Por VICTOR SANTOS VIGNERON*
Considerações a partir das reflexões de Paulo Emílio Salles Gomes sobre esses dois gêneros cinematográficos
Talvez se possa chamar de quiproquó a cadeia de acontecimentos que levou Paulo Emílio Salles Gomes a ser indicado para a banca de doutorado de Mário Arturo Alberto Guidi, em 1973. Hoje talvez se falasse em “transdisciplinaridade”, afinal Paulo Emílio era um conhecido crítico de cinema e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, ao passo que Guidi defendida, no Instituto de Psicologia da mesma universidade, a tese Desenvolvimento de uma técnica instrumental: registro cinematográfico do comportamento de Atta sexdensrubropilosa, Forel 1908.
Em suma, o trabalho continha um filme acerca da vida da saúva-limão, o que justificaria a presença de um especialista em cinema. Contudo, o roteiro da arguição de Paulo Emílio, depositado na Cinemateca Brasileira, revela o insólito da ocasião. Diante de seus parcos recursos intelectuais para discorrer diretamente sobre o tema, o arguidor ocupou-se numa exposição geral sobre o cinema científico, demorando-se em figuras como Jean Painlevé e Benedito J. Duarte.
É curiosa, logo no início do documento, a necessidade de justificação perante a descoberta da saúva como personagem. Com esse objetivo, Paulo Emílio percorre sua memória com o objetivo de localizar-se em relação ao tema, passando por três evocações: (a) Infância – evocação gastronômica: num momento em que o vale do Pacaembu, em São Paulo, ainda era baldio, Paulo Emílio saía à cata de içás e tanajuras para comer. Momento de domínio completo sobre as saúvas. (b) Adolescência – evocação intelectual: o contato com a literatura (Lima Barreto, Mário de Andrade) tornou as saúvas uma “questão de segurança nacional” (fórmula usada no texto, em referência à ditadura). Paulo Emílio adquire uma “consciência amena do atraso”, nos termos de Antonio Candido (Literatura e subdesenvolvimento, 1973). (c) Juventude – evocação militante: momento em que Paulo Emílio empreende uma tentativa de eliminar as formigas num sítio (tomando nas mãos o problema literário) mas esbarra na resistência das saúvas, verdadeiras “vietcongues” (outra expressão deslocada para o presente). Passagem a uma consciência mais aguda do atraso.
Como acontece em outros textos de Paulo Emílio, as memórias funcionam como caixa de ressonância para problemas mais amplos. A formação do autor repercorre o caminho, nada linear, da construção de uma consciência intelectual que acrescenta ao uso utilitário-compensatórioda paisagem (a exuberância como alimento da literatura ufanista) diferentes graus de percepção do atraso.
A esse respeito, Paulo Emílio afirma, num texto célebre publicado pouco depois da arguição, que “em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado” (Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, 1973). Importa reter aqui a temporalidade implícita nessa afirmação, a angustiantepercepção da resistência do atraso, que contrasta com o relativo otimismo da época em que o autor inventariava os problemas do cinema brasileiro em termos de “situação” (Uma situação colonial?, 1960). O esforço para diferenciar a configuração do tempo anuncia a procura de outras maneiras de agir.
O problema do atraso também acompanha a história do cinema brasileiro. A esse respeito, Paulo Emílio (A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro, 1974) nota a marca deixada pelo tema do “berço esplêndido” no início da produção nacional, forma tão irrisória quanto recorrente de compensar a miséria do país. Anos depois, sem intenções polêmicas, teria lugar o deslocamento dessa temática para o habitante do interior, fato que gerou o repúdio da melhor crítica cinematográfica nacional, que deplorava a imagem negativa que se fazia do país. País mais negro, mais indígena, mais pobre.
Uma prevenção semelhante, sempre segundo Paulo Emílio, pairava sobre os filmes “caipiras” de Humberto Mauro produzidos no fim dos anos 1920 (Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, 1974). Muito antes do Cinema Novo, portanto, o intelectual paulista ou carioca escandalizava-se diante da representação do país como “sertão”. E pedia providências para normalizar o fluxo das imagens. Assumia, enfim, o papel desempenhado por Paulo Emílio em sua evocação militante, papel de ocupante.
Mudemos de escala.
A Transamazônica
“A Transamazônica não passa de uma gigantesca operação ‘primitiva’, reproduzindo a experiência da Belém-Brasília, no que para alguns românticos ‘à la Malraux’ é uma saga; o Brasil seria, assim, o único lugar do mundo – depois da desmoralização de Hollywood – onde a vida ainda se desenrola em termos epopeicos, muito próprios para as tomadas em eastmancolor de Jean Manzon” (Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista, 1972).
Publicada quase no limiar do “milagre econômico” brasileiro, essa passagem não interessa apenas pelo seu tema imediato – a atualidade da “acumulação primitiva” em plena modernização capitalista –, mas também por definir uma maneira de representá-lo. A evocação de André Malraux, autor de livros empenhados como A condição humana (1933) e A esperança (1937), estabelece um parâmetro ambíguo; esse “romântico gaullista”, recém-derrotado na França, marca com certo ecumenismo político a providência estética que transforma o avanço sobre a Amazônia em saga. O “Brasil Grande”, enfim, que se revelava a cores (de segunda categoria: eastmancolor) nas reportagens de Jean Manzon.
Em que pese a recente valorização historiográfica desse tipo de material, os cinejornais produzidos por figuras como Manzon e Primo Carbonari deixaram uma má impressão na crítica de sua época:
“Somos condenados a Primo Carbonari. A essa pena pesada e hebdomadária alguns cinemas acrescentam às vezes uma dose de Jean Manzon. Não vamos reiniciar a clássica discussão, já acadêmica, sobre qual deles é o pior. O assunto evoluiu e hoje os melhores especialistas estão concordes em que um paralelo entre Carbonari e Manzon não tem sentido, pois é diversa a natureza da ruindade de cada um deles. Manzon é o ruim da classe internacional, ao passo que Carbonari é o ruim subdesenvolvido. Em suma, Carbonari é o pior cineasta brasileiro e Manzon é o pior do mundo” (Paulo Emílio Salles Gomes, O Primo e a prima, 1963).
No mesmo ano, Glauber Rocha escrevia: “O documentário brasileiro sempre foi a burrice dos propagandistas comerciais fartamente paga pelo Estado; sempre a falsificação de Jean Manzon, que goza de amplo prestígio junto às nossas maiores autoridades” (Glauber Rocha, Revisão crítica do cinema brasileiro, 1963).
Com uma diferença de dez anos, Francisco de Oliveira retoma a “clássica discussão” em torno da ruindade de Manzon, ressaltando a vitalidade de um padrão estético e econômico: a epopeia da Transamazônica, marco do governo Médici, reproduzia a saga da Belém-Brasília, marco do governo JK. E fundiam-se assim as duas tendências básicas que Paulo Emílio observou no primeiro cinema brasileiro, “berço esplêndido” e “rituais de poder”. As torturantes doses de cinejornais que precediam as sessões de cinema pelo país eram ainda mais angustiantes por denunciar involuntariamente a continuidade e o aprofundamento de um mecanismo econômico e estético posto em movimento antes do Golpe de 1964.
Houve alternativas no plano estético. A passagem acima transcrita, em que Glauber Rocha desanca Manzon, precede a apresentação de Linduarte Noronha e de seu curta-metragem Aruanda (1960). É difícil estabelecer a importância desse filme para o cinema brasileiro, uma vez que sua circulação foi extremamente restrita. Contudo, Aruanda ajudou a sentar as bases para uma pesquisa estética que se queria articuladaà paisagem e à realidade social brasileira e que teria no Cinema Novo uma de suas formulações mais acabadas.
Ao representar a trajetória de uma pequena comunidade no interior da Paraíba, o filme institui uma configuração temporal contrastante em relação à inauguração de Brasília, principal lance da estética desenvolvimentista. Estética esta que institui uma relação específica com a velocidade, uma dromologia (Paul Virilio, Guerra e cinema, 1986). Ao mesmo tempo, a fatura precária do filme de Noronha foi assumida como aspecto positivo por parte de críticos como Glauber Rocha, Paulo Emílio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet. Para este, a fotografia instável de Rucker Vieira denunciaria a presença da equipe de filmagem na Serra do Talhado. Posição em tudo diversa da tentativa de ocultação das tomadas em eastmancolor de Manzon.
Nos anos 1970, ocorreria um reposicionamento da intelectualidadede esquerda em torno da relação entre a realidade nacional e sua representação. Diante do avanço avassalador do Estado sobre o cinema, atividade bastante dependente do financiamento em larga escala, tornavam-se mais claros os dilemas em que se encontravam os cineastas. O que não significa que materiais como os de Manzon tenham sido normalizados. Novas experiências se deram no sentido de assumir o sonho do “Brasil Grande” de uma forma deslocada.
Tião Brasil Grande (interpretado por Paulo César Pereio), caminhoneiro gaúcho que vai pela Amazônia em busca de toras, é uma peça central da paródia encenada em Iracema: uma transa amazônica (1974). Mas talvez o maior índice do distanciamento em relação aos projetos acalentados pelos cineastas críticos dos anos 1960 viria nas décadas seguintes, com a lenta recomposição de experiências, hipóteses e diálogosque incidiria em filmes como Conversas no Maranhão (1983), Cabra marcado para morrer (1984) e Conterrâneos velhos de guerra (1990). Já não se tratava de produzir nos termos de uma “estética da fome” (título de um manifesto publicado por Glauber Rocha em 1965), mas de incorporar no cinema o resto de um outro país, ora ocultado ora polido no âmbito da intensa depuração estética promovida pela televisão brasileira entre os anos 1970 e 1980.
A essa altura, a superação de Manzon finalmente se realizava, mas isso trazia o gosto acre do triunfo da imagem televisiva. Do cinema à TV, o espectador era finalmente integrado à nação moderna, sem os ruídos provocados por vínculos comunitários ou políticos. Não me parece secundário, nesse contexto, que certa memória da resistência à ditadura tenha cristalizado a ideia de que o arbítrio do regime se voltava contra o cidadão qualquer, como ocorre em Pra frente Brasil (1982).
A descontextualização da repressão (no filme em questão, ela é desvinculada do próprio Estado) era sintoma da dificuldade mais ampla de passar por uma transição democrática que institucionalizava a integração estética do país, onde o todo era inflado e a margem era reduzida a distração. A Embrafilme se tornaria descartável em 1990, a Embratur não. Um cantor muito integrado a esse novoecossistema, Eduardo Dusek, forneceu uma das imagens mais cristalinas desse volteio na canção “O problema do Nordeste (Caatingatur)”. O refrão “O sertão vai acarpetar, acarpeta logo o sertão”, faz convergir os preconceitos da Zona Sul carioca com o tema musical sumamente conhecido, “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”, aliás utilizado por Glauber Rocha no fim de Deus e o diabo na terra do sol (1964).
A savanização do berço esplêndido
O sacrifício do cinema brasileiro de longa-metragem no início dos anos 1990 recolocou o debate em torno dos custos e do modelo de financiamento da produção nacional, no espírito de planilha que se perpetuou nas eleições seguintes. Grosso modo, a recomposição da produção foi de par com a recolocação do Estado nesse setor. No entanto, o país a ser filmado já não era o mesmo, e a produção de imagens tinha que se dar com a obsolescência progressiva do padrão estético televisivo (o contraste entre perfeição e vazio) e com a savanização do berço esplêndido.
A hipótese da “fotogenia tropical”, que calcou tanto a ideia de “Brasil Grande” quanto a “estética da fome”, foi inviabilizada na base pelo próprio processo de modernização, que evidenciou o caráter finito dos recursos audiovisuais mais fundamentais, a paisagem, seus habitantes. O que acontece quando o cinema se defronta com esse estado danificado de coisas?
Pensando nessa questão, recorro a um gênero em desuso, a recensão dos principais filmes da temporada, para refletir sobre possíveis respostas que foram aventadas no distante ano de 2019. Evidentemente, deixo muita coisa de fora e submeto os filmes a uma problemática bem específica.
Bacurau
É sintomático que o filme tenha sido enquadrado nos jornais com referência aos anos 1960, afinal, a imagem do sertão que vemos ali pareceacenar com uma tradição “clássica” (os filmes sertanejos de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, para ficar na gênese do Cinema Novo). De fato, sabe-se que a produção aguardou a estiagem para dispor dessa imagem “típica” (na verdade, sazonal).
Mas entre Glauber Rocha e Kleber Mendonça Filho os parâmetros visuais estão tão distantes quanto suas referências explícitas, John Ford e John Carpenter. Há ainda uma reversão de expectativas: Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol deslocavam-se para o passado para tratar de um presente atrasado, denúncia que acena para a ideia de revolução; em Bacurau, o futuro danificado, tão familiar, sugere antes a urgência de interrompermos a marcha do progresso. Resta saber se o sertão constitui um signo dramático pertinente para o debate proposto por Kleber Mendonça Filho. Já nos anos 1960, Jean-Claude Bernardet e Roberto Schwarz levantavam dúvidas a esse respeito.
Divino amor
Enquanto o país passava pela transição democrática, emergia silenciosamente uma personagem que a certa altura se tornaria onipresente nas papelarias do país. Muito distante da saúva-vietcongue descrita por Paulo Emílio, Smilinguido imprimia em cadernos, tirinhas e livros uma certa militância cristã que se ajustava a uma configuração estética nada indiferente à emergência do registro digital e dos bancos de imagens.
Divino amor talvez seja uma tentativa sistemática de incorporação dessa visualidade que recendede um novo padrão construtivo (onde o azulejo dissolve a oposição entre favela e mansão), de uma nova disciplina corporal (impensável que uma personagem cuspa no chão) e de um controle absoluto dos objetos (o plástico talvez seja o emblema dessa contenção aplicada às coisas). No filme Ex-pajé (2018) essa construção estética tem como palco um corpo disciplinado e como configuração temporal a ruptura com o passado.
Estou me guardando para quando o carnaval chegar
A escansão da letra de Chico Buarque, que torna o título cansativo, reproduz em miniatura o movimento geral do filme, que muitas vezes acompanha o tempo homogêneo e vazio da fábrica, dispensando elipses que tornariam a narrativa mais fluida. Com isso se afirma a opacidade da operação autoral que procura interromper certa forma automatizada de fruição do filme (Bacurau, nesse sentido, seria o caso oposto, extremamente elíptico).
Contudo, esse traço autoral pode conviver com tendências que resistem à recusa do diretor Marcelo Gomes em fechar um sistema interpretativo. Daí o choque entre o princípio de desconfiança do diretor e a emergência de Léo e suas sentenças, que procuram dar algum sentido às imagens. A passagem da câmera às mãos de Léo (operação também marcada pelo contraponto no tratamento das imagens, no manuseio do equipamento etc.) talvez exprima um cinema que recua ao ponto do qual praticamente não saiu em nosso país, um modo de produção que tem muito mais continuidade com a regressão do capitalismo de Toritama e com a experiência seus habitantes.
*Victor Santos Vigneron é doutorando em história social na USP.