Franz Kafka e Clarice Lispector

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO IANNACE*

As experiências jamais se manifestam cindidas – são perdas, desilusões, expectativas e utopias

1.

Responsabilizava as efemérides confiadas a Franz Kafka e Clarice Lispector pela inflamação do meu ciático.

“— Um ano com muitos eventos”, dizia em tom de brincadeira ao acupunturista durante a sessão de aplicação das agulhas.

Contei-lhe que, não bastasse a carga de atividades própria do expediente acadêmico, pulularam neste 2024 homenagens ao autor de A metamorfose, cujo falecimento completou um século, e à autora de A paixão segundo G. H. e A legião estrangeira, obras publicadas em 1964, há sessenta anos, quando instaurada a ditadura militar no Brasil.

O interlocutor de origem asiática, proficiente na medicina preventiva, advertia para a necessidade da desaceleração. Falava-me sobre uma sociedade cada vez mais estressada e com perda gradativa de memória; empregava copiosamente o termo sinapse, referindo-se a conexões de neurônios, impulsos nervosos e disseminados pelo corpo; reportava-se a meridianos, dopamina, energia vital e a pinçamentos que se insurgem contra a coluna vertebral e a lombar (palavra alguma era pronunciada com entoação imoderada, e sim com o acento benigno da brandura).

Eu, tomado por irresistível sonolência, ouvia-o e buscava seguir a troca de assunto repentina do terapeuta, a comentar que, ao longo da infância de sua filha, presenteava-a invariavelmente nos natais com bonecas da Estrela. Nesse momento pensei – todavia o estado suave de dormência não permitiu – sumarizar dois livros correspondentes a esse contexto: Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, de Clarice Lispector, e Kafka e a boneca viajante, de Jordi Sierra i Fabra.

Talvez a motivação se justificasse pela sequência de vocábulos anunciada naquele espaço. Ou seja: sinapse, meridianos, pinçamentos. Acontece que, por ironia, a sinapse me proporcionou uma articulação involuntária com a analepse.

2.

Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras vem a lume em 1987, passado o decênio de morte da escritora. Os textos, elaborados sob encomenda e publicados em livro póstumo, originam-se do trabalho realizado por Clarice Lispector para a fábrica de brinquedos Estrela, visando à confecção de calendário do ano 1977.

Como bem assinala o subtítulo dessa obra dirigida a leitores mirins, trata-se de narrativas que acenam ao folclore nacional (mês a mês relata-se um incidente novo, na recuperação de recortes da nossa fauna). Assim, de janeiro a dezembro, uma festa comemorativa, uma personagem popular do país, um mito e/ou bicho representativos da cultura local são convocados: Saci-Pererê, Curupira, Yara, Malazarte, Negrinho do Pastoreio, afora jabutis, onças, jacarés e tantos outros animais.

Sem muito esforço, o leitor associará alguns saguis fêmeas, com seus festivos penduricalhos, à memorável Lisette do conto “Macacos”, de A legião estrangeira;observará que “Uma lenda verdadeira” (a última história de Como nasceram as estrelas, emblemática do mês de dezembro e contemplativa do nascimento de Jesus) é a reedição da crônica “Hoje nasce um menino”, publicada, originalmente, no Jornal do Brasil aos 24 de dezembro de 1971.

A linguagem da escritora, reconhecida por traduzir uma percepção inquietante e misteriosa da vida, materializa-se nas páginas de abertura da obra, identificadas, em edição recente da Editora Rocco, com o título “A força do sonho”. Eis o registro da ficcionista em dezembro de 1976: “Que narremos a nossas crianças as enovelantes lendas nossas neste 1977, ano-chave, porque se o número 7 dá poder, dois 7 acrescentam-nos tanto mais em sorte boa: a década dos 7 é toda perpassada pelo sussurro de uma secreta inspiração” (Lispector, 2015, p. 05).

Diz mais: “[…] Para 1977, que é vosso e meu, mandei acender trinta mil lustres nervosos e assanhados de tantos flexos e reflexos e reverberações e réstias de raios, brilhações e fulgurações com os pingentes trêmulos da mais alvoroçada luminosidade. Luminosidade – é o que vos desejo para 1977. Amém. Clarice Lispector” (Idem).

Se comparadas às demais produções infantis de Clarice Lispector, a exemplo de A mulher que matou os peixes (1968) e A vida íntima de Laura (1974), essas doze lendas silenciam insights e associações desconcertantes de latitude imagética. Contudo, embora a poética de Como nasceram as estrelas careça de ousadia, nem por isso a retórica que estrutura as narrativas se curva à estereotipia pedagógica e a cacoetes pueris.

Nádia Battella Gotlib evidencia com propriedade: “[…] as histórias não apresentam grande interesse estético, embora haja um bom repertório de motivos, personagens e situações. A surpresa final, comum a quase todas as histórias, não chega a ter função importante, de modo a causar o espanto típico das boas histórias contadas por Clarice. Nem a moral final, quando há, causa impacto digno de maior admiração. Apenas uma frase ou outra traz marcas da grande escritora, como esta, com que termina uma das histórias: ‘E o destino dos bichos ali se fazia e refazia: o de amar sem saber que amavam’” (Gotlib, 2009, p. 556).

De fato. E a essa frase adiciono estas duas: “[…] como se sabe, ‘sempre’ não acaba nunca” (Lispector, 1987, p. 08) e “[…] o dever do animal é existir” (Idem, p. 26).

3.

Kafka e a boneca viajante, título lançado por Ediciones Siruela de Madri,em 2006, apresenta-se como uma das mais belas obras infantojuvenis do espanhol Jordi Sierra i Fabra. O protagonista é Franz Kafka; a trama recria um incidente singular e encantador que ocorrera em 1923 na vida do literato, conforme o testemunho de sua companheira Dora Diamant.

O escritor austro-húngaro, em certa manhã, no parque de Steglitz, em Berlim, comove-se com o choro de uma garotinha de nome Elsi, que acaba de constatar, ali, o sumiço da boneca Brígida. Para consolá-la, ele aposta em um faz de conta arriscado e apaixonante: “– Sua boneca não se perdeu – disse Franz Kafka alegremente. – Ela foi viajar!” (Sierra i Fabra, 2009, p. 21).

Nasce daí um jogo tenso, e não menos fascinante, em que o aposentado do Instituto de Seguros contra Acidentes dos Trabalhadores se faz passar por um “carteiro de bonecas”, de maneira a alimentar, à luz do sol na área pública para recreação de infantes, o sonho e a esperança da menina. No decurso de três semanas, Franz Kafka – com crises de febre provocadas pelo agravamento da tuberculose –, em companhia da amante Dora, roteiriza nas missivas que escreve e endereça a Elsi os passeios da boneca.

E cada epístola recebe um envelope com selo original dos múltiplos países por onde a viajante incursiona. Lê-se: “Brígida percorria o mundo numa velocidade estonteante e suas aventuras eram cada vez mais insólitas, mais bonitas, mais dignas de uma odisseia de boneca e da fantasia de um escritor […]”; ela “cruzou o extenso deserto do Saara numa caravana de camelos, explorou a Índia, percorreu a grande muralha da China, nadou no mar Morto” etc. “Brígida esteve em Pequim, em Tóquio, em Nova Iorque, em Bogotá, no México, em Havana, Hong Kong… […] Nem Júlio Verne a criaria mais fabulosa, e em menos de oitenta dias o mundo se deixaria abraçar por ela.” (Idem, pp. 73-4).

A solução encontrada para o descanso do escriba foi arranjar um casamento para a amiga de Elsi. Com esse epílogo, deita-se um ponto derradeiro na série de vinte correspondências fabuladas. Ao fim e ao cabo, a menina é presenteada com uma boneca de porcelana, que Brígida lhe envia de terras longínquas e em caixa de papelão revestida de papel colorido. Chama-se Dora.

Walter Benjamin defende, no ensaio “História cultural do brinquedo”, que “não entenderíamos o brinquedo, nem em sua realidade nem em seu conceito, se quiséssemos explicá-lo unicamente a partir do espírito infantil. A criança não é nenhum Robinson, as crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são parte de povo e da classe a que pertencem. Por isso, o brinquedo infantil não atesta a existência de uma vida autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o povo” (Benjamin, 1994, pp. 247-8).

Com certeza, as experiências jamais se manifestam cindidas – são perdas, desilusões, expectativas e utopias.

4.

Concluídoo atendimento, despedi-me. À medida que descia o elevador do edifício situado na Avenida da Liberdade (リバティアベニュー), correlacionava, aleatoriamente, a etnia do acupunturista ao bairro nipo-brasileiro e à Casa de Cultura Japonesa, localizada no campus da Universidade de São Paulo.

Isso porque lá estive, participando do 5° Encontro Kafkiana, entre 18 e 20 de setembro, e arquivei na memória uma ocorrência presenciadano auditório: a colega Susana Kampff Lages, ao término do simpósio que eu coordenava, surpreendeu-nos com uma joaninha recolhida do assento da cadeira conjugada a sua. Pousou o minúsculo besouro no dedo polegar e, com gracejo, fez remissão a Gregor Samsa, revelando que as linhas das próprias palmas das mãos formam a letra K.

Também com humor, falei para meu companheiro de mesa: “– Que curioso, diferentemente de Susana, os vincos nas minhas palmas não inscrevem nem K nem L (de Lispector), desenham a consoante M, do mineiro e mágico Murilo Rubião”.

Um feliz 2025!

*Ricardo Iannace é professor de comunicação e semiótica na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp). [https://amzn.to/3sXgz77]

Referências


BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994 [Obras escolhidas; v.1].

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Edusp, 2009.

LISPECTOR, Clarice. Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. Ilustrações de Ricardo Leite. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

LISPECTOR, Clarice. Doze lendas brasileiras: como nasceram as estrelas. Ilustrações de Suryara. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2015.

SIERRA i FABRA, Jordi. Kafka e a boneca viajante. Tradução de Rubia Prates Goldoni e ilustrações de Pep Montserrat. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O forró na construção do Brasil
Por FERNANDA CANAVÊZ: A despeito de todo preconceito, o forró foi reconhecido como manifestação nacional cultural do Brasil, em lei sancionada pelo presidente Lula no ano de 2010
O humanismo de Edward Said
Por HOMERO SANTIAGO: Said sintetiza uma contradição fecunda que foi capaz de motivar a parte mais notável, mais combativa e mais atual de seu trabalho dentro e fora da academia
Incel – corpo e capitalismo virtual
Por FÁTIMA VICENTE e TALES AB´SÁBER: Palestra de Fátima Vicente comentada por Tales Ab´Sáber
Mudança de regime no Ocidente?
Por PERRY ANDERSON: Qual é a posição do neoliberalismo no meio do atual turbilhão? Em condições de emergência, foi forçado a tomar medidas – intervencionistas, estatistas e protecionistas – que são anátemas para sua doutrina
O novo mundo do trabalho e a organização dos trabalhadores
Por FRANCISCO ALANO: Os trabalhadores estão chegando no seu limite de tolerância. Por isso não surpreende a grande repercussão e engajamento, principalmente dos trabalhadores jovens, ao projeto e campanha pelo fim da escala de trabalho de 6 x 1
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
O capitalismo é mais industrial do que nunca
Por HENRIQUE AMORIM & GUILHERME HENRIQUE GUILHERME: A indicação de um capitalismo industrial de plataforma, em vez de ser uma tentativa de introduzir um novo conceito ou noção, visa, na prática, apontar o que está sendo reproduzido, mesmo que de forma renovada
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Gilmar Mendes e a “pejotização”
Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: O STF vai, efetivamente, determinar o fim do Direito do Trabalho e, por consequência, da Justiça do Trabalho?
Lígia Maria Salgado Nóbrega
Por OLÍMPIO SALGADO NÓBREGA: Discurso proferido por ocasião da Diplomação Honorífica da estudante da Faculdade de Educação da USP, cuja vida foi tragicamente interrompida pela Ditadura Militar brasileira
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES