Por JOÃO TELÉSFORO MEDEIROS FILHO*
A alternativa proposta pelo Furtado maduro para o Brasil e demais países periféricos não consistia em percorrer o mesmo rumo das nações “desenvolvidas”
O pensamento de Celso Furtado é tributário do novo ambiente cultural e intelectual constituído pelo Modernismo brasileiro, que teve em Recife, onde o então mancebo paraibano estudou, um de seus principais e pioneiros centros de articulação (desde antes, inclusive, da célebre Semana de Arte Moderna de 1922). Já não se tratava mais de considerar o Brasil como predestinado a uma posição atrasada e subordinada diante das nações europeias, segundo afirmavam as teorias racistas com forte influência inclusive entre economistas liberais-conservadores, que atribuíam os nossos males aos componentes majoritariamente negro, indígena e miscigenado de nossa população. As novas gerações de artistas e intelectuais imbuíam-se da convicção de que a cultura popular brasileira tinha contribuições originais a oferecer ao mundo, e que nosso país encontraria em si mesmo, na mobilização e criatividade de suas gentes, a seiva para a superação do subdesenvolvimento, da fome, do analfabetismo, da desigualdade e da condição periférica no mundo.Não existiria a obra de Celso Furtado sem essa visão e esse sonho vibrante de Brasil que envolveu sua geração, da música à engenharia, das artes plásticas ao teatro, da literatura à economia, da educação à política.
A contribuição original e maiúscula de Furtado ao pensamento econômico tampouco seria possível fora do contexto social e econômico em que foi elaborada, marcado pela marcha acelerada da industrialização brasileira, a partir da década de 1930, e por crescente organização e politização progressista e radical dos movimentos de trabalhadores, no campo e na cidade, bem como da juventude, de setores da Igreja e até mesmo de parte das Forças Armadas(de Prestes até, por exemplo, a revolta dos marinheiros, em 1964). Celso e outros grandes intelectuais brasileiros de sua época foram capazes de pensar o movimento do real porque o real estava em movimento.
“É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de trabalhar escrupulosamente para a realização das nossas fantasias”, dizia Lênin. A vida do economista de Pombal, que intitulou seu livro autobiográfico de “Fantasia organizada”, é caso de aplicação disciplinada da recomendação do líder bolchevique. O elemento imaginativo da obra furtadiana não consiste em divagações etéreas, mas na análise rigorosa da realidade social, o que exige desvelar também as contratendências contidas nela e as possibilidades latentes de sua transformação. Expoente do método histórico-estrutural de interpretação da formação econômica brasileira, avesso a explicações estáticas e deterministas do subdesenvolvimento do Brasil (e também, em particular, do Nordeste), Furtado procurou detectar e formular caminhos concretos que pudessem conduzir à superação dessa condição.Algumas de suas contribuições mais conhecidas nesse sentido foram a criação da SUDENE e a experiência como Ministro do Planejamento de João Goulart, quando elaborou o “Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social”.
Captar a dinâmica das estruturas econômicas brasileiras, isto é, o modo como se formaram e se transformaram na história – à luz da inserção periférica e dependente do país na economia mundial, bem como dos arranjos de podere estratificação social internos –, segue fundamental, no plano científico, para não sermos reféns de modelos econométricos que trabalham com esquemas abstratos a-históricos, a partir de premissas metafísicas sobre a natureza humana. No plano político, o método furtadiano é antídoto para não capitularmos nem ao fatalismo derrotista que ignora as possibilidades de mudança estrutural da economia, nem ao voluntarismo panfletário,que não se preocupa em analisar e conceber os modos específicos segundo os quais essas mudanças se deram e podem se dar.
Alguns dos comentários sobre a obra de Furtado compreendem seu mérito em captar a dinâmica do processo histórico, mas por vezes ignoram o dinamismo de seu próprio pensamento. Valorizam, com toda razão, sua preocupação com o progresso técnico, a industrialização e o desenvolvimento tecnológico, a “internalização dos centros de decisão”, a redução de desigualdades sociais e assimetrias regionais. Parecem desconhecer, entretanto, como sua reflexão sobre o desenvolvimento amadureceu ao longo de suas obras. Veja-se, por exemplo, o livro “O mito do desenvolvimento econômico”, escrito em Cambridge em 1974. Com a palavra, o mestre Furtado:
“o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. Temos assim a prova definitiva de que o desenvolvimento econômico – a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas como negar que essa ideia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de forma de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento”.
Ao contrário do que supõem muitos, portanto, Furtado não foi um “desenvolvimentista” ingênuo, a supor que a industrialização fosse o remédio para todos os nossos problemas. O que ele recusava, nesse tema, era o mito liberal de que seria mais eficiente seguirmos como nação primário-exportadora, com economia dirigida desde fora.Nem por isso sua obra consistiu, no entanto, em defesa acrítica do modelo de industrialização por substituição de importações. Pelo contrário, analisou-o criticamente, apontando as desigualdades sociais e regionais do nosso padrão industrial e como ela gerava inclusive estrangulamentos ao crescimento econômico; mais tarde, tornou-se crescentemente atento também à destruição do meio ambiente, de culturas e modos de vida de povos considerados “arcaicos” (como os indígenas) pelo ímpeto capitalista de nos transformar a todos em produtores-consumidores de mercadorias.
A alternativa proposta pelo Furtado maduro para o Brasil e demais países periféricos não consistia em percorrer o mesmo rumo das nações “desenvolvidas”, reproduzindo seu modo predatório de produção e consumo e seus problemas sociais. Não se trata de propor que o Brasil procure simplesmente alcançar o nível de renda ou de desenvolvimento tecnológico desses países, conforme a pobre visão quantitativa que predomina nos cursos de Economia, no noticiário econômico e nos discursos dos políticos. Trata-se de concebermos, à luz da nossa riqueza cultural, da pluralidade de povos que aqui habitam e de modo intensamente democrático, um projeto próprio de sociedade, e de criarmos as condições para sua materialização – com inovação tecnológica, sim, mas enfeixada a esse projeto, a esse sonho coletivo, e não aos imperativos do capital, concentrado em centros de decisão e de acumulação exteriores ao país (e, no seu interior, em regiões específicas e nas mãos de poucos). “O mais importante é inventar o Brasil que nós queremos”, disse Darcy Ribeiro, em frase que poderia ser subscrita pelo nosso homenageado.
Cabe dizer, por fim, que os inimigos de Furtado estão no poder. As doutrinas e forças sociais que ele combateu por toda a sua vida governam hoje o Brasil, conduzindo a nação ao precipício, radicalizando a exploração de trabalhadores e trabalhadoras do campo e das cidades, o massacre e extermínio dos povos indígenas, da população negra das periferias e favelas, destruindo como nunca o meio ambiente, em sanha fanática pelo lucro acima de tudo.
E os herdeiros do pensamento e da trajetória do mestre paraibano, onde estão? Nesta hora difícil, que as homenagens ao seu centenário, como a do recente cordel publicado por um grupo de sertanejos na Paraíba, sejam um canto alto de convocação para seu reencontro combativo, com as armas furtadianas: sonhos generosos, lucidez crítica, pensamento grande, espírito público e confiança inquebrantável na força de luta e na inventividade do povo brasileiro, e em particular sertanejo e nordestino. Encerro, pois, com os versos finais da “Balada para los poetas andaluces de ahora”, do poeta Rafael Alberti:
“¿No habrá ya quien responda a la voz del poeta?
¿Quién mire al corazón sin muros del poeta?
¿Tantas cosas han muerto que no hay más que el poeta?
Cantad alto. Oiréis que oyen otros oídos.
Mirad alto. Veréis que miran otros ojos.
Latid alto. Sabréis que palpita otra sangre.
No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo.
encerrado. Su canto asciende a más profundo
cuando, abierto en el aire, ya es de todos los hombres”.
*João Telésforo Medeiros Filho é doutorando em Direito Econômico e Financeiro na Universidade de São Paulo.
Publicado originalmente como posfácio do cordel “Os cem anos do Furtado vamos todos celebrar!”.