Sentinelas da tradição

Paulo Pasta (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário do livro de Dmitri Cerboncini Fernandes

Você já parou pra pensar que Ernesto Nazareth, um dos patriarcas do choro, nunca compôs um choro? No seu catálogo constam tangos brasileiros, tanguinhos, schotisch, sambas, quadrilhas, marcha infantil, fox-trot, cançoneta, maxixe, mazurca e muitas valsas e polcas, entre outras denominações. Nenhum choro.

Bom, você pode achar que se trata de uma questão de nomenclatura de época, pois um clássico como Apanhei-te Cavaquinho só pode ser um choro! Só que foi registrado como polca… Assim ocorre também com a obra de mestres-fundadores como Joaquim Calado, Anacleto de Medeiros e Chiquinha Gonzaga. Quando aparece a palavra “choro” denominando alguma composição, desconfie: pode ter sido colocada postumamente.

O que tornou a palavra “choro” dominante, como gênero musical brasileiro por excelência? Ou melhor, o que transformou a palavra “choro” num conceito, numa identidade nacional? E o samba, este gênero carioca, vindo do morro, da cidade ou do coração, o que o fez se tornar o gênero nacional, mesmo que nos sertões, florestas, praias remotas, caatingas, plantações de café, cerrados e fronteiras, os gêneros musicais ouvidos e praticados por brasileiros fossem outros?

Sentinelas da Tradição é o apropriado título do ensaio de Dmitri Cerboncini Fernandes, lançado em 2018 pela Edusp. Adaptação da tese de doutorado “A inteligência da Música Popular: A Autenticidade no Samba e no Choro”, o estudo pretende investigar de que forma o choro e o samba se constituíram em modelos brasileiros de cultura popular, em detrimento de outras formas musicais.

A grande sacada do autor é examinar a história do samba e do choro não através de seus compositores e intérpretes, como é usual, mas através de seus historiadores e formuladores matriciais. Em síntese, Cerboncini Fernandes quer demonstrar que a fetichização do samba “autêntico” e do choro é resultado do empenho de um grupo de jornalistas, pesquisadores e folcloristas que em sucessivas gerações adotaram a música popular como o principal elemento identitário brasileiro, optando por uma classificação doutrinária.

Premiada com Melhor Tese de Doutorado de 2010, a versão publicada tem 532 páginas, e é material fértil para alimentar discussões sobre os conceitos de nacional, popular, autêntico, comercial, MPB, samba, pagode e outros babados. Fundamentado em sólida pesquisa, e alimentado por prestigiosas referências teóricas (Bordieu, Elias, Adorno), Fernandes destaca o papel seminal de estudiosos como Mario de Andrade, e repórteres-partícipes como Vagalume, Animal e Orestes Barbosa.

Vagalume é o pseudônimo do primeiro historiador do samba, o mulato Francisco Guimarães (1904-1933). Seu livro Na roda do samba, de 1933, é considerado o documento primeiro, o atestado de credibilidade de uma testemunha ocular e auditiva das rodas de samba de Tia Ciata. Orestes Barbosa, o primeiro intelectual-compositor a arriscar uma história da música popular, coloca Vagalume como uma referência.

Animal, pseudônimo de um carteiro negro frequentador de várias rodas de choro do início do século (Alexandre Gonçalves Pinto, data e morte incertas, mas entre 1870 e 1940), foi o sujeito que colocou no papel em 1936, para a posteridade, O choro: reminiscências dos chorões antigos. Reeditado pela Funarte em 1978, é referência do gênero, compilando 285 músicos do gênero que passou a ser chamado de choro. “A obra de Animal, portanto, foi massivamente utilizada para a criação e legitimação das verdades que demarcaram a formação do gênero musical em pauta” (p. 162).

Cerboncini Fernandes relata com detalhes essa fase pioneira e passa para o período Vargas, onde a construção de uma identidade nacional ganha força. Mário de Andrade e Villa-Lobos são evocados como intelectuais “éticos”, externos, que chancelam a autenticidade de sambas e choros. O início da era do rádio e a formação de um circuito de compra e venda de canções instaura uma divisão. O samba “puro” não é comercial, para ser autêntico não pode ter sido composto pra tocar no rádio. É feito para ser tocado em terreiros, quintais, morros, em comunidades. Assim pensam os intelectuais “êmicos”, ou endógenos, aqueles formados no próprio meio da música popular.

Pelo menos assim defendiam os integrantes da geração reunida em torno de Lúcio Rangel, editor da Revista de Música Popular, que durou apenas de 1954 a 1956, mas teve papel fundamental na sedimentação dos conceitos de samba e choro. Por ali passaram nomes como Manuel Bandeira, Sérgio Porto, Jota Efegê, Almirante, Nestor de Holanda, Rubem Braga, Marisa Lira, Haroldo Barbosa e outros, que consolidavam as formas consagradas dos gêneros ao mesmo tempo em que espinafravam as formas “impuras”. Samba canção era visto com desconfiança, enquanto Pixinguinha era beatificado como o grande mestre do choro.

A indústria fonográfica crescia, o rádio ampliava seu alcance, e as duas coisas se retroalimentavam. A discussão normativa sobre o popular bom x popular ruim adentra os anos 1950, influenciando a terceira geração de críticos: Ary Vasconcelos, Tinhorão, Sérgio Cabral, Hermínio Bello de Carvalho. O bastão vai sendo passado para os novos “radicais”, que assumem também a função de redescobridores de talentos “puros” e promotores de espetáculos (Cabral e Hermínio), ou constroem sólida obra de pesquisa, fora dos muros acadêmicos (Tinhorão).

Tudo isso vai ganhar complexidade com a chegada da televisão, no final dos anos 1950, e a diversificação de gêneros ocorrida depois do advento da Bossa Nova. Os festivais, a Jovem Guarda, a Tropicália, a música de protesto, nada disso concorria diretamente com o samba “autêntico”, o que permitiu duas linhas de pensamento, na quarta geração de críticos: os puristas, mais ortodoxos, e os universalistas, que falam tanto de rock como de baião, mas reconhecem o samba como forma consagrada da nacionalidade. Temos aí nomes como Tárik de Souza, Ana Maria Bahiana, Mauro Ferreira, Hermano Vianna, Pedro Alexandre Sanches e outros, sendo escrutinados sob a premissa de “sentinelas da tradição”.

Ainda nos anos 1960, um problema vem complicar o esquema gênero-carioca-nacional-autêntico construído por estes críticos. O problema tinha nome e sobrenome, e nasceu em São Paulo: Adoniran Barbosa. Um capítulo inteiro é dedicado a analisar o ruído causado por um italiano que falava errado, compunha torto e não tocava nenhum instrumento. Para os xiitas do samba, era uma distorção. Lúcio Rangel implicava até com o sotaque paulista de Isaurinha Garcia, por exemplo. Pra ser boa, tinha que cantar em “carioquês”. Mas como não chamar de “popular” um proletário, filho de imigrantes, profundamente ligado ao povo (ao “nacional”), no embate ideológico dos anos 1960? Pra piorar, o cara ganhou o concurso de marchas de Carnaval do Rio, em 1965, com Trem das Onze…

O problema Adoniran foi assimilado, a contragosto de alguns. O samba podia ser também paulista, não apenas carioca. Nacional em outro sentido, um pouco além do campo centrípeto da capital federal. (E aqui, confesso, senti a falta de referência ao samba de outras fontes, como a Bahia. Infelizmente Cerboncini Fernandes não faz referência a Batatinha, Riachão, Rufino, Gordurinha ou Roque Ferreira. Seu ensaio polariza o eixo Rio-São Paulo, talvez por questões de mercado, que fazem parte de sua análise, ilustrada por gráficos).

E são estas questões que coroam a tese, quando entra em cena um personagem muito mais assustador que Adoniran: o pagode. Os últimos capítulos rememoram a entrada em cena do Fundo de Quintal, e a avalanche comercial dos grupos de pagode dos anos 1980 e 1990. Novamente, a discussão entre puros x impuros reverbera e divide a opinião pública. Apocalípticos x integrados, puristas x comerciais, autênticos x diluidores. O que é samba, afinal?

O choro, fora dos esquemas comerciais de radiodifusão, longe das grandes vendagens, volta a ser contemplado com um capítulo dedicado aos “novos chorões”. A internet entra na lupa do minucioso pesquisador, comparando sítios e páginas virtuais com as revistas e jornais, cada vez mais avaros nas suas seções de cultura.

Pode ser cansativo para alguns encarar um volume com mais de 500 páginas. Mas para quem realmente se interessa pela música popular como elemento de identidade nacional, é muito rica a leitura deste ensaio. Pode não ter respostas pra tudo, mas sabe provocar um bom debate com opiniões profundamente embasadas. Deve se tornar um clássico dos estudos da área.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Publicado originalmente na revista Música Brasileira, com pequenas alterações.

Referência

Dmitri Cerboncini Fernandes. Sentinelas da tradição: a constituição da autenticidade no samba e no choro. São Paulo, Edusp, 2018 (https://amzn.to/3YG9p2F).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Flávio Aguiar Plínio de Arruda Sampaio Jr. Francisco Pereira de Farias Tarso Genro Marcos Aurélio da Silva João Feres Júnior Tadeu Valadares Luís Fernando Vitagliano Igor Felippe Santos Ronald León Núñez Salem Nasser Eduardo Borges Antônio Sales Rios Neto Valerio Arcary Gerson Almeida Jean Marc Von Der Weid Daniel Costa Mariarosaria Fabris José Costa Júnior Milton Pinheiro Benicio Viero Schmidt Ronaldo Tadeu de Souza Michael Roberts Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Guimarães Lima Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Vladimir Safatle Anselm Jappe Dennis Oliveira Vanderlei Tenório Luiz Eduardo Soares Gilberto Lopes Henri Acselrad Sergio Amadeu da Silveira João Carlos Loebens Antonino Infranca Luiz Bernardo Pericás Maria Rita Kehl Eleutério F. S. Prado Elias Jabbour Alexandre de Lima Castro Tranjan Airton Paschoa Daniel Afonso da Silva Manchetômetro Ricardo Antunes Celso Frederico Boaventura de Sousa Santos Bento Prado Jr. Slavoj Žižek Alexandre Aragão de Albuquerque Liszt Vieira André Márcio Neves Soares Fernando Nogueira da Costa Juarez Guimarães Dênis de Moraes Julian Rodrigues Sandra Bitencourt Thomas Piketty Atilio A. Boron Paulo Nogueira Batista Jr Yuri Martins-Fontes José Machado Moita Neto Matheus Silveira de Souza Lucas Fiaschetti Estevez José Luís Fiori Bruno Machado Lorenzo Vitral Luiz Renato Martins Eleonora Albano Luis Felipe Miguel Caio Bugiato João Adolfo Hansen José Raimundo Trindade Heraldo Campos Leda Maria Paulani Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Carla Teixeira José Micaelson Lacerda Morais Chico Alencar Marcelo Módolo Valerio Arcary Carlos Tautz Otaviano Helene Marjorie C. Marona João Sette Whitaker Ferreira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Érico Andrade Fábio Konder Comparato Eugênio Trivinho Celso Favaretto Bernardo Ricupero Samuel Kilsztajn Francisco Fernandes Ladeira Afrânio Catani Osvaldo Coggiola Claudio Katz Jorge Luiz Souto Maior Andrés del Río Annateresa Fabris Marilena Chauí Vinício Carrilho Martinez Ladislau Dowbor Leonardo Avritzer Rafael R. Ioris Paulo Fernandes Silveira José Geraldo Couto Luiz Roberto Alves João Lanari Bo Michael Löwy Gabriel Cohn Gilberto Maringoni Michel Goulart da Silva Luciano Nascimento Ricardo Fabbrini Daniel Brazil Flávio R. Kothe Mário Maestri Armando Boito Berenice Bento Rodrigo de Faria Luiz Carlos Bresser-Pereira Rubens Pinto Lyra Tales Ab'Sáber Eliziário Andrade Everaldo de Oliveira Andrade Marcos Silva Paulo Capel Narvai Ari Marcelo Solon Lincoln Secco Remy José Fontana Walnice Nogueira Galvão Luiz Werneck Vianna Jean Pierre Chauvin Luiz Marques Andrew Korybko Eugênio Bucci Marcus Ianoni Manuel Domingos Neto Fernão Pessoa Ramos Jorge Branco Henry Burnett Ricardo Abramovay Ronald Rocha Francisco de Oliveira Barros Júnior João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Renato Dagnino Paulo Martins José Dirceu João Carlos Salles Chico Whitaker Kátia Gerab Baggio André Singer Priscila Figueiredo Paulo Sérgio Pinheiro Leonardo Boff Denilson Cordeiro

NOVAS PUBLICAÇÕES