A extrema-direita da América Latina

Imagem: Hernán Nikolajezyk
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Por FRANCISCO LOUÇÃ*

Milei, no estilo, é imitação superlativa de Trump e Bolsonaro; no conteúdo, é portador de um liberalismo arrasador. No fim das contas, é uma prova de que o liberalismo se tornou a extrema-direita na AL

Anarcocapitalista, diz-se ele. Javier Milei é o surpreendente – e distanciado – vencedor das eleições primárias argentinas e pode vir a ser o seu próximo presidente. No estilo, é uma imitação superlativa de Donald Trump e Jair Bolsonaro, que diz admirar: exibicionista, histriónico, reclama ter poderes salvíficos (Jair Bolsonaro não era aclamado como “Messias”?), fez carreira na televisão, e isso é o caminho para o sucesso nestes tempos.

No conteúdo, é portador de um liberalismo arrasador, anuncia que acabará com os Ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Social, fechará o Banco Central, abolirá a moeda nacional e adotará o dólar e promoverá a venda livre de armas. O que pergunto é como é que o liberalismo se tornou a extrema-direita da América Latina?

Os Chicago boys

Uma primeira resposta está na história recente. A América Latina foi uma das regiões com maior envolvimento de instituições norte-americanas na formação neoliberal das elites, fazia parte da Guerra Fria. No início da década de 1960, o Chile não tinha mais de 120 economistas; em duas décadas, a Universidade de Chicago criou a coluna vertebral de uma nova política económica. Arnold Harberger, o acadêmico que dirigiu este processo de transformação do ensino e de seleção de quadros no Chile e na América Latina, gabava-se de ter formado 300 dirigentes, entre os quais 70 ministros e 15 presidentes de bancos centrais. “A boa economia chega à América Latina” é o título modesto de uma sua publicação.

Sucesso notável: formou Sergio Castro, o ministro da Economia (1974-76) e depois das Finanças (1977-82) da ditadura de Pinochet; no Ministério do Planeamento estava outro dos seus alunos, e não eram os únicos. O resultado é conhecido: as empresas públicas foram vendidas (exceto as minas, oferecidas a generais) e a Segurança social foi privatizada (faliu uns anos mais tarde e teve de ser nacionalizada).

Foram nisso entusiasticamente apoiados pelos gurus do liberalismo europeu e norte-americano. Friedrich Hayek visitou duas vezes o Chile de Pinochet e desdobrou-se em elogios à ditadura, e Milton Friedman, a poucos meses de receber o Nobel, lá esteve a pajear o ditador. Foram recebidos em festa pelos seus discípulos que estavam no governo. Arnold Hagerberg, no terreno, garantia que não havia razão para preocupações com direitos humanos, dado que a embaixada dos EUA, que tinha ajudado a preparar o golpe militar, lhe tinha dito que havia “zero desaparecimentos”. O liberalismo contra as liberdades foi um bom negócio.

Na Argentina, o programa de Chicago teve mais dificuldades. Mas a ditadura também precisou da mesma receita: Martínez de Hoz, o ministro neoliberal da Junta Militar (1976-81), seguiu uma rígida política monetarista e congelou os salários, conquistando o apoio do FMI. Um governo peronista liberal, o de Carlos Menem, deu novo fôlego a esse programa: foi buscar o presidente do Banco Central na ditadura, Domingos Cavallo, e deu-lhe primeiro o Ministério dos Estrangeiros e depois o da Economia.

Domingos Cavallo dolarizou o país, o que Javier Milei agora promete, arruinando os salários e as pensões, entregou a petrolífera nacional à Repsol, a Aerolineas Argentinas à Iberia e a companhia dos telefones à France Telecom e à Telefónica espanhola. No Chile como na Argentina, o avanço do liberalismo destruiu as economias e enriqueceu intermediários, ministros e investidores.

O mercado no seu esplendor

Javier Milei, que tem uma curta carreira política e um partido insignificante, depende exclusivamente da sua tonitruência para aproveitar os vazios criados pela crise social e pela decadência dos partidos tradicionais. E aqui está uma segunda resposta para esta extrema direitização do neoliberalismo latino-americano: cresce na tragédia social.

Todos os ingredientes estão montados: o ex-presidente Mauricio Macri (2015-19) negociou com o FMI um empréstimo de 44 mil milhões de dólares com condições drásticas, e o efeito é uma inflação de 100%, mais uma desvalorização de 22% na semana passada, taxas de juro a 118% e os salários a desaparecer. O governo peronista que se lhe seguiu não quis reverter este caos e o descontentamento popular explodiu.

É aí que aparece Javier Milei. Cavalga o ressentimento com frases simples: “Considero o Estado como um inimigo; os impostos são uma marca da escravatura. O liberalismo foi criado para libertar as pessoas da opressão dos monarcas; neste caso, do Estado.” Promete, portanto, o desmantelamento do Estado e libertar o mercado. Admite a venda de órgãos humanos (o corpo é propriedade), já sugeriu a venda de crianças (os pais são seus proprietários), e adianta medidas mais singelas, como a liberalização total dos despedimentos.

Liberal mas não tanto: defende a proibição do aborto, que foi recentemente legalizado no país, é negacionista climático, “o aquecimento global é outra das mentiras do socialismo”, e detesta o Papa Francisco, um “jesuíta que promove o comunismo”, o mix que já se descobriu noutros dos novos políticos liberais e autoritários.

Quem lê estas linhas não estranhará os temas. No mercado da extravagância, em Portugal, a extrema-direita já propôs em 2019 o fim dos serviços públicos de Educação e Saúde, e o mandatário nacional do Chega defendeu a liberalização do trabalho infantil e a compra e venda de votos. Talvez a Argentina volte a lembrar que tudo é possível nas trevas do desespero social.

*Francisco Louçã é conomista, foi coordenador do Bloco de esquerda de Portugal (2005-2012). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas: a cultura do capitalismo tardio (Cotovia).

Publicado originalmente no site Equerda.net.


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