Por MÁRCIO JOSÉ MENDONÇA*
A tática de destruição de cidades e vilas ucranianas, mesmo massiva, não visa a uma destruição total e definitiva do espaço urbano ucraniano
A invasão russa da Ucrânia em 2022 demonstra mais uma vez a importância das cidades no cenário de combates em ambientes urbanos. Embora as cidades fossem alvos de ações militares desde a Antiguidade, uma cronologia convencional do campo de batalha moderno pode considerar a Guerra Civil Espanhola o primeiro exemplo de combate de natureza propriamente urbana. O próximo exemplo deve considerar sem dúvida a devastação urbana da Segunda Guerra Mundial, cabendo destacar as batalhas por Stalingrado e Berlim (travadas entre o exército da Alemanha nazista e as tropas da União Soviética pela posse das cidades), além de mencionar o bombardeio indiscriminado de Dresden, Hamburgo e Tóquio.
Embora episódios emblemáticos em que a cidade foi alvo e os combates se desenvolveram no espaço urbano, uma virada urbana mais explícita só ocorreu com as experiências dos Estados Unidos em Mogadíscio, em 1993, com o conflito urbano travado em Sarajevo (1992-1996) e pela experiência russa em Grozny (1994-1995). E, se considerarmos os exemplos mais recentes de guerra urbana no Iraque e na Síria como parte dessa cronologia, todos incidentes denotam um “uma virada histórica para a guerra urbana”, como argumenta Anthony King (2021, p. 6.).[1]
Tratando-se de guerra em ambiente urbano, combates em cidades são um tipo de conflito que possui características próprias, exigindo, portanto, novos modos de comportamento e de atuação dos soldados, por conta da presença de muitos civis e de um ambiente construído que oferece complexidade extrema ao campo de batalha. Assim, a compreensão do ambiente de conflito urbano demanda uma abordagem conceitual mais ampla, que dê conta da dinâmica e complexidade de combate do espaço urbano.
Nesse âmbito, o geógrafo britânico Stephen Graham (2011), especialista no tema, sugere o emprego da concepção de espaço de batalha em vez de campo de batalha, espaço em geral amplo e aberto. Segundo Graham, o espaço de batalha não possui front nem retaguarda, tampouco deve ser visto como horizontalidade, mas como espaço profundo de várias camadas, onde o combate é sempre simultâneo à vida e a qualquer outra atividade. “O conceito de espaço de batalha permeia tudo, indo das escalas moleculares da engenharia genética e da nanotecnologia, passando pelos espaços cotidianos e experiências da vida da cidade, até esferas planetárias do espaço e o ciberespaço da internet que atravessa o globo” (GRAHAM, 2011, p. 31).
Na perspectiva enfatizada, o espaço de batalha pode ser qualquer lugar tomado como campo de batalha, com diferentes níveis ou camadas espaciais, a partir das estruturas preexistentes do lugar, que então são manipuladas por combatentes ou construídas com finalidades militares. São lugares onde, muitas vezes, os combates ocorrem em “espaços comuns” ou “ordinários”, em meio a salas de estar, escolas, áreas industriais, hospitais e supermercados, ambientes característicos de conflitos urbanos.
É preciso observar que muitos dos princípios reconhecidos que caracterizam a guerra urbana e que são aplicados hoje ao cenário densamente urbanizado e de grande densidade demográfica, em cidades, já eram aplicáveis à realidade do período pré-moderno. Por isso, para sua melhor apreciação, John Spencer (2021) oferece uma lista útil de oito critérios para descrever os princípios fundamentais da guerra urbana moderna, que, de acordo com Morag (2023), podem, em síntese, ser referidos da seguinte maneira: (i) Os defensores quase sempre têm uma vantagem tática, especialmente em cidades, embora isso não signifique que necessariamente terão sucesso no plano operacional ou estratégico de um conflito; (ii) o terreno urbano inibe a capacidade da força atacante de usar inteligência, vigilância, reconhecimento, equipamentos aéreos e enfrentar os defensores à distância.
(iii) As forças atacantes têm dificuldade em utilizar o elemento-surpresa, pois elas são monitoradas pelas tropas de defesa, que podem permanecer escondidas, podendo, assim, se proteger dos ataques; (iv) os edifícios, especialmente os feitos de vigas de concreto reforçado ou de pedra, servem como bunkers fortificados a partir dos quais as forças de defesa podem disparar sobre as forças atacantes; (v) os invasores costumam usar munições às vezes poderosas para acessar edifícios e negá-los às forças de defesa; (vi) os defensores têm a vantagem de uma circulação relativamente livre dentro da cidade e conhecimento íntimo das ruas, dos becos e dos labirintos — quando não estão sob vigilância ou ataque por veículos aéreos não tripulados ou por outros meios.
(vii) Os defensores podem construir túneis, depósitos de armas e uma série de outras instalações subterrâneas e usá-las para acessar vários locais ao redor da cidade. Os invasores geralmente têm pouco ou nenhum conhecimento sobre esses lugares; (viii) nem as forças de ataque nem as de defesa podem dispor dos seus recursos numa localização de forma concentrada.
A concentração de forças é um dos fatores decisivos na guerra convencional no campo de batalha, pois, historicamente, o objetivo das operações de campo era concentrar suas forças para dizimar o exército inimigo. A incapacidade de usar forças em massa tem desvantagens para ambos os lados, mas, no caso da força de defesa em tela, que é uma força irregular, e da força de ataque, que é uma força militar moderna – o que aconteceu em muitos casos da guerra urbana moderna pós-Segunda Guerra Mundial –, os recursos tecnológicos, numéricos, e as vantagens de treinamento e equipamento de um exército moderno não podem, em muitos casos, ser aplicados tão eficazmente quanto seria possível em condições abertas de guerra.
Assim, a força militar moderna é muitas vezes forçada a enfrentar uma situação em que há combatentes irregulares, com ambos os lados estando amplamente equiparados, uma vez que carregam tipos de equipamentos semelhantes, e a vantagem de treinamento que um soldado moderno tem pode ser relativamente negada pelo fato de o conhecimento do terreno proporcionar uma defesa irregular ao combatente. Além disso, os defensores irregulares geralmente têm tempo suficiente para preparar a sua cidade para o conflito, incluindo tomada de medidas como a escavação de túneis, construção de depósitos de munições, estabelecimento de posições de atiradores, implantação de armadilhas e planejamento de emboscadas.
Dessa forma, o conflito urbano, muitas vezes uma guerra irregular travada em áreas edificadas, difere do combate convencional, ao ar livre, tanto no plano operacional quanto no tático. Fatores que incluem a presença de civis e a complexidade do terreno urbano são complicadores que interferem no conflito e implicam produção de conhecimento e táticas para atuar no espaço urbano. Danielsson (2024) faz, todavia, um contraponto, ao descrever a trajetória histórico-conceitual pela qual a ideia do urbano militar surgiu a partir da necessidade de uma nova ordenação espacial e epistêmica de ambientes urbanos, para se referir aos modos práticos nos quais uma organização militar produz conhecimento, na busca de alcançar proficiência militar em ambiente urbano por meio de ações administrativas e de intervenções de caráter cirúrgico, que a princípio buscam gerar menos impacto ou dano colateral.
É de fato notável que os conflitos militares no Iraque, na Síria, na Faixa de Gaza, além da guerra na Ucrânia, também mostrem que o urbano é tratado, mesmo agora, com profundo desenvolvimento de recursos tecnólogos, como um espaço hostil, caótico e perigoso, que precisa ser domado ou até mesmo completamente destruído. Assim, ações de guerra conduzidas em espaço urbano por militares israelenses, americanos e russos, que ensejam vitórias militares no cenário urbano, visam a destruição mais substancial do espaço urbano, com o propósito de atingir grupos que usam o ambiente construído como abrigo e suporte para suas operações.
As cidades e sua extensa rede urbana oferecem as forças de defesa, sitiadas em prédios e outras estruturas urbanas, uma defesa significativamente baseada no espaço urbano por meio de esconderijos e defesas montadas no ambiente construído. Vale dizer que combatentes abrigados no espaço urbano também podem contar com as vantagens de extensa cobertura da estrutura civil oferecida no combate urbano. Diferentes de espaços amplos e abertos, ambientes urbanos de combate são muito próximos entre si; assim, dentro e ao redor dos edifícios é muito difícil garantir a segurança de não combatentes.
Isto limita a liberdade de movimento das forças invasoras convencionais e as torna mais vulneráveis a ataques, enquanto as mortes de civis e danos em propriedades podem beneficiar as forças de defesa irregulares, atraindo atenção e ira contra as forças invasoras. A morte de inocentes numa cidade pode influenciar a opinião pública por parte dos habitantes na direção de fornecer apoio crescente às forças irregulares e alimentar maior ódio às forças invasoras. Assim, os defensores urbanos desfrutam de uma grande gama de vantagens, não apenas taticamente, mas também em termos de impacto local, nacional, e opinião global, algo que pode influenciar a política do país invasor, bem como suas relações com seus aliados e parceiros comerciais (MORAG, 2023, p. 81).
Nesse aspecto, as cidades ucranianas têm oferecido inestimável obstáculo às ações ofensivas das forças russas, que “buscam a ocupação de assentamentos e cidades após a supressão e destruição das poderosas fortificações ucranianas, depósitos de munições e esgotamento de suas reservas, impulsionando avanços de infantaria leve e mecanizada apenas com a retirada de forças ucranianas ou destruição amplas de suas unidades. Tal metodologia de combate se baseia fortemente na doutrina empregada na Segunda Guerra da Chechênia e na intervenção militar na Síria, no qual danos significativos à infraestrutura urbana são inseridos no contexto de eliminação completa da resistência e posterior avanço para eliminação de unidades remanescentes, porém esgotadas” (LATERZA et al., 2023, p. 102.)
No cenário de guerra no leste ucraniano, as forças ucranianas implementaram extensas defesas em profundidade ao longo de toda a linha de contato com as regiões de Donetsk e Lugansk, o que, em sinergia com as cidades, tem exigido muitos recursos e alto nível de tolerância de perdas em vidas e material por parte dos russos. Vale ressaltar que as cidades têm oferecido aos defensores ucranianos inúmeras possibilidades de deter e neutralizar as investidas russas, que precisam avançar com cuidado diante do risco de serem os russos atraídos para uma armadilha.
Até o momento os russos não conquistaram nenhuma cidade que possa se definir como grande, seja em aspecto demográfico, seja em densidade urbana, tendo em vista que os avanços em direção a Kiev e a Kharkiv, as maiores cidades ucranianas, foram impedidos por feroz resistência baseada no espaço urbano. A conquista de densos núcleos urbanos exige operações complexas diante da presença de edifícios altos, áreas industriais, escolas, hospitais, centros de distribuição de energia, além de ruas e avenidas de diferentes tamanhos, dentre outras estruturas presentes na extensa rede urbana da Ucrânia (ver LATERZA et al., 2023).
Como Rodolfo Laterza et al. (2023) nos ajudar a entender, as cidades ucranianas proporcionam muitas possibilidades aos defensores, que estão conseguindo êxito em desgastar as tropas russas que se aventuram em terreno urbano. Os avanços de blindados pelas ruas os tornam alvos fáceis, helicópteros igualmente são vulneráveis ao fogo de sistemas de defesa instalados na cidade, enquanto a infantaria, para avançar, deve limpar cada edificação antes de prosseguir, tornando o avanço lento e penoso, com alto custo em vidas, devido à resistência urbana, às armadilhas, às emboscadas e demais dispositivos improvisados instalados no terreno urbano, em ruas e edifícios.
Por isso, ao assumir o comando das operações militares russas na Ucrânia, em outubro de 2022, o general Sergei Surovikin, conhecido como “general Armagedom”, realizou modificações táticas na estratégia militar russa, e, a fim de evitar baixas e perdas de material e facilitar a progressão no terreno urbano, os russos agora procuram cercar as cidades e usar fogo de artilharia para destruir obstáculos e limpar o terreno, na tentativa de depreciar as defesas ucranianas.
Ainda de acordo com Rodolfo Laterza et al. (2023), essa tática cumpre o objetivo de suspender o abastecimento das tropas entrincheiradas na cidade e assim afetar as condições de subsistência da resistência ucraniana. Nesse âmago, os ataques de artilharia, além de destruir fortificações, esconderijos, equipamentos e munições inimigas, objetivam nivelar o espaço urbano, ao destruir edifícios, diminuindo o fator vertical de complexidade de várias camadas do espaço de batalha presente nos edifícios.
Construções altas são eventualmente usadas como ponto de observação e disparo de atiradores e armas antitanque contra tropas que avançam pelas ruas. Outro fator de complexidade do espaço urbano ucraniano é a presença de túneis e áreas industriais, uma característica da herança soviética; portanto, comum nas cidades ucranianas, que oferecem um teatro de batalha de múltiplas camadas, isto é, de vários volumes, no campo de batalha.
Embora os russos agora evitem invadir os principais centros urbanos, o avanço pelo terreno no leste ucraniano necessariamente precisa lidar com a questão urbana. Assim visto, como as cidades ucranianas passaram a ser usadas para desgastar as forças russas, os generais de Vladimir Putin implementaram o arranjo tático de destruição massiva do espectro urbano com ataques de artilharia e bombardeios aéreos pesados com o propósito de enfraquecer as defesas ucranianas e modelar o campo de batalha a favor dos russos, favorecendo o avanço das tropas invasoras no vazio urbano destruído, para só em seguida ocupá-las.
No entanto, a guerra urbana na Ucrânia não é uma questão circunscrita apenas ao elemento militar propriamente dito; o cenário ucraniano ainda oferece outras camadas adicionais de complexidade para os russos, ao lidar com o problema das cidades. Além da dificuldade de avanço pelo terreno urbano, muitas cidades ucranianas são habitadas por expressiva população russa. Segundo historiadores russos, a cidade de Kiev constitui o berço da civilização russa, possuindo, portanto, um importante vínculo cultural e uma forte identidade com a civilização russa, não sendo, de forma alguma, uma opção a sua destruição completa (ver LATERZA et al., 2023).
Dessa forma, podemos evidenciar que os russos, ao adotar o “método” do urbicídio[2] no trato com os centros urbanos ucranianos, aplicado com violência militar para atingir objetivos políticos através da destruição deliberada do ambiente construído, procuram evitar os grandes centros urbanos, dadas as dificuldades impostas ao avanço militar sobre o terreno urbanizado e por questões sensíveis de identidade e possíveis danos à arquitetura e histórica russa compartilhada com os ucranianos.
Em seu avanço pelo leste ucraniano, os russos têm optado por ataques contra assentamentos urbanos pequenos e médios, embora de significativo valor; esses centros minimizam um pouco o número de perdas entre a população civil e exigem menor demanda do efetivo de tropas russas em relação a uma incursão em Kiev, hoje, por exemplo, fora dos planos de Moscou.
Assim, é importante destacar que a tática de destruição de cidades e vilas ucranianas, mesmo massiva, não visa a uma destruição total e definitiva do espaço urbano ucraniano. Deve-se lembrar que os assentamentos ucranianos são lugares habitados também por russos; por isso, as ações militares de Moscou não devem ser vistas apenas como guerra de conquista e destruição infame ou sem sentido, mas, sim, como uma ação militar de ocupação e organização do espaço cultural e político russo na região em sentido estratégico. Por esse aspecto, sobretudo no âmbito do urbicídio aplicado na Ucrânia, embora genuíno em suas características destrutivas, também implica urbanização como medida de (re)territorialização dos interesses de Moscou e da população russa naquela região.
*Márcio José Mendonça é doutor em geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Referências
DANIELSSON, Anna. The emergence of a military urban in and of war. Annals of the American Association of Geographers, p.1-15, nov. 2024.
GRAHAM, Stephen. Cities under siege: the new military urbanism. Londres: Verso, 2011.
KING, Anthony. Urban warfare in the twenty-first century. Cambridge, RU: Polity Press, 2021.
LATERZA, Rodolfo Queiroz [et al.]. Guerra na Ucrânia: análises e perspectiva: o conflito militar que está mudando a geopolítica mundial. São Paulo: D´Plácido, 2023.
MORAG, Nadav. Urban warfare: the recent Israeli experience. Journal of Strategic Security, v. 16, n. 3, p. 78-99, 2023.
SPENCER, John. The eight rules of urban warfare and why we must work to change them. Modern War Institute, 1º de dezembro de 2021. Disponível aqui.
Notas
[1] Ver também GRAHAM, 2011; e DANIELSSON, 2024.
[2] Por “urbicídio” entende-se as práticas e meios militares destinados, com fins políticos, que visam, no fundo, além de vencer o inimigo, a destruir o seu habitat, negando-lhe a cidade e o espaço urbano como substrato de reprodução ou esconderijo. Dessa maneira, o que estamos vendo na Ucrânia é um processo de destruição do espaço urbano com o objetivo de negá-lo ao inimigo como espaço de resistência. Trata-se, em termos simples, de uma forma de violência contra a cidade e seus habitantes, em outras palavras, de uma ação deliberada de destruição do ambiente construído e da urbanidade que propicia a vida na cidade, com a intenção de atingir pelo uso da força uma finalidade política. Para mais detalhes, conferir “Espaço de batalha e urbicídio na cidade do Rio de Janeiro” (MENDONÇA, 2022).
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