Por MARIAROSARIA FABRIS*
Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
“…si trattava d′amore, e non sai quanto” (Paolo Conte, Gioco d’azzardo),
Em 1953, ao rodar o filme histórico Senso (Sedução da carne), Luchino Visconti colocava-o sob a égide do melodrama lírico, pois, desde fins da década anterior, havia pensado em dirigir óperas. Sabotado no Festival de Veneza no ano seguinte, o longa-metragem vinha evidenciar o paralelo entre as atividades cinematográfica, teatral e operística, que caracterizava a arte do renomado diretor. Lançado em 28 de janeiro de 1955, em sua sequência inicial, ao reproduzir a cenografia do dueto “Vieni, ci schiude il tempio gioie di casto amor” (primeiro ato, cena 6), Senso prestava seu tributo à montagem de 1953 de Il trovatore (1853), de Giuseppe Verdi (La Scala, Milão).
A protagonista daquela montagem era Maria Meneghini Callas,[1] a qual, em 2 de agosto de 1947, na Arena de Verona, fazia sua estreia na Itália em La Gioconda (1875), de Amilcare Ponchielli. A soprano consolidou sua carreira com Tristan und Isolde (Tristão e Isolda, 1857-1859), de Richard Wagner, representada em La Fenice (Veneza, 30 de dezembro do mesmo ano), Norma (1831), de Vincenzo Bellini, montada em Florença em 30 de novembro de 1948, cativando público e crítica no ano seguinte com I puritani (1834), de Bellini, e Die Walküre (A valquíria 1856), de Wagner, ambas encenadas em La Fenice. Depois de projetar-se em escala mundial com suas récitas em La Scala, a cantora lírica conquistou ainda o Covent Garden (Londres) e o Metropolitan Opera House (Nova York).
O encontro com o terceiro mentor italiano, Luchino Visconti – depois do maestro Tullio Serafin, em 1947, e do empresário Giovanni Battista Meneghini, com quem se casou em 1949[2] –, deu-se em meados dos anos 1950, quando a soprano absoluta participou de cinco óperas encenadas pelo diretor milanês: La vestale (1805), de Gaspare Spontini, em 7 de dezembro de 1954; La sonnambula (1831), de Bellini, em 5 de março de 1955; La traviata (1853), de Verdi, em 28 de maio de 1955; Anna Bolena (1830), de Gaetano Donizetti, em 11 de janeiro de 1957; Ifigenia in Tauride (Iphigénie en Tauride, 1778), de Christoph Willibald Gluck, em 1º de junho de 1957.
Além das óperas representadas, os dois pretendiam levar adiante outros projetos, que não se concretizaram: Poliuto (1838), de Donizetti, Carmen (1875), de Georges Bizet, Salomè (Salome, 1905) e Il cavaliere della rosa (Der Rosenkavalier, 1911), de Richard Strauss, além de uma nova edição de La Traviata para o Opéra de Paris, em 1970. Nesse sentido, é preciso apontar para o fato de que a operação de revitalização da ópera empreendida por Visconti, com o firme apoio de Maria Meneghini Callas, visava a retirar do gênero todos os clichês que o tinham desvirtuado ao longo do tempo.
Essa postura do encenador nem sempre agradou ao público e aos críticos avessos às inovações, acalorando os debates sobre sua obra. Embora isso atraísse um número maior de espectadores, ao mesmo tempo alimentava a polêmica, quando não o escândalo, fomentando os ataques a Visconti, como no caso das montagens de La Traviata e Ifigenia in Tauride.

No resgate da ópera lírica, valorizando sua tradição, o diretor não deixou de dar importância à emissão vocal, à postura corporal, à presença cênica, e, nesse sentido, encontrou na cantora greco-americana uma intérprete ideal, pois, a seu ver, ela era dotada também “de um temperamento de atriz”, o que lhe permitia, enquanto encenador, ir mais a fundo na elaboração dos personagens.
Se, em La vestale, ao seguir atentamente as instruções de Visconti quanto à expressão corporal, ela havia elaborado um “gesto contido e assim mesmo dramaticamente expressivo, […] carregado de premonições, presságios, avisos”, em Ifigenia in Tauride: “No amplo, nítido respiro de sua declamação e nas misteriosas ressonâncias de seu instrumento, uma voz constantemente imersa na emoção, renascem os antigos mitos da tragédia grega, a magia de um ritual adquire forma e verdade a partir de seu gesto pungente e solene”.
Na personificação de Amina (La sonnambula) sobressaiam-se “a maquiagem do rosto, o penteado, a graciosidade da intérprete”, “a graça e o equilíbrio de uma gestualidade estilizada”, suas “qualidades de grandíssima atriz”, “a profunda preparação musical”, “as mágicas cores vocais”. De fato, a voz da Callas ressoava “resplandecente, límpida, cristalina e dulcíssima, e, mesmo em sua expressão mais aérea e ingênua, traz[ia] em si, perceptível apenas como uma intuição, o mesmo sentido do drama potencial que a música suger[ia], traduzindo-o em nostálgica sugestão”. Qualidades corporais e vocais que a cantora lírica exibirá de novo na ópera seguinte, como recordará o próprio Luchino Visconti: “La traviata […], com Maria, permitiu-me fazer um trabalho como teria sido com uma atriz de teatro […], porque o personagem, mais do que outros, se prestava a isso; depois, porque a Callas tem um temperamento sobre o qual se trabalha com enorme prazer […]. Sabe-se bem que o melodrama requer uma espécie de dilatação dos sentimentos, dos gestos, dos comportamentos etc. etc. Com a Callas é possível alcançar tudo isso facilmente, porque ela é talhada para isso, porém com um controle, uma finura, um gosto extraordinário”.
E, completando essa apreciação do “recitar cantando”, deve-se sublinhar ainda toda a movimentação cênica que acompanhava a ária “È strano! è strano! in core scolpiti ho quegli accenti!” (primeiro ato, cena cinco),
“cantada como um íntimo confronto consigo mesma ao aproximar-se do dia seguinte, ritmada, num crescendo, por uma série de ações do dia-a-dia que sublinham a linha de seus pensamentos – o tirar as joias, as luvas, os grampos do penteado, o soltar os longos cabelos, o envolver-se num xale, o olhar-se no espelho –, correspondendo cada uma a uma tentativa de resistir àquele amor que a voz de Alfredo, fora de cena, tornará definitivamente vitorioso. O seu jogar os sapatinhos para o alto, que muito surpreende e escandaliza público, cronistas e críticos, assinala sua total rendição”.
E é com um registro mais dramático da entrega humana e artística da soprano às suas personagens que, se encerra a descrição da montagem de Anna Bolena: “A cortina do último ato abre-se […] sobre uma escuridão profunda e inquietante, a luz, vinda das janelas da prisão, vai aumentando fracamente – quase compadecida pela dulcíssima voz de Anna Bolena que canta os dias felizes e perdidos na ária ‘Al dolce guidami castel natìo’ (segundo ato, cena doze] –, fere-se e reverbera no metal dourado dos elmos dos guardas e nas pontas afiadas de suas alabardas, para em seguida espraiar-se sobre a figura da Rainha que, avançando em direção ao público com altivez, se lança na cabaleta final ‘Coppia iniqua, l’estrema vendetta non impreco in quest’ora tremenda’, à qual a Callas imprime a marca em brasa de uma última, desesperada invocação. […] Anna, regiamente heroica, entrega-se sozinha aos guardas e à morte, desaparecendo majestosa rumo ao fundo do palco”.
Essa digressão inicial, elaborada basicamente a partir dos dados fornecidos por Cristina Gastal Chiarelli em Musica e memoria nell’arte di Luchino Visconti, não teve por intenção focalizar a importância do diretor no aperfeiçoamento artístico da soprano, mas tentar reconstruir sua atuação como cantora lírica e dar uma ideia mais precisa do melodrama operístico, em oposição ao que é apresentado no filme Maria (Maria Callas, 2024), de Pablo Larraín.
Depois de assistir à reconstrução das performances da cantora operística – com Angelina Jolie fazendo caras e bocas, esbugalhando os olhos, repetindo quase sempre a mesma gesticulação, com os braços esticados e as mãos crispadas, para conferir dramaticidade às árias interpretadas –, começa-se a suspeitar que o diretor chileno não entendeu direito o significado do melodrama lírico em que o tumulto dos sentimentos não precisa extravasar numa expressão corporal exagerada, mas ser sugerido antes pelas modulações da voz, pela emoção (contida) transmitida ao público.
Como explicou Maria Callas, numa entrevista a Giacomo Gambetti: “no palco, eu sempre busquei a intensidade, a essencialidade, não tinha problemas específicos: intensidade e movimentos essenciais; podia permitir-me um gesto, só quando era mesmo necessário. O gesto inútil é um gesto tresloucado”.

Maria Callas em Poliuto (La Scala, 1960)
Em Maria, a encenação das várias árias quase sempre com os mesmos gestos e as mesmas expressões, e os repetitivos enquadramentos estáticos, acabam por não envolver os espectadores, criando uma sensação de tediosa monotonia, que prejudica até mesmo a apreciação da arte do bel canto. Além disso, a interpretação toda artificial da atriz principal, que vai desmoronando ao contracenar com colegas mais tarimbados – Alba Rohrwacher (um pouco apagada) e Pierfrancesco Favino (impecável), nos papéis da governanta Bruna e do mordomo Ferruccio, uma intensa Valeria Golino como Yakinthi, irmã da diva, e ainda Vincent Macaigne (Dr. Fontainebleau), Haluk Bilginer (Onassis), dentre outros –, esboroa-se de vez diante das imagens da Callas em carne e osso, em filmetes de época.
Maria Callas não surgiu do nada, como a obra de Larraín parece sugerir, uma vez que a personagem é focalizada cantando para os invasores nazistas na Grécia e depois já famosa, com uma ou outra referência a alguns momentos menos gloriosos. A sua foi uma carreira construída passo a passo, durante a qual contou com o apoio de mentores como os três italianos citados, e, antes deles, na Grécia, dos professores do Conservatório Nacional e de sua grande mestra de canto, a soprano espanhola Elvira de Hidalgo, que lutou por sua admissão no Conservatório de Atenas, além do austríaco Renato Mordo, com quem, segundo a própria cantora, aprendeu a mover-se no palco, quando este, em 1944-1945, a dirigiu na encenação ateniense de Tiefland (1903), de Eugen d’Albert.
No filme, as lembranças do passado – que privilegiam seu love affair com Aristóteles Onassis, desde o encontro determinante entre os dois, em 17 de junho de 1957, até a morte do magnata grego, em 15 de março de 1975 – alternam-se com os momentos de solidão, depressão, alucinações da protagonista, no apartamento em que se refugiou ou passeando seu tédio por Paris, tudo envolto numa áura de eterno sofrimento, para atrair a empatia do público, mas que acaba não funcionando pelo excesso de páthos.
A Callas teve uma vida sentimental bem agitada, envolvendo-se várias vezes com colegas de profissão, como o barítono Evangelos Mangliveras, coprotagonista de Tiefland, ou o tenor Giuseppe di Stefano, com quem dirigiu I vespri siciliani (1855), de Verdi (março-abril de 1973), e realizou uma longa turnê de concertos pelas principais metrópoles mundiais (25 de outubro de 1973 – 11 de outubro de 1974), a qual, para os críticos, evidenciou o fracasso vocal dos dois protagonistas, apesar do sucesso de público. Em março de 1975, a morte de uma das filhas do tenor pôs fim ao relacionamento.
Larraín, contudo, alçou praticamente a único grande amor da diva sua ligação sentimental com Onassis, embora não tenha sido bem assim: não tiveram uma vida em comum de verdade, pois ele estava sempre atrás de novos negócios e novos casos que pudessem de alguma forma favorecê-lo (dentre os quais com as irmãs Bouvier, Lee – esposa do príncipe polonês Stanisław Radziwill – em 1963, e Jacqueline – viúva do presidente norte-americano John F. Kennedy – a partir de 1965); o magnata nunca cumpriu a promessa de casar-se com a cantora lírica; o conturbado relacionamento entre os dois se arrastou até o verão boreal de 1968 e foi pelos jornais que Maria soube que Aristóteles e Jackie haviam se casado repentinamente no dia 20 de outubro daquele mesmo ano.
Depois do novo enlace, o magnata tentou reaproximar-se, admitindo seu arrependimento e a vontade de divorciar-se para casar com ela, o que, de novo, não aconteceu. Aos dados biográficos arrolados, extraídos do verbete “Callas, Maria” do Dizionario biografico degli italiani, novas pesquisas têm revelado que a relação entre ambos era tóxica, o que corrobora uma confidência feita, em 1970, à escritora italiana Dacia Maraini: “Onassis era um homem prepotente e a tinha tratado com condescendência, qual rico dono do mundo”.
Essa segunda digressão não teve por objetivo desmistificar o romantismo que, no filme, envolve o casal Callas-Onassis, mas evidenciar pessoas que, para não contrariar essa versão, foram discriminadas. Nesse sentido, será mister apontar, mais adiante, a ausência de uma grande personalidade artística na narração dessa história, uma ausência que é o cerne deste texto.
O encontro com a ópera Medea (1797), de Luigi Cherubini, deu-se em 1953, quando Maria Meneghini Callas apresentou-a em Florença (no mês de maio) e em Milão (em dezembro), sob a batuta de um jovem Leonard Bernstein, e, posteriormente, em Veneza e Roma. Neste período começou sua transformação física: a dieta, iniciada em 1952, a levou a perder uns 38 quilos, até 1956. Com o emagrecimento progressivo, sua presença cênica tornou-se mais dinâmica, mas sua voz sofreu as consequências e a crítica romana não a poupou. Como anotou Guido Pannain:
“Maria Meneghini Callas agita-se demais. Aquela não é Medeia, a Medeia clássica, a qual é outra, toda fechada em sua dor. […] Além disso, vocalmente, a Callas resvala em asperezas metálicas que desviam da comoção. As passagens de registro, em especial do médio para o agudo, são bruscas; os sons graves, surdos; a pronúncia é ofuscada”.
A revanche da cantora lírica deu-se em 17 de junho de 1959, com o triunfo londrino de Medea. Em sua homenagem, Onassis deu uma festa e convidou o casal Meneghini para um cruzeiro em seu iate, que zarparia de Montecarlo no dia 23 de julho. E assim teve início o romance entre Maria e Aristóteles, embora os dois se conhecessem há quase dois anos. Nesse período, a diva começou a espaçar suas aparições, pois suas condições vocais eram cada vez mais preocupantes, mas, assim mesmo, despediu-se dos palcos em fins de 1974, como já assinalado. Entre fins dos anos 1950 até o início da década seguinte, Medea fez parte de seu repertório em outras ocasiões: em Dallas, em novembro de 1958; no Antigo Teatro de Epidauro (1960-1961), na homônima cidade grega; no la Scala (1960-1962). Além disso, como todos sabem, houve outra Medea em sua carreira, não operística, mas cinematográfica.

A Medeia cinematográfica (1969)
Quando Maria Callas e Pier Paolo Pasolini se encontraram, em 19 de outubro de 1968, ela acabava de sair de seu relacionamento com Onassis, além de assistir ao declínio da própria carreira, pois sua voz não era mais a mesma, como escreverá o cineasta, posteriormente, na poesia “Appunti per un’arringa senza senso”: “Quanto a ela, coitadinha, / depois de ter cantado tanto, desesperadamente, dando tudo de si, / e ter-se tornado um mito, agora, silente, / aguarda novos tempos, designados pelo céu; aquele céu / lá onde chegavam suas notas, e a incorpórea voz”.[3]
Por seu lado, o poeta, além dos contrastes com o Partido Comunista Italiano, tentava superar a decepção causada pela contestação dos estudantes a sua poesia em prosa “O PCI aos jovens!!” (publicada pelo semanário L’Espresso, em 16 de junho de 1968), no qual havia se posicionado ao lado dos policias que reprimiam uma manifestação, e a recepção negativa de crítica e de público à montagem turinesa de Orgia (sua estreia como diretor teatral, em 27 de novembro do mesmo ano).
A diva sempre havia resistido aos apelos de produtores e diretores cinematográficos que a queriam protagonista de filmes, sobretudo obras operísticas – Carl Theodor Dreyer, cujo roteiro original de Medea (1965) ficou no papel, mas será adaptado para a televisão dinamarquesa por Lars Von Trier (1988); o produtor Franco Rossellini, que lhe propôs um Macbeth; Joseph Losey, que acalentou dois projetos; Franco Zeffirelli, que pensou numa Tosca[4]; além da aventada participação em realizações como The guns of Navarone (Os canhões de Navarone, 1961), de John Lee Thompson; Il boom (Negócio à italiana, 1963), de Vittorio De Sica; The bible… in the beginning (A bíblia , 1966), de John Huston; Histoires extraordinaires / Tre passi nel delirio (Histórias extraordinárias, 1968), de Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini –, mas Pasolini conseguiu convencê-la, talvez porque não lhe seria exigida nenhuma exibição canora[5].
Ademais, como relatou a Gambetti, gostou muito da ideia do desdobramento da personagem numa Medeia bárbara (o sonho) e numa Medeia grega (a realidade). Quem apresentou os dois foi o produtor Franco Rossellini: se Maria, num primeiro momento, desconfiou de Pier Paolo por ser um intelectual, posteriormente, deixou-se conquistar por sua inteligência, sensibilidade e delicadeza; ele, por sua vez, ficou impressionado com as feições dela, que correspondiam às que havia imaginado para a protagonista de seu filme, conforme registrado por Naldini: “Pensei logo em Medea já sabendo que ela seria a personagem. […] por isso, sempre calibrei meu roteiro em função da Callas. Ela, portanto, contou muito na criação da personagem… Ou seja, essa barbárie que tomou conta dela, que vem à tona em seus olhos, em seus traços, mas não se manifesta diretamente, ao contrário, a superfície é quase polida; em resumo, dez anos passados em Corinto seriam um pouco a vida da Callas. Ela provém de um mundo campesino, grego, agrário, e depois educou-se para uma civilização burguesa. Em certo sentido, portanto, procurei concentrar em sua personagem o que ela é, em sua complexa totalidade”.[6]
O encantamento recíproco consolidou-se durante as filmagens, entre maio e agosto de 1969, e alimentou uma relação de amizade, com troca de confidências,[7] que continuará nos anos sucessivos. Quando Maria, caracterizada de Medeia, surgiu aos olhos de Pasolini na luz crepuscular, ele ficou fulgurado por aquela aparição, segundo escreveu no texto “Avanza un corteo: è la Callas” (Tempo illustrato, 28 junho de 1969): “No fundo de uma dessas valetas – no leito seco do rio – há trigo ao redor – e fileiras de choupos e espinheiros-marítimos, prateados contra o rosa de centenas de pináculos – vem em minha direção, e imprime-se violentamente em minha retina, uma pequena multidão absurda”.
“A luz, é verdade, é a dos sonhos: a última luz do sol no limite do horizonte. Em dois ou três minutos, o sol terá desaparecido, e surgirá o cinza, a divina escuridão salpicada de cor-de-rosa. Mas agora, o ouro da luz afaga a relva, o leito do rio, o trigo e espelha-se, ofuscante, no fundo lacustre da tebaida. Desse modo, o que acontece nessa luz já é por si pouco crível”.
“[…] eis um grupo espalhado e disposto numa desordem coruscante mas nítida de pintor flamengo. No centro está uma figura feminina. Ela está coberta até a altura dos seios por um véu branco, atrás do qual mal se entrevêem o rosto e a longa cabeleira. Debaixo desse véu branco, está pendurada uma penca de colares dourados, bem grossos, que emitem um som opaco, como os chocalhos dos rebanhos: pendem, esses colares, sobre um “escapulário” azul listrado de prata – aparentam ser bem velho, daqueles guardados nas vitrines dos museus, os quais, ao serem tocados, parecem que vão virar pó. Debaixo do escapulário, desce uma enorme anágua preta, que é segurada nas pontas por duas ou três pessoas, cuidando em mantê-la acima do joelho da mulher que a veste. Ela avança assim, como uma rainha não vista. Atrás dela, está outro grupinho do séquito: e, no meio dele, a fiel camareira, vestida de vermelho e verde, que segura pela coleira dois mágicos cachorrinhos, inocentes como dois insetos, duas borboletinhas em seu primeiro esvoaçar aqui e acolá, e, ao mesmo tempo, decrépitos, de uma sabedoria de reis camponeses. E ainda mais atrás, segurando com as mãos os instrumentos de suas técnicas, todos os outros, que não sabem o quanto aquela moribunda luz do sol”.[8]
A afinidade entre Pier Paolo e Maria intensificou-se; consequentemente, como relatou o site Doppiozero, começaram a circular boatos, fotos e notícias sobre um suposto casamento entre os dois, em revistas de fofocas e de atualidades da Itália, da França, da Espanha, até da colônia italiana nos Estados Unidos, sendo alguns textos assinados por jornalistas renomadas, como Oriana Fallaci, Natalia Aspesi, Lietta Tornabuoni e Grazia Livi. Ademais, um semanário cultural de direita, Il borghese, não perdeu a oportunidade de espicaçar o intelectual marxista (relutante às investidas da imprensa) por ter cedido aos encantos do jet-set, ao que ele respondeu com alguns versos da já citada poesia “Appunti per un’arringa senza senso”: “Frequentar o mundo dos ricos é falta grave: / o código não fala de pena; trata-se, contudo, de reato. / Ele falta com seu rigor, não, não, com seu papel”.[9]
Ao cerco da imprensa somavam-se a ira de Laura Betti, os ciúmes de Ninetto Davoli, a torcida de familiares por um final feliz, diante da perspectiva de uma provável “conversão às alegrias da heterossexualidade e ao conformismo” da parte de Pier Paolo, como salientaram Silvia De Laude e Giuseppe Garrera[10]: “Sem dúvida, Pasolini foi tomado de encantamento por Maria Callas, e Maria Callas de encantamento por Pasolini, ambos de forma abissal. As filmagens de Medea e a presença da Callas (seu rosto, os movimentos, seus gestos, as expressões, a aura) acabaram sendo para Pasolini, segundo fotos e testemunhos, um ritual de encantamento, até o atordoamento. Mas, […] uma história de amor, é sempre e em primeiro lugar uma história de necessidade de amor, tomada de consciência da própria solidão nessa terra, e da impossibilidade de superar, a não ser como momentânea ilusão, a linha de sombra do próprio destino”.
O que havia desencadeado os boatos foi um anel com o qual Pier Paolo presenteou Maria, no mês de julho, durante uma comemoração pelo bom êxito das filmagens friulanas de Medea até então. Ao receber o anel – ornado com uma pedra preciosa entalhada, um achado arqueológico romano –, a soprano interpretou aquele gesto como uma prova de amor, ou seja, pensou tratar-se de um anel de compromisso. Depois, os dois trocaram um beijo e um abraço, como relatou num conto Giuseppe Zigaina, pintor e ensaísta amigo de Pasolini, e anfitrião da festa de confraternização. Posteriormente, o cineasta, enquanto continuava a relação com a protagonista de seu filme, expressará seus temores pelo mal-entendido em poesias a ela dedicadas, como em “L’anello” (10 de agosto de 1970):
“De onde o vento, que outrora ornou
vem, e aonde acabará –
contra ele erguemos – de comum acordo, calando-nos –
fisicidades plenas de dor, abandonadas ao mar;
co’a gema que desposa!”[11]
O motivo da “gema que desposa” foi extraído do V canto do “Purgatório”, quando Dante Alighieri encontra a alma de Pia de’ Tolomei: “De Pia recordando-te, em mim pensa; / Siena fizera o que desfez Marema. / Sabe-o quem me esposara e em recompensa / no dedo pôs-me anel com rica gema” (v. 133-136). Só que Pasolini, ao empregar termos antigos ou literários (“inanellata” = “colocada no dedo”; “pria” = “antes”, “disposa” = “desposa”) num contexto contemporâneo, pondo-se sob a égide da linguagem poética tradicional, aproveitou também para jogar com o significado de “disposa”, voz verbal correspondente a “une por matrimônio”, substituída no italiano atual por “sposa”, transformando o início da palavra num prefixo de negação “dis-”; dessa forma, o anel “não une por matrimônio”, mas desune.
Se dúvida houvesse, na poesia seguinte, “Rifacimento” [de “L’anello”], o poeta foi mais explícito, ao mesmo tempo que reconhecia a dificuldade da separação: “tudo se projetava no vento que soprava / como uma gema que não esposa e não desata / sobre aquelas ilhas desertas”.[12] O motivo do vento, enquanto turbilhão de paixões, também pode ter uma derivação dantesca, principalmente se se pensar nas figuras dos amantes Paolo e Francesca que, juntos, avançam na eterna ventania (“Inferno”, canto V).

Semanário Noir et blanc, 12/4/1970
Em 27 de outubro de 1969, o poeta Andrea Zanzotto, amigo de Pasolini, escrevia-lhe em tom de galhofa: “Ouvi vozes sobre seu casamento… / ele não deve se casar / nem com homem / nem com mulher / nem com criatura sobre-humana / nem com macaca brasileira / etc. etc. etc. / Diz o meu Nino Mura”.[13] Tendo reproduzido a brincadeira (preconceituosa) de Zanzotto, porém, Nico Naldini, ao comentá-la, ressaltou como ela levantava o véu sobre a “apaixonada incoerência dessas figuras femininas que se sucedem desde sua juventude e que, antes de tornar-se amizades devotadas, ficaram dando voltas ao redor de um enigma, com a ilusão de decifrá-lo, não bastando para tanto que o enigma tivesse se esclarecido sozinho até demais. E acrescentou: “Mas, talvez neste caso, o enigma seja representado pela figura da Callas, ‘garotinha sedenta de incruentas chacinas’, que fascina e perturba com a violência de seus sentimentos”.[14]
Embora Naldini esteja certo em sua última afirmação, Pasolini teve relacionamentos intensos com várias mulheres e tentou desvendar a alma feminina[15], como atestam as relações de amizade que manteve ao longo da vida com Silvana Mauri, um amor da juventude, a primeira pessoa a quem segredou a própria homossexualidade; a jovem friulana Maria Seccardi, com quem se correspondeu até o fim da década de 1950; a condessa Elsa de’ Giorgi, atriz, escritora e pesquisadora da arte da interpretação; a primeira e a segunda esposas de Alberto Moravia, as escritoras Elsa Morante e Dacia Maraini, suas colaboradoras em alguns filmes; a atriz Laura Betti – que definiu “minha mulher não carnal”, numa carta a Jean-Luc Godard, em outubro de 1967 –; Silvana Mangano, a quem endereçou uma belíssima carta aberta, publicada pelo semanário Tempo illustrato, em 16 de novembro de 1968: “Somos ambos pontuais e cerimoniosos, como crianças bem comportadas na escola, não é mesmo?, e temos um senso bem arraigado de nosso dever: nunca faltaríamos à palavra… não era difícil para mim “contemplar” todos esses aspectos de sua natureza – pontualidade, senso de dever, lealdade – enquanto trabalhávamos juntos no Marrocos, em Roma, em Milão. E é isso tudo, que estranho dizê-lo!, que produz o mistério de sua beleza. Sua beleza amarga, que se oferece, iminente, como uma teofania, um esplendor de pérola; enquanto, na verdade, você está longe. Aparece onde se acredita, se trabalha, se dá duro; mas está onde não se acredita, não se trabalha, não se dá duro. Chamada aqui por uma obrigação que (por que será?) se tem ao viver, permanece a realidade de seu distanciamento, como uma placa de vidro entre você e o mundo. Sem nunca ter dito isso um pro outro (dado o pudor selvagem), minha alma estava frequentemente com você, atrás daquele vidro”.
Como havia acontecido com a visão de Maria/Medeia, aqui, de novo, quem está por trás da câmera não é só o cineasta, mas o poeta, que, com toda sua sensibilidade, tenta captar também os sentimentos que o olho mecânico não consegue decifrar. Isso fica evidente, ainda, numa carta escrita à sua intérprete, depois de um dia de filmagens mais atribulado, pois, acostumada às grandes unidades narrativas da ópera, ela estranhava o método pasoliniano de fragmentar a narração em pequenas tomadas, cujo significado se explicitaria na montagem: “Cara Maria, hoje à noite, assim que terminei de trabalhar, naquela trilha de poeira cor-de-rosa, senti, com minhas antenas em você, a mesma angústia que ontem você, com suas antenas, sentiu em mim. Uma angústia bem leve, não mais do que uma sombra, e assim mesmo invencível. Ontem, em mim, tratava-se de um pouco de neurose; mas hoje, em você, era uma razão específica (específica até certo ponto, naturalmente) que a oprimia, com o sol que se punha. Era o sentimento de não ter sido totalmente dona de si, de seu corpo, de sua realidade: de ter sido ‘usada’ (ademais com a fatal brutalidade técnica que o cinema implica) e, portanto, de ter perdido em parte sua total liberdade. Esse aperto no coração, você o sentirá frequentemente no decorrer de nossa obra; e eu também o sentirei com você. É terrível ser usados, mas também usar. O cinema, porém, é assim: é necessário quebrar e despedaçar uma realidade ‘inteira’ para reconstruí-la em sua verdade sintética e absoluta, que a torna ainda mais ‘inteira’. Você é como uma pedra preciosa violentamente despedaçada em mil estilhaços para poder ser reconstruída com um material mais duradouro do que o da vida, isto é, o material da poesia. É mesmo terrível sentir-se despedaçados, sentir que num certo momento, numa certa hora, num certo dia, não somos mais totalmente nós mesmos, mas um pequeno estilhaço de nós mesmos: e isso humilha, eu sei”.
“Hoje, eu colhi um instante de seu fulgor, e você queria dá-lo todo para mim. Mas, não é possível. Cada dia um clarão e, no fim, teremos a inteira, intacta luminosidade. Ademais, há o fato de eu falar pouco, ou expressar-me em termos algo incompreensíveis. Mas isso pode ser remediado facilmente: estou um pouco em transe, tenho uma visão, ou melhor visões, as ‘Visões de Medeia’; nessas condições de emergência, você precisa ter um pouco de paciência comigo, e arrancar-me um pouco as palavras à força. Um abraço. Pier Paolo”.
Durante a roteirização, as filmagens e a pós-produção de Medea, Pasolini escreveu vinte e cinco poesias, entre os meses de março e outubro de 1969, que integraram a primeira edição do roteiro do filme, organizada por Gambetti (abril de 1970). Além de “La voce di Ford come sottofondo” (10 de outubro), em “Callas” (junho), havia registrado os últimos preparativos para o reinício das filmagens: “De fato, o sol domingueiro brilha, e fervem os trabalhos / de carpintaria, evidentemente suplementares, ou ‘extras’, / na paz do sol da Capadócia, cuja realidade, / depois de uma longa interrupção, retoma o rumo certo, / aguardando, hoje, por exemplo, a chegada da Callas”[16].
Embora nem o nome, nem o sobrenome da soprano sejam citados em “Poema poetico”, tudo leva a crer que esteja sendo descrito um seu parêntese de descanso na alta roda, sem que ela perca, contudo a aura de mistério:
“Onde você se oculta? Em sua vida privada, naturalmente, a salvo
e sabida é sua distinção. Durante a noite, depois, trovões estrondosos
verterão sobre Montecarlo a lembrança de algo
ainda mais antigo do que a pré-história; isso faz parte do jogo;
os barcos, de fato, oscilarão mais frescos na luz matutina,
e a Riqueza contestará mais cruenta do alto a pequena-burguesia”.[17]
Nas férias de fim de ano, o diretor, como fazia normalmente, seguiu para a África com seus constantes companheiros de viagem, como lembrou Dacia Maraini: “unidos por uma proximidade física por horas a fio, andando lado a lado, comendo sentados numa pedra, no meio do deserto, ou então em baiucas miseráveis, diante de um copo de cerveja chinesa. Alberto sempre esteve conosco, frequentemente Ninetto, às vezes sua trupe, certa feita Maria Callas”. Naquela ocasião, visitaram o Senegal, a Costa do Marfim e o Mali – e, continua a escritora, “na cotidianidade do nosso viajar juntos havia muita afetuosa ternura. Você estava sinceramente apaixonado por Maria. Percebia-se por como você a olhava, por como lhe falava, por como lhe sorria, por como segurava sua mão andando por ruazinhas cheias de buracos, de pedras e de espinhos”.
Prosseguido em suas lembranças, a autora de Caro Pier Paolo escreveu: “Naturalmente, seu amor por Maria era um amor platônico. Você nunca teve uma verdadeira conjunção carnal com ela, que eu saiba, nem considerava seu corpo uma fonte de desejo. Mas o amor é misterioso e decerto vai além das definições. Tinha-se instaurado entre vocês uma relação de ternura, de admiração, de solidariedade e de doçura que eu sentia viva e contagiante quando estava por perto”.
“Maria almejava estreitar a relação e torná-la também carnal, mas não se atrevia a pedi-lo. […] Achava que você, Pier Paolo, era uma maravilha de homem: atencioso, gentil, solicito, generoso. Teria casado com você de bom grado, embora soubesse de suas preferências sexuais. Mas, pode-se amar uma mulher sem desejá-la?”.

É uma pergunta que deve ter atormentado tanto Maria Callas, a qual, desconsiderando a evidência da homossexualidade, acalentava um sonho matrimonial, quanto Pasolini que, segundo Fabrizio Cigni, se valia de “meios retóricos para traduzir a ideia de um atordoamento absolutamente inédito para ele”, como na poesia “La baia di Kingstown”:
“e se subo agarrando-me a um penhasco
que dá para mares saxões nunca vistos
(para ir aonde as pessoas decentes não vão)
você o pega por uma brincadeira, um capricho de intelectual. […]
assim (e é a primeira vez, repito, que me acontece)
meus olhos levam em consideração
‘os lombos imundos de mulher, de carne de homem
não feito à semelhança de Deus, presa da serpente’,
e fabulo amores em Psikikò” [18].
A fabulação do amor estará presente ainda em “La presenza” (23 de agosto de 1970), na qual Pasolini, ao desdobrar a Callas na mãe de si mesma e na menina que ainda a habita (que, se for deixada de lado, se sente perdida para sempre), respeitando esse sentimento, terminava a poesia com palavras de ternura:
“e você procura detê-la, a que queria voltar para trás,
não há um dia, uma hora, um instante
em que o esforço desesperado possa cessar;
agarra-se a qualquer coisa
dando uma vontade de beijá-la”.[19]
Apesar desses momentos de desejo incipiente, para Pasolini a Callas, mais do que uma mulher real, era um ser mitológico, uma visão ctônica, porque tinha “experiência / de um lugar que nunca explorei, um vazio / no cosmo / […] / Quem existe naquele vazio do cosmo, que você traz em seus desejos e conhece? / […] mas, no lugar do Outro / para mim há um vazio no cosmo / um vazio no cosmo / e de lá você canta”, como versejou em “Timor di me?”.[20]
Essa e as outras poesias que integram o volume Trasumanar e organizar (1971), foram escritas, em geral, no verão boreal de 1970, quando Maria e Pier Paolo seguiram para Tragonisi, uma ilha do mar Egeu, para passarem as férias, durante as quais o poeta se dedicou também a retratar a diva, como já havia feito, no ano anterior, na ilha de Mota Safon (Friul).

Antes disso, em fins de janeiro, por ocasião do lançamento de Medea na França, o cineasta havia sido hóspede da soprano em seu luxuoso apartamento parisiense da Avenue Mandel. Em março, os dois haviam rumado para a Argentina, por ocasião da apresentação do filme no Festival de Cinema de Mar del Plata, e para o Brasil, onde permaneceram quatro dias. Embora curtíssima, a estada entre nós motivou Pasolini a escrever algumas composições líricas; numa delas, “Comunicato all’ansa (Recife)”, registrou a presença da Callas a seu lado: “Minha companheira com sua ansiedade, no morno ar da chuva, / e sua sede de graça: cegada para sempre –”.[21]

Desembarque no Rio, “Maria Callas foi transformada em estrela do último filme de Pasolini” (O Globo, 20/3/1970).
A Maria Callas, que voltava ao Brasil em 1970, era muito diferente da prima donna voluntariosa que havia se apresentado nos teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro na temporada lírica de 1951[22]. Longe dos palcos, parecia mais frágil, era mais afável com os jornalistas, gentil com a trupe cinematográfica, ou seja, revelava uma personalidade multifacetada, bem distante da diva só fechada em si mesma, como Larraín a retratou. Sua espontaneidade e a capacidade de adaptação, durante a viagem na África, conquistaram Dacia Maraini: “Quando a vi vir ao nosso encontro no aeroporto, de jeans desbotados, blusa branca, o cabelo amarrado na nuca e um sorriso amoroso que iluminava seu rosto, entendi que as minhas eram prevenções. Maria, efetivamente, revelou-se, desde o início, uma mulher espirituosa, gentil, solidária e tão apaixonada pelo seu Pier Paolo a ponto de perder todos os vícios da diva, que ela era de fato.
“Nunca se queixou de qualquer desconforto na viagem […]. Nos primeiros tempos, havia grandes hotéis. […] Depois, ao adentrar o Mali profundo, os hotéis de luxo desapareceram e começamos nossas peregrinações na Land Rover que carregava, amarrados no teto, garrafões de água, malas de mão com latas de carne, feijão, pêssego em calda. Adaptamo-nos a dormir em pardieiros de quartos acanhados e sem ar condicionado. […]
Você, Pier Paolo, às vezes a reprendia quando ela dizia uma obviedade, e suspirava: ‘Mariaaaa!’. Assumia um tom de doce desaprovação e ela logo entendia que tinha aprontado alguma e se desculpava, se atrapalhava embaraçada. Sabia que estava lidando com uma pessoa culta e engajada. Às vezes, de fato, sem perceber, passava a raciocinar como uma rica senhora parisiense que tinha aceitado vir num país de incompreensíveis primitivos só por amor de um homem que a encantava”.
Um dos últimos registros de convívio entre a cantora e o cineasta foi a visita que ela lhe fez durante as filmagens de Decameron (Decamerão, 1971), entre os meses de setembro e outubro de 1970. A partir de 1971, compromissos profissionais começaram a interpor-se entre os dois. Em fevereiro, durante duas semanas, Maria Callas ministrou masterclasses sobre interpretação operística no prestigioso Curtis Institut of Music em Filadélfia (Pensilvânia) e, entre outubro e março do ano seguinte, repetiu a experiência na Juilliard School de Nova York.[23] Em maio de 1972, Giuseppe Di Stefano, que estava precisando angariar fundos para o tratamento contra o câncer de uma de suas filhas, foi procurá-la e ambos embarcaram nos dois projetos já relatados, entre março de 1973 e outubro de 1974.
Depois disso, seguiu-se um período funesto para a soprano: em 1975, no mês de março, Onassis veio a faltar (dia 15) e Di Stefano a deixou, e no dia 2 de novembro, Pasolini foi assassinado; em 1976, Visconti faleceu em 17 de março. Ou seja, parte de seu universo afetivo desmoronou. Ao contrário do que mostra o filme de Larraín, Maria não pranteou apenas o magnata grego, mas também seu mentor e, sem dúvida, seu grande amor platônico. Porque, apesar da distância, os laços afetivos entre a soprano e o cineasta haviam continuado, como atesta uma carta (reproduzida no site Città Pasolini) que, em 21 de julho de 1971, Maria tinha escrito a um Pier Paolo profundamente deprimido, porque Ninetto Davoli lhe havia comunicado sua intenção de casar-se com uma coetânea: “Caro Pier Paolo, recebi seu livro, depois sua querida carta. Sinto-me infeliz por você – mas estou contente que tenha se confidenciado comigo. Caro amigo, sinto-me infeliz porque não posso estar por perto nesses momentos difíceis para você, como você ficou perto de mim frequentemente. Você bem sabe, no fundo, que terminaria assim. Você se lembra em Grado, no carro, falávamos com Ninetto de amor ou sei lá do quê. Dentro de mim – minhas antenas, como você diz, me diziam quando Ninetto dizia que nunca se apaixonaria – sabia que ele era demasiado jovem para entender as coisas que dizia. E você, no fundo, homem tão inteligente, deveria saber. Em vez disso, você também agarrava-se a um sonho sonhado sozinho, porque é assim, embora eu o magoe com esse pequenino sermão. É a realidade que você tem de enfrentar, mas não pode porque não quer. Você renascerá, eu consegui – uma mulher – de muita sensibilidade; no entanto, entendi que só podemos contar conosco. Ai de mim, não me caçoe. É triste também e sobretudo para mim dizê-lo. Não podemos contar com os outros por muito tempo. É uma lei da natureza. É dentro de nós que devemos encontrar a força, ao menos aparente, não quero bancar a mãe, querido, mas nunca o considerei meu pai. Pier Paolo, os livros sabem muito, sim, mas não a dura realidade, e não ensinam algo em que eu acredito e morrerei acreditando. Isto é, aquilo que só o homem pode fazer, com mera vontade, amor próprio e orgulho. O que eu procuro fazer. Na verdade, se você me entender, mas vejo que talvez, no fundo, nem tanto, é necessário ter sempre os pés no chão, depois sonhar, sim, mas é sonho não realidade. A realidade é criação, dignidade, não burguesia, como diz você, ou talvez não entendi bem o livro. Eu vivo na burguesia servindo-me dela, porque o artista precisa dela. Mas, na verdade, eu vivo sozinha, na fé de que posso, devo, porque todos me olham. E temos o dever de fazer, uma vez colocados lá em cima. Não podemos fazer o que gostaríamos. Eu também gostaria, decerto, mas então aceitamos ser criticados porque, quem vence, as pessoas o colocam no alto, e assim você tem deveres. Caso contrário, larga-se tudo e se faz o que se quer. Não há desculpas para nós, mesmo se os outros dão muitas. Decerto as palavras são palavras, para você fáceis de serem escritas – mas, quando é que você vai crescer P.P.P.? Não chegou a hora de ser mais rico e maduro, embora continuemos sempre garotos, graças a Deus. Sei que você vai me odiar pelo que lhe escrevo. Mas sempre lhe falei a verdade, e peço-lhe desculpas se em vez de afagos você recebe essas palavras estúpidas. Já tinha lhe dito isso e peço-lhe perdão. Estou aqui, pena que você não venha, sabe-se lá porque. Os amigos são para os momentos difíceis, sempre lhe disse isso. Estarei ainda aqui durante todo o mês de agosto. Gostaria de receber suas notícias. Sou sempre carinhosamente sua, com a amizade de sempre. Escreva-me aqui: Draconizzi Petacci Marmari. Obrigada pelo telegrama de Londres. Maria (garotona)”.[24]
Se não arrefeceu a amizade, o afastamento, de certa forma, quebrou o encanto daquele espelho narcísico representado por Maria/Medeia, que, com seu constante embate entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, o atraía e o ameaçava, pois o levava a desvendar as profundezas do seu eu, um eu receoso diante do pedido de amor que ela lhe fazia.
Um amor que Maria Callas admitiu publicamente, mas que Pasolini não se atreveu a assumir, confiando à escrita seu redemoinho de emoções e dilemas[25] – “o afeto veste-se de sentimentos não seus; / […] / as palavras se tornam mentirosas; e a cumplicidade / […] / é imitada por uma cumplicidade hipócrita / em que o não dito finge-se de não conhecido”[26]; “ mas o tênue sorriso evasivo / não é de timidez / é a angústia, mais terrível, bem mais terrível / de ter um corpo separado, nos reinos do ser –”[27] –, em poesias muito pessoais, enigmáticas ou herméticas, camuflando seus sentimentos por meio da retórica, como na poesia “Un affetto e la vita” (1969):
“Tenho um afeto maior do que qualquer amor
sobre o qual expor inutilizáveis deduções –
Todas as experiências do amor
são de fato tornadas misteriosas por aquele afeto
em que se repetem idênticas.
Estou atado a ele
porque me impede de ter outros.
Mas sou livre porque estou um pouco mais livre de mim mesmo.
A vida perde o interesse porque se reduziu a um teatro
em que as fases desse afeto se desenrolam:
e assim perdi a embriaguez de ter caminhos desconhecidos
a tomar toda noite
(no velho vento que anuncia mudanças de horas e estações).
Mas que embriaguez poder dizer: ‘Eu não viajo mais’.
Tudo é monótono porque em tudo não há nada
além de certo brilho do olhar,
certo modo de correr meio engraçado,
certo modo de dizer ‘Paolo’, e certo modo
de atormentar por causa da resignação.
Mas tudo é colocado em dúvida pelo terror de que algo mude.
Em todo amor há uma fusão entre a pessoa que se ama
e outro alguém: mas isso é natural. No afeto
isso parece ao contrário tão inatural:
a fusão acontece em tamanhas profundidades
que não é possível dar explicações, encontrar motivos
para congratular-se, não importa qual ela seja, pela própria sorte.
A ternura que tal afeto impõe
em profundidade, não leva a fecundar
nem a ser fecundados, mesmo de brincadeira;
contudo se sucumbe a ele
com a mesma sensação de cair no vazio
experimentada ao lançar a semente, quando alguém morre
e se torna pai. Enfim (mas quantas outras
coisas poderiam ainda ser ditas!),
embora pareça absurdo, por um tal afeto,
se poderia também dar a vida. Aliás, acredito
que esse afeto nada mais seja além de um pretexto
para saber que há uma possibilidade – a única –
de desfazer-se sem dor de si mesmos”[28].
Dedicada a Ninetto Davoli [eram dele “certo brilho do olhar, / certo modo de correr meio engraçado, / certo modo de dizer ‘Paolo’”], a poesia defendia a supremacia do afeto sobre o amor, porque afeto não significava possuir ou ser possuído, embora pudesse ser comparado ao coito por provocar a mesma sensação de queda no vazio experimentada na petite mort,[29] o que vinha pôr em dúvida a diferença que o autor pretendia estabelecer entre os dois sentimentos.
Não importa se Pier Paolo Pasolini quis chamar de afeto o que para Maria Callas foi amor; o que houve entre os dois foi um sentimento tão intenso que, embora sem conjunção carnal, não deixou de ser uma história de amor. Luca Prono, ampliando o significado de uma expressão atribuída a Oscar Wilde,[30] classificou-o como “um amor que não ousa dizer seu nome, porque vai além das definições de heterossexualidade e homossexualidade”. Um amor que, ao desestabilizar polaridades como masculino e feminino, racional e irracional, domínio e submissão, libertava o desejo de esquemas e limites codificados e impostos pela sociedade. Ou, em outras palavras, como na canção “Paula e Bebeto” (1975), de Caetano Veloso e Milton Nascimento:
“Pena que pena, que coisa bonita, diga
Qual a palavra que nunca foi dita, diga
Qualquer maneira de amor vale o canto
Qualquer maneira me vale cantar
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá”.
Qualquer espécie de amor, cantado em verso ou em ópera, interdito/entredito.
*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “Um descampado banhado de luar: notas e fragmentos”, que integra o volume Um intelectual na urgência: Pasolini lido no Brasil (Unesp/Unicamp).
Referências
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. José Pedro Xavier Pinheiro (2013). E-book, disponível na internet.
“L’amore impossibile tra Pier Paolo Pasolini e Maria Callas in una mostra a Casa Colussi”. La repubblica, 19 nov. 2023. Disponível em: <https://www.repubblica.it/ cultura/2023/11/17/news/lamore_impossibile_tra_pier_paolo_pasolini_e_maria_callas_in_una_mostra_a_casa_colussi-420412571/>.
BEGHELLI, Marco. “CALLAS, Maria”. In: Dizionario biografico degli italiani (2012). Disponível em: <https://www.treccani.it/enciclopedia/maria-callas_ (Dizionario-Biografico)/>.
CAPANNI, Cosimo. “Pasolini-Callas: l’amore impossibile (seconda parte)” (4 set. 2012). Disponível em: <https://www.gbopera.it/2012/09/pasolini-callaslamore-impossibile-seconda-parte/>.
CHIARELLI, Cristina Gastel. Musica e memoria nell’arte di Luchino Visconti. Turim: Archinto, 1997.
CIGNI, Fabrizio. “Né timor di me ti prenda…”. In: CASI, Stefano (org.). Desiderio di Pasolini: omosessualità, arte e impegno intellettuale. Turim: Edizioni Sonda, 1990.
CRUVINEL, Gilberto. “Maria Callas em São Paulo e no Rio de Janeiro” (14 mar. 2025). Disponível em: <https://jornalggn.com.br/musica/maria-callas-em-sao-paulo-e-no-rio-de-janeiro/>.
FABRIS, Mariarosaria. “Pasolini interpreta o Brasil, o Brasil interpreta Pasolini”. In: KACTUZ, Flávio (org.). Pasolini ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo. Rio de Janeiro: Uns entre outros, 2014.
GAMBETTI, Giacomo. “Maria Callas: sono per una Medea non agressiva”; “Poesie di Pier Paolo Pasolini scritte durante la lavorazione di Medea. In: ________ (org.). Medea: un film di Pier Paolo Pasolini. Milão: Garzanti, 1970.
LASAITIS, Cris. “O poema do ‘amor que não ousa dizer seu nome’” (4 maio 2020). Disponível em: <https://cristinalasaitis.wordpress.com/2020/05/04/o-poema-do-amor-que-nao-ousa-dizer-seu-nome/>.
LAUDE, Silvia DE; GARRARA, Giuseppe (org.) Pier Paolo Pasolini e Maria Callas: cronaca di un amore. Dueville: Ronzani Editore, 2023.
“Lettera di Pier Paolo Pasolini a Maria Callas”. Disponível em: <https://www. yunus.it/2022/12/16/lettera-di-pier-paolo-pasolini-a-maria-callas/>.
LONA, Alessandro Mezzena. “Callas e Pasolini: un amore” (18 fev. 2024). Disponível em: <https://www.doppiozero.com/callas-e-pasolini-un-amore>.
MARAINI, Dacia. Caro Pier Paolo. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2022.
NALDINI, Nico. Pasolini: una vita. Turim: Einaudi, 1989.
PASOLINI, Pier Paolo. “Un affetto e la vita”; “L’anello”; “Appunti per un’arringa senza senso”; “La baia di Kingstown”; “Comunicato all’ansa (Recife)”; “La presenza”; “Rifacimento”; “Rifacimento” [de “L’anello]; “Timor di me?”. In: ________. Trasumanar e organizzar. Milão: Garzanti, 1976.
PASOLINI, Pier Paolo. “Avanza un corteo: è la Callas”; “Lettera aperta a Silvana Mangano”. In: ________. Il caos. Roma: Editori Riuniti, 1969.
PASOLINI, Pier Paolo. Le lettere. Milão: Garzanti, 2021.
PASOLINI, Pier Paolo. Il sogno del centauro: incontro con Jean Duflot (1969-1975). Roma: Editori Riuniti, 1973.
“Pier Paolo Pasolini e Maria Callas. Il carteggio fra due geni” (18 set. 2020). Disponível em: <https://www.cittapasolini.com/post/pier-paolo-pasolini-e-maria-callas-lettere>.
“Post Maria Callas – Portugal e Brasil”. Disponível em: <https://www.facebook. com/CallasPortugaleBrasil/posts/maria-callas-no-brasil-1951sobre-os-seus-primei ros-anos-de-carreira-em-itália-ca/1780847681994896/>.
PRONO, Luca. “L’amore che non osa pronunciare il proprio nome” (20 fev. 2020). Disponível em: < https://www.cinefiliaritrovata.it/lamore-che-non-osa-pronunciare-il-proprio-nome/>.
ZIGAINA, Giuseppe. “L’anello”. In: ________. Verso la laguna. Veneza: Marsilio, 1995.
Notas
[1] Embora tenha nascido como Maria Anna Cecilia Sofia Kalogerópulos, antes de tornar-se conhecida como Maria Callas, a soprano teve outros nomes: Mary Kalos, Marianna Kalogeropoulou, Mary Kallas, Maria Kallas. Durante o período matrimonial com um empresário vêneto (21 abril 1949 – julho de 1959), mudou seu nome artístico para Maria Meneghini Callas, embora em sua carteira de identidade italiana, expedida em 6 de setembro de 1949, resultasse como Sofia Cecilia Kalos, segundo Marco Beghelli.
[2] Sempre segundo Beghelli, a jovem cantora lírica conheceu ambos em 30 de junho de 1947: o primeiro “lhe ensinaria os segredos da interpretação operística, treinando-a, nota por nota, tanto em Verdi como em Wagner, seja em Rossini quanto em Puccini”; o segundo “a introduziria num mundo que ela sempre tinha visto de longe, feito de comodidades, encontros importantes, sucessos”.
[3] No original: “Quanto a lei, poverina, / dopo aver tanto cantato, disperatamente, mettendocela tutta, / ed essere divenuta un mito, ora, silente, / aspetta tempi nuovi, designati in cielo; in quel cielo / là dove giungean le sue note, e l’incorporea voce”.
[4] Zeffirelli homenageou-a no filme Callas forever (2002), em que imaginou a viagem a Paris de um produtor musical, com a intenção de arrancar a diva da solidão de seu apartamento, onde vivia reclusa, deprimida, na companhia de suas gravações operísticas e das lembranças dos dias de glória. O produtor consegue convencer a cantora lírica a protagonizar Carmen, filme sobre a ópera que ela nunca tinha apresentado nos palcos, mas havia gravado em disco, o que lhe permitiria dublar a própria voz. Apesar do bom resultado, a soprano percebe que não pode enganar seu público e pede para destruir a película cinematográfica.
[5] Em virtude dos diálogos reduzidos ao essencial, já no roteiro, foi eliminada a cantiga de ninar com que Medeia deveria embalar os filhos e, por causa de leves inflexões estrangeiras e pelo sotaque vêneto (adquirido no convívio com Meneghini), a voz da Callas foi dublada pela atriz Rita Savagnone, uma vez que, pela temática e pelo tom do filme, destoaria algo que não fosse a língua culta. Na cópia em inglês, a voz de Medeia é a da cantora lírica.
[6] Como Pasolini declarou a Jean Duflot: “o que talvez não se saiba, é que já tinha pensado na Callas para o papel de Jocasta em Édipo rei… Acontece que ela personificava para mim, há tempos, uma série de figuras femininas do repertório trágico… Consegui convencê-la graças à mediação do produtor Rossellini, amigo pessoal da Callas. Sabia que nunca teria aceitado realizar para as telas sua interpretação de Medea na ópera lírica de Cherubini. Devo dizer que é uma atriz nata, de uma inteligência e de uma presença absolutamente excepcionais… Uma das atrizes que me colocaram menos problemas de direção”.
[7] Maria deve ter contado a Pier Paolo do rigor materno para com ela, se, na poesia “La voce di Ford come sottofondo”, ele escreveu: “Enquanto isso Maria cantava, e mais sublime era / mais parecia implorar por piedade, como uma pobre que ganha o pão / enquanto a mãe a olha ávida de longe. Cantava, cantava, / dava o melhor de si. […]” (no original: “Intanto Maria cantava, e più era sublime / più pareva chiedere pietà, come una povera che si guadagna il pane / mentre la madre la guarda avida da lontano. Cantava, cantava, / ci metteva tutta se stessa. […]”).
[8] A camareira é Bruna, contratada pela produção do filme.
[9] No original: “Frequentare il mondo dei ricchi è mancanza grave: / il codice non parla di pena, trattasi tuttavia di reato. / Egli viene meno al suo rigore, no, no, al suo ruolo”.
[10] Entre 18 de novembro de 2023 e 25 de março 2024, o Centro Studi Pasolini, em Casarsa della Delizia (Friul), apresentou a exposição fotográfica “Pier Paolo Pasolini e Maria Callas: cronaca di un amore”, com a curadoria de Laude e Garrara, que organizaram também o catálogo. A intensa amizade entre os dois foi narrada também por Jean Dufaux em La Callas et Pasolini, un amour impossible (Charleroi: Éditions Dupuis, 2023) e, anteriormente, no documentário L’isola di Medea (2017), de Sergio Naitza, por meio de material de arquivo e depoimentos de pessoas que a haviam testemunhado.
[11] No original: “Da dove il vento, che inanellata pria / viene, e dove finirà – / contro esso ergiamo – di comune accordo tacendolo – / fisicità colme di dolore, abbandonate sul mare; la gemma che disposa!”.
[12] No original: “tutto si proiettava nel vento che scorreva / come una gemma che non sposa e non scioglie / su quelle isole deserte”.
[13] No original: “Ho sentito voci sul tuo matrimonio… / non si deve sposarsi / né con uomo / né con donna / né con creatura sovrumana / né con scimmia brasiliana / etc etc etc / Dice il mio Nino Mura”. Viticultor e vinicultor, Nino Mura, dedicava-se, dentre outras coisas, a escrever poesias bucólicas, em Pieve di Soligo (província de Treviso, no Vêneto), onde conheceu Zanzotto, quando este ali residiu. Atribuir-lhe o conselho dado a Pasolini, pode ser interpretado como um convite a ouvir a voz da sabedoria (“in vino veritas”) e ter discernimento.
[14] Naldini estava citando a parte final do v. 13 da poesia “Rifacimento”: “giovinetta assetata d’incruenti stragi”.
[15] Mas, segundo Dacia Maraini: “Desde que o sexo ficasse fechado do lado de fora da sagrada porta de teu corpo. Com essa condição, você se entregava à proximidade feminina, a qual, quer se queira ou não, se transformava, diante de seu olhar alarmado, sempre e por uma marca da infância, num corpo materno”.
[16] No original: “Infatti, il sole domenicale splende, e fervono lavori / di falegnameria, evidentemente supplementari, o ‘straordinari’, / nella pace del sole della Cappadocia, la cui realtà, / dopo una lunga interruzione, riprende il suo corso, / attendendo, oggi, ad esempio, l’arrivo della Callas”.
[17] No original: “Dove scompari? Nella tua vita privata, naturalmente, al riparo / e ti si sa diversa. Durante la notte, poi, tuoni straordinari / porteranno su Montecarlo il ricordo di qualcosa / di più antico ancora della preistoria; ciò rientra nel gioco; / le barche infatti dondoleranno più fresche nella luce del mattino, / e la Ricchezza contesterà più crudele dall’alto la piccola borghesia”.
[18] No original: “e se m’inerpico su per una scarpata / che dà su mari sassoni mai visti / (per andare dove le persone per bene non vanno) / lo credi uno scherzo, un capriccio d’intellettuale. / […] / così (ed è la prima volta, ripeto, che mi succede) / i miei occhi prendono in considerazione / ‘i lombi immondi di donna, di carne d’uomo / non fatta a somiglianza di Dio, preda del serpente’, / e affabulo d’amore a Psikikò”. Nos versos “i lombi immondi di donna, di carne d’uomo / non fatta a somiglianza di Dio, preda del serpente”, Pasolini transcreveu literalmente um pequeno trecho da tradução italiana do romance Ulysses (Ulisses, 1922), de James Joyce, do qual extraiu ainda o título e outros elementos da poesia. Quanto a “Psikikò”, trata-se provavelmente de uma adaptação do termo grego “ψυχικός” (transliteração: “psychikós”) com o qual o poeta transmutou um estado psíquico num lugar físico.
[19] No original: “e tu cerchi di fermarla, quella che voleva tornare indietro, / non c’è un giorno, un’ora, un istante / in cui lo sforzo disperato possa cessare; / ti aggrappi a qualunque cosa / facendo venir voglia di baciarti”.
[20] No original: “esperienza / di un luogo che non ho mai esplorato, un vuoto / nel cosmo / […] / Chi c’è, in quel vuoto del cosmo, / che tu porti nei tuoi desideri e conosci? / […] ma al posto dell’Altro / per me c’è un vuoto nel cosmo / un vuoto nel cosmo / e da là tu canti”.
[21] No original: “La mia compagna con la sua ansia, nell’aria tiepida della pioggia, / e la sua sete di grazia: acciecata per sempre –”. Conforme registrado em “Pasolini interpreta o Brasil, o Brasil interpreta Pasolini”, no dia 13 de março, na viagem de ida à Argentina, o avião que transportava o cineasta e sua comitiva fez um pouso de emergência no Recife. A parada inesperada deu origem a duas poesias: a já citada “Comunicato all’ansa (Recife)” e “Il piagnisteo di cui parlava Marx” (“A choradeira de que falava Marx”). De volta à Itália – na escala entre os dias 20 e 22, antes de seguir para Salvador por um dia –, o Rio de Janeiro, inspirou Pasolini a escrever “Gerarchia” (“Hierarquia”), o poema mais significativo dessa viagem, além de citá-lo em “Res sunt nomina” (e na nota que o acompanha) e numa rápida comparação com a capital grega nos versos iniciais de “Atene”. Ademais, na nota de rodapé de “La restaurazione di sinistra (III)”, há referências à Bahia e aos acontecimentos políticos daqueles anos no Brasil. Com exceção de “Res sunt nomina”, publicado em Empirismo eretico (Empirismo herege, 1972, as demais composições dedicadas ao Brasil integraram Trasumanar e organizzar.
[22] Vinda de uma exaustiva turnê mexicana, durante a qual sua performance na Aida (1870) havia arrebatado o público, Maria Meneghini Callas cancelou sua apresentação na ópera de Verdi, programada para inaugurar, em 28 de agosto, a temporada lírica paulistana. Pisará no palco do Teatro Municipal só em 7 de setembro, como a protagonista de Norma, conquistando os espectadores e, dois dias depois, como Violetta, em La traviata, sob a regência do maestro Serafin. No Rio de Janeiro, a soprano “encontra um ambiente inebriado com Tebaldi que chegara uma semana antes com La traviata” (segundo o “Post Maria Callas – Portugal e Brasil”). Estreou no Teatro Municipal, em 12 de setembro, com Norma, bem acolhida pelo público, mas decepcionou com Tosca, sendo substituída por Renata Tebaldi; apresentou-se, ainda, por duas noites, em La traviata. No dia 14, ela e a cantora italiana cantaram árias verdianas num concerto lírico beneficente, no qual não deveriam oferecer nenhum bis. Callas cantou “Sempre libera” (La traviata, primeiro ato, cena 5) e deixou o palco depois dos aplausos; Tebaldi entoou a “Ave Maria” (Otello, 1887, quarto ato, cena 2) e, diante da calorosa recepção, concedeu duas apresentações adicionais, conforme informa Gilberto Cruvinel. Isso irritou sua “rival”, que se desentendeu feio com o empresário brasileiro, quando foi pedir satisfações. Depois da temporada brasileira, segundo Beghelli, o antagonismo entre as duas sopranos prosseguiu, até que, em 1953, Maria Meneghini Callas conquistou de vez La Scala e Renata Tebaldi “refugiou-se” no Teatro San Carlo (Nápoles) e principalmente no Metropolitan Opera House.
[23] As aulas ministradas em Nova York embasaram o enredo da peça Master class (1995), de Terrence McNally, que se tornou um sucesso mundial. No Brasil, foi montada em 1996, com Marília Pêra, e, a partir de 2015, com Christiane Torloni.
[24] Observações: 1) a carta de Maria Callas, redigida num italiano às vezes precário, exigiu algumas interpretações e adaptações na tradução; 2. Grado é uma cidadezinha marítima do Friul, onde foram filmadas algumas sequência de Medea; 3. Ninetto Davoli, que, na ocasião, prestava serviço militar em Trieste (na mesma região), um par de vezes foi visitar Pasolini no set; 4. numa carta posterior, datada de 5 de setembro do mesmo ano, Maria defenderá a guinada que o jovem ator havia dado em sua vida: “Você dependia muito de Ninetto e isso não estava certo. Ninetto tem o direito de viver sua vida.”– conforme registrou Cosimo Capanni; 5. no endereço ao qual remeter a correspondência (“Draconizzi Petacci Marmari”), “Draconizzi” está por Tragonisi, a mesma ilha grega em que ela e Pasolini haviam passado as férias no verão anterior; 6. no fecho de suas cartas, “Sou sempre carinhosamente sua” era uma expressão usual; 7. em algumas cartas a soprano assinava-se “Maria (fanciullona)”, ou seja, “garotona”, talvez para contrapor-se a Pier Paolo que a via como uma “giovinetta”, isto é, “garotinha”, “jovenzinha” (ver nota 14); 8. o livro, ao qual ela se referiu no início da carta, é a primeira edição de Trasumanar e organizar (lançado em abril de 1971), que contém as poesias que o cineasta lhe dedicou; 6. ao escrever “mas nunca o considerei meu pai”, a soprano demonstrava não ter entendido o significado que Pasolini atribuiu ao termo “pai” nas poesias: mais do que um progenitor, um ser protetor (que ela buscava em seus relacionamentos com homens mais idosos), era uma entidade, fonte de autoridade, com a qual o escritor não se identificava, de onde o vazio cósmico presente em várias composições líricas.
[25] Contudo, para Dacia Maraini, Pasolini não teria se expressado muito sobre sua relação com Maria, o que a levou a lançar uma pergunta desafiadora: “Eu assisti a seu enamoramento, do qual você mesmo se surpreendia. Talvez por isso não escreveu sobre ele: suas teorias sobre a orientação homossexual teriam se tornado demasiado complicadas e contraditórias?”. É um questionamento que não se justifica, pois, nas poesias dedicadas a essa mulher singular, Pasolini travou uma batalha sem trégua com os próprios sentimentos mais íntimos despertados por ela, como já visto. Ademais, estava em jogo também a imagem pública do cineasta, que, como observou Cigni, “não corresponde mais àquela codificada de outrora”.
[26] Trata-se de dois versos da já citada poesia “L’anello”: “l’affetto si veste di sentimenti non suoi; / […] / le parole si fanno bugiarde; e la complicità / […] / viene imitata da una complicità ipocrita / in cui il non detto si finge non conosciuto”.
[27] Trata-se de quatro versos da já citada poesia “Timor di me?”: “ma il debole sorriso sfuggente / non è di timidezza / è lo sgomento, più terribile, ben più terribile / di avere un corpo separato, nei regni dell’essere –”.
[28] Esta poesia, a única a ser traduzida integralmente por não ser muito hermética, diz no original: “Ho un affetto più grande di qualsiasi amore / su cui esporre inutilizzabili deduzioni – / Tutte le esperienze dell’amore / sono infatti rese misteriose da quell’affetto / in cui si ripetono identiche. / Sono legato ad esso / perché me ne impedisce altri. / Ma sono libero perché sono un po’ più libero da me stesso. / La vita perde interesse perché si è ridotta a un teatro / in cui le fasi di questo affetto si svolgono: / e così ho perso l’ebbrezza di avere strade sconosciute / da prendere ogni sera / (al vecchio vento che annuncia cambiamenti di ore e stagioni). / Ma che ebbrezza nel poter dire: ‘Io non viaggio più’. / Tutto è monotono perché in tutto non c’è altro / che un certo luccichio di occhi, / un certo modo di correr un po’ buffo, / un certo modo di dire ‘Paolo’, e un certo modo / di straziare a causa della rassegnazione. / Ma tutto è messo in forse dal terrore che qualcosa cambi. / In ogni amore c’è una fusione tra la persona che si ama / e qualcun altro: ma ciò è naturale. Nell’affetto / ciò sembra invece così innaturale: / la fusione avviene a tali profondità / che non è possibile darne spiegazioni, trarne motivi / per congratularsi, comunque essa sia, della propria sorte. / La tenerezza che tale affetto impone / al profondo, non conduce a fecondare / né a essere fecondati, anche se per gioco; / eppure si soccombe ad esso / con lo stesso senso di precipitare nel vuoto / che si prova gettando il seme, quando si muore / e si diventa padri. Infine (ma quante altre / cose si potrebbero ancora dire!), / benché sembri assurdo, per un simile affetto, / si potrebbe anche dare la vita. Anzi, io credo / che questo affetto altro non sia che un pretesto / per sapere di avere una possibilità – l’unica – / di disfarsi senza dolore di se stessi”.
[29] A expressão petite mort refere-se a um intenso orgasmo feminino que pode levar a uma ausência momentânea de consciência. Nos dois versos finais da poesia, Eros e Thanatos voltam a estar presentes, mas em relação ao afeto, definido como a única possibilidade de “desfazer-se sem dor de si mesmos”. [30] A frase, embora tornada notória pelo escritor irlandês, não era de sua autoria, pois, na verdade, tratava-se do último verso do poema “Two loves”, escrito por seu jovem amante Lord Alfred Douglas, em setembro de 1892 (e publicado em dezembro de 1894, em Oxford, pela revista The chameleon): “I am the love that dare not speak its name” (“eu sou o amor que não ousa dizer seu nome”),
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA