candidato objetivamente mais progressista do que Hillary Clinton, uma neoconservadora cujo único trunfo era ser mulher.[2]

Mas o pânico moral ao redor de Joker em 2019 já parecia excessivo desde o início. Jornalistas e comentaristas apontaram que o filme poderia incitar indivíduos de perfil incel a cometer atos de violência.[3] A narrativa se concentrava nos riscos de uma representação simpática de um homem branco, isolado e ressentido, que perde o controle e se transforma em um assassino. No entanto, a questão central que o filme aborda não é o celibato involuntário, mas sim o desespero social e econômico, a alienação e o colapso das redes de apoio em uma sociedade profundamente desigual.

Arthur Fleck não se torna o Coringa por ser rejeitado por mulheres, mas por ser esmagado por um sistema que não lhe oferece dignidade, sentimento do qual grande parte da população de Gotham compartilha, conforme os eventos no final do filme.

A verdadeira ameaça que Joker representava ao status quo nunca foi a possibilidade de incitar “incels” à violência, mas sim a ideia de que indivíduos marginalizados e empobrecidos possam se revoltar contra os poderes estabelecidos. No filme, Arthur Fleck emerge como um símbolo de uma classe marginalizada que atinge seu ponto de ruptura. Ele pode até não ser um revolucionário consciente, mas sua transformação e ascensão ao status de ícone são catalisadas pelo colapso das instituições sociais que deveriam protegê-lo. Eis a verdadeira “mensagem perigosa” do filme de Todd Phillips.

Ao assassinar três yuppies da elite financeira no metrô, Arthur Fleck desencadeia, completamente sem querer, uma insurreição popular contra a desigualdade socioeconômica representada principalmente pela família Wayne. A imagem de uma Gotham tomada por manifestantes mascarados é, em sua essência, uma exibição cinematográfica da luta de classes, um grito de socorro de uma sociedade que atinge o limite de sua tolerância às disparidades sociais.

O correlato mais próximo de Arthur Fleck nunca foram os incels, e sim figuras como o tunisiano Mohamed Bouazizi, cujo gesto de atear fogo a si mesmo em 2011 catalisou a Primavera Árabe. Para evitar esse tipo de leitura, muito mais apropriada, o pânico moral dos críticos e jornalistas concentrou-se no espantalho quimérico do “incel”, visando obscurecer a real crítica do filme.

2.

Ao conceber Joker: Folie à Deux (2024), Todd Phillips enfrentou o dilema de como dar continuidade à história de Arthur Fleck (algo desnecessário, diga-se de passagem) sem alimentar novamente o pânico moral que assolou o primeiro filme em seu lançamento. A escolha de transformar o segundo longa em um musical, focado na relação entre Arthur Fleck e Harleen Quinzel (Lady Gaga), parece ser uma tentativa de se afastar desse público imaginário “incel” que a crítica insistiu em associar ao personagem.

A obra abandona o foco na luta de classes e no contexto social que definiram Joker e dá uma guinada rumo a uma abordagem menos crítica e mais subjetivista. Em sua tentativa de renegar esse público, entretanto, Phillips torna-se, paradoxalmente, ainda mais quixotesco que seu protagonista. No fim das contas, o verdadeiro delírio não foi dos personagens, mas do diretor do filme.

A própria noção de que seria possível definir um “público ideal” de Joker revela-se uma batalha contra moinhos de vento, pois Arthur Fleck nunca foi, de fato, o herói dos “incels” ou de qualquer outro grupo ideológico específico. Desde o início, sua figura foi apropriada por diferentes leituras, desde uma denúncia do neoliberalismo reaganista até uma parábola sobre saúde mental.

O impacto do personagem sobre a iconografia de movimentos sociais em 2019 foi notável: nas ruas do Chile, durante os protestos contra o governo do então presidente Sebastian Piñera, houve manifestantes fantasiados como o Coringa de Joaquin Phoenix, hasteando a bandeira da nação mapuche, e instâncias similares foram registradas também na Catalunha e no Líbano, por exemplo;[4] Já na França, que viu, poucos meses depois, algumas das últimas manifestações do movimento dos coletes amarelos, grupos de bombeiros maquiaram-se como o Coringa, atearam fogo a si mesmos e enfrentaram a polícia nas ruas de Paris.[5]

Ao construir Folie à Deux como um filme que se desdobra todo em torno da psicose compartilhada de Fleck e Quinzel, Todd Phillips reforça a leitura de que sua obra seria apenas uma fantasia febril de um homem desiludido. Trata-se de uma decisão criativa que empobrece as possibilidades interpretativas quanto ao primeiro filme, tornando-o quase alheio a qualquer significado político ou social. Essa mudança de direção resulta em um par de filmes que parecem estar em guerra um contra o outro.

A obsessão anacrônica em desmentir a crítica de meia década atrás, ao mesmo tempo em que se evita o conteúdo subversivo que marcou o primeiro filme, faz com que Joker: Folie à Deux careça da coerência e da força de seu antecessor. Se Joker era um grito de frustração contra um sistema que ignora os mais vulneráveis, Folie à Deux parece mais interessado em seguir uma cartilha ideológica blasé e pouco comprometedora do que em dizer qualquer coisa de relevante.

Um dos equívocos mais comuns na interpretação de Joker é a ideia de que Arthur Fleck poderia ou deveria se tornar o “verdadeiro” Coringa, o mais infame arqui-inimigo do Batman. Nos quadrinhos, porém, o Coringa é uma figura notoriamente fluida. De fato, nunca houve apenas um Coringa, mas sim vários, e sua identidade secreta nunca foi importante. Em arcos recentes, como Three Jokers, de Geoff Johns,[6] a ideia de múltiplos Coringas é canonizada, consolidando o personagem como um arquétipo do caos em Gotham. O verdadeiro papel do Coringa é ser um avatar da entropia civilizacional em Gotham, o reflexo distorcido da decadência urbana, da corrupção política e da insanidade social.

A instigante sugestão dos quadrinhos (bem como, de certa forma, do primeiro filme de Todd Phillips) é que qualquer um de nós estaria apenas a um dia particularmente ruim de se tornar como o Coringa: o verbo “coringar” não passou a fazer parte do vocabulário da juventude contemporânea por acaso.[7]

Nesse sentido, a ascensão de Arthur Fleck como uma espécie de “proto-Coringa”, ou como um “ícone involuntário”, nas palavras de Todd Phillips,[8] não muda nada substancialmente. Gotham sempre encontrará novos Coringas, porque o Coringa não é um indivíduo, mas um sintoma, o produto inevitável das tensões sociais que o primeiro filme explora. Portanto, de fato, a identidade específica de Arthur Fleck pouco importa. Ele pode até ser morto no asilo de Arkham e completamente esquecido enquanto indivíduo distinto de sua persona, isto é, do Coringa, pois o que realmente persiste é o que ele representa: a “Forma-Coringa”, por assim dizer, enquanto ruptura do contrato social e a consequente ameaça de uma anomia generalizada.

Joker e Joker: Folie à Deux revelam-se estudos de caso fascinantes de como narrativas de pânico moral e recepção crítica podem moldar a direção de um filme e a percepção pública de seu significado. A controvérsia ao redor de Joker (2019) foi mais uma tentativa de despolitizar uma crítica contundente às desigualdades sociais do que uma resposta genuína ao conteúdo do filme. Ao tentar responder a isso com Joker: Folie à Deux, Todd Phillips criou um trabalho que, sob o pretexto de renegar um público que nunca existiu como ameaça real, acaba por tornar-se inócuo.

No fim das contas, não importa se Arthur Fleck é ou não o “verdadeiro” Coringa. O caos que ele desencadeia continuará a emergir em Gotham, em novos rostos, com novas máscaras, um lembrete constante de que a ordem social do status quo é sempre mais frágil do que aparenta.

*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel em direito pela USP.

Notas


[1] Sobre essas controvérsias envolvendo o filme, ver: https://www.vox.com/culture/2019/9/18/20860890/joker-movie-controversy-incel-sjw; https://www.cbr.com/joker-movie-backlash-explained/; https://time.com/5684823/joker-movie-controversy/

[2I] Sobre os supostos Bernie Bros, ver: https://www.the-independent.com/news/world/americas/us-politics/bernie-sanders-bros-who-online-harassment-abuse-a9368066.html; https://chicagoreader.com/blogs/the-overblown-bernie-bros-phenomenon-says-more-about-social-media-than-bernie-sanders/https://www.dailydot.com/debug/bernie-bros-2016-2020-women-supporters/.

[3] Tais temores foram motivados em parte pela ocorrência de um atentado anos antes, durante a exibição de The Dark Knight Rises (2012) em Aurora, Colorado, no qual 12 pessoas morreram e dezenas foram feridas. Ironicamente, nada assim ocorreu em uma exibição de Joker (2019), mas na época houve um incidente durante uma exibição de Frozen 2 (2019), em que cerca de uma centena de adolescentes portando facões começaram uma briga generalizada em Birmingham, Inglaterra. Sobre o atentado de 2012, ver: https://www.pbs.org/newshour/nation/12-dead-50-wounded-in-colorado-theater-shooting. Sobre a briga de facões, ver: https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/frozen-2-adolescentes-sao-presos-apos-briga-com-facoes-em-sessao.

[4] Quanto a isso, ver: https://www.wired.com/story/joker-masks-protests/; https://edition.cnn.com/2019/11/03/world/joker-global-protests-trnd/index.html&lang=es.

[5] Quanto a isso, ver: https://www.dailymail.co.uk/news/article-7938937/Firefighters-police-battle-streets-Paris.html?ito=social-facebook&fbclid=IwAR0cDMWBS99OaNOp9j-SosG3ImI_j3f3d5U-WWzow8n1r9OhvmXskAeyikk;

[6I] Para uma entrevista com o autor da obra, ver: https://www.cbr.com/geoff-johns-jason-fabok-batman-three-jokers-interview/.

[7] Sobre o uso do termo “coringar”, utilizado como sinônimo aproximado de “enlouquecer”, ver: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/tankar-coringar-shitpost-do-twitter-aos-games-o-que-significa-a-linguagem-da-geracao-z-1.3325224#:~:text=Coringar%2C%20por%20sua%20vez%2C%20%C3%A9,pessoa%20enlouqueceu%20por%20algum%20motivo. [8] O comentário de Phillips pode ser encontrado em: https://br.ign.com/coringa-2/130945/news/ninguem-liga-mais-para-o-arthur-todd-phillips-explica-grande-final-de-coringa-delirio-a-dois-e-desmo


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