Por ROBERTO NORITOMI*
Comentário sobre o filme de Spike Lee que retrata a violência policial contra afro-americanos.
Faça a coisa certa não tem tido sossego. O filme vem sempre à baila a cada notícia de violência policial contra afro-americanos. Agora é a vez do assassinato de George Floyd em Minneapolis. Infelizmente, manter-se em voga não é tarefa difícil para uma obra que trata de tensões raciais e violência policial numa sociedade em que a opressão racial é constitutiva e institucionalizada. No entanto, é preciso verificar se a obra resistiu ao tempo.
Quando o diretor Spike Lee lançou o filme, em 1989, os casos de violência policial sistemática contra afro-americanos já preenchiam os noticiários há muitos anos, assim como as reações explosivas em massa. O próprio Lee se preocupou em dedicar Faça a coisa certa a várias vítimas que sucumbiram nas mãos da polícia ou em atos de conflito racial. Vindo de uma carreira mais discreta, com esse filme o jovem cineasta buscou entrar na luta em campo aberto. O filme pretendia dar nome às coisas, expor as feridas. Muita coisa precisava ser trazida à luz, entre indignação, reflexão e diretriz. Havia uma ansiedade de intervenção.
A opção tomada foi por uma obra sintética, sem riscos de transbordo, para que o recado fosse passado respeitando uma economia narrativa bem aparada, fluida e palatável. Para isso se recorreu a uma saída convencional, ou seja, à representação de um microcosmo espacial e temporalmente circunscrito. O recorte diegético foi milimétrico: um sábado inteiro num quarteirão do Brooklyn, região nova iorquina sintomaticamente caracterizada pela presença de um grande contingente de migrantes e afro-americanos. Dia e lugar justificam a presença na rua da vizinhança variada. Faz calor e espera-se que fique ainda mais quente (essa previsão é reforçada pelo desfile de manchetes dos principais jornais). A rádio comunitária define o eixo sonoro, de viés afro-americano, inaugura a manhã e reitera os cotornos do microcosmo.
Seguindo a simplificação diegética, os personagens ou grupos encarnam a tipificação de segmentos étnico-raciais (latinos, asiáticos, brancos ítalo-americanos ou não, e afro-americanos). Em que pese sua diversidade, todos eles de algum modo se conhecem, pois partilham do mesmo “pedaço”, e convivem sem grandes estranhamentos. Ao longo do filme, entremeado por pequenos dramas pessoais, a tensão racial de baixo impacto vai despontando pela rua e, principalmente, na mísera pizzaria do ítalo-americano Sal e seus filhos. No centro dessa tensão está o militante da causa negra Buggin Out. Ele é apresentado como uma figura radical, que perambula pelo quarteirão afirmando os valores e a prevalência dos negros e exigindo insistentemente que Sal pendure imagens de afro-americanos no seu salão, em respeito à sua clientela majoritária.
Num determinado momento, à noite, após o dia de calor escaldante, Buggin Out e dois desgarrados passam pela pizzaria e acabam por desencadear o confronto entre os afro-americanos e os ítalo-americanos. A polícia intervém matando, por asfixia, um dos manifestantes (Radio Raheem) e prendendo Buggin Out. Em reação inesperada, Mookie, o entregador de pizzas, quebra a vidraça da pizzaria e os demais moradores entram em convulsão, incendiando toda a esquina até sua dispersão pela polícia. Na manhã seguinte, em meio aos escombros, as pessoas vão retomando a normalidade do bairro. Mookie e Sal se reencontram num misto de amargura e melancolia, mas sem que haja uma ruptura drástica; o DJ da rádio abre a programação musical de um novo dia que começa. O que transcorrera na noite anterior não fora mais do que um triste incidente provocado por uma irracionalidade em que todos, de algum modo, foram prejudicados. Nos letreiros finais, duas citações contrastantes (Malcolm X e Martin Luther King) deixam ao espectador o fardo sobre o caminho a seguir diante do dilema posto.
A rigor, o andamento do filme expõe, em chave sumária e didática, o desenvolvimento dos confrontos raciais que haviam marcado a década de 1980. Parte-se de um estado de convívio, em aparente equilíbrio, até a violência policial e a explosão em massa. Pela tonalidade cômico-dramática, que faz caricatura e confere leveza às situações, o filme é quase uma fábula, com moral e tudo.
E é nessa via que o filme encontra seus limites. A começar pelo modo estereotipado de compor os personagens e as situações, o que os transforma em portadores de um papel previsível. De todos esses casos, talvez o mais grave seja o de Buggin Out, o militante do movimento negro, representado como um radical insano, praticamente um idiota de uma nota só. Ele passa o filme inteiro movido pelo ódio e se indispondo com picuinhas, até provocar o conflito que acarretará a morte do jovem e ingênuo Radio Raheem e a destruição da pizzaria. Nessa perspectiva, o papel reivindicatório, encarnado pela militância, é destituído de sentido e reitera-se sua imagem maçante. Isso fica acentuado quando o protagonismo da “luta” é deslocado para Mookie, o malandro descompromissado e boa praça, que efetiva o ato determinante de liberar a reação popular. É o indivíduo indolente que acerta, espontaneamente, o desacerto do obsessivo tresloucado.
Nessa mesma linha de rebaixamento, o ponto alto do enfrentamento racial se dá no plano da disputa simbólica (a exigência dos quadros na parede), que emergiu de motivo irrelevante e risível. Lee poderia ter recorrido a pretexto menos patético. De todo modo, jamais se observa qualquer crispação de fundo, crônica ou aguda, que remeta a uma ordem de exclusão física e social. E isso é problemático quando se sabe (e aqueles anos eram prenhes de exemplos) que a população afro-americana sempre foi objeto da brutalidade sistemática não só por parte da repressão policial. Há, portanto, uma depreciação das tensões e das lutas raciais, como se fossem disputas banais insufladas pelo ódio.
A ideia é a de que pessoas comuns, pacatas, vivendo num ambiente étnico-racial heterogêneo podem desandar repentinamente para a fúria e a violência, bastando que se eleve a temperatura. É como se estivessem numa panela de pressão em aquecimento. É essa a metáfora clara que se depreende de Faça a coisa certa. Lee concebeu um espaço fechado (um gueto isolado do resto da cidade) em que as tensões se expandem à medida que o dia vai se tornando mais quente. Portanto, a origem e o fim da tensão racial é um dado interno ao grupo, que é despertado quando afloram os ânimos submetidos à pressão.
Na equação que o filme deixa entrever, a violência policial, reconhecida como desmesurada, é decorrente de eventos motivados por atos irracionais, estes por sua vez provocados por questões ínfimas que têm origem no ódio, imanente e cultivado no interior da comunidade. Assim, o racismo está latente, é incontrolável e é de “mão dupla”, ou seja, relativo. Todos estão propensos à intolerância racial. Isso se evidencia na cena em que os personagens expressam diretamente para a câmera os mais viscerais impropérios racistas, como se passassem por um processo terapêutico de purgação de um mal (que se conclui com a hecatombe nas ruas). Esse é o momento de verdade de Faça a coisa certa.
O pressuposto é nítido: todos estão no mesmo barco (“você também veio de barco”, lembra um dos três amigos desocupados ao outro que se referia jocosamente aos coreanos). Aquela vizinhança é composta, em última instância, por imigrantes e, consequentemente, o racismo ali é um ato fratricida. Além de psicológico, o problema se torna moral.
Spike Lee, no seu esmero em compor um mundo fechado e controlável, que fosse contundente na mensagem, incorreu na construção de uma redoma moral apartada do mundo. O racismo, seu cerne, perdeu a conexão com a totalidade histórica, foi reduzido a uma tensão interna e localizada no gueto. O quarteirão multiétnico paira nas nuvens, desconectado das relações estruturais da ordem social vigente. Não há um traço sequer dessas relações; o próprio aparato repressivo é indeterminado, surge e desaparece como um ente externo. Nenhum enfrentamento dos poderes efetivos, econômicos ou políticos, ganha a tela; eles nem se fazem representados. O filme, enfim, fica em débito com a bela música tema do Public Enemy, Fight the power. A moral silenciou a política.
Faça a coisa certa, visto de hoje, perdeu muito de seu impacto original. Não traz o racismo como parte de uma lógica de dominação mais abrangente e não carrega a cólera exigida pelos tempos que correm. Aliás, a resposta às execuções policiais de afro-americanos merecia, já naquela época, um tratamento diferente da caricatura cômica. Os limites de Spike Lee estão também na forma.
*Roberto Noritomi é doutor em sociologia da cultura pela USP.
Referência
Faça a coisa certa (Do the right thing)
EUA, 1989, 119 minutos
Direção: Spike Lee
Elenco: Spike Lee, Bill Nunn, Danny Aiello, Ruby Dee, John Turturro.