Institutos Federais: quinze anos de avanços e contradições

Imagem: Stacey Koenitz R
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

As tensões entre conquista da cidadania e interesses capitalistas nos Institutos Federais

Os institutos federais, criados há quine anos, constituídos a partir das estruturas dos antigos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) e das demais instituições federais de ensino técnico, vêm sendo a principal política no que se refere à oferta da educação profissional pública no Brasil. Criadas por meio da lei 11892, de 29 de dezembro de 2008, essas instituições tem entre seus objetivos a formação do trabalhador, por meio da qualificação profissional, ofertando cursos em diferentes modalidades de ensino. A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, formada por 38 Institutos Federais, 2 CEFETs e outras instituições públicas, está distribuída em 661 campi, localizados em 578 municípios, ofertando cerca de 12 mil cursos em todo o Brasil. Nos discursos e documentos governamentais, essa qualificação e, por conseguinte, a inserção dessa força de trabalho no mercado seriam exemplos de conquista de certa cidadania por parte da classe trabalhadora.

O discurso de inserção cidadã do trabalhador está calcado fundamentalmente numa concepção positivista de integração da força de trabalho à esfera produtiva, promovida pelo Estado. O papel da educação, nesse caso, passa por auxiliar esses trabalhadores a se integrarem ao processo de produção e colaborar para o desenvolvimento da sociedade. Para tanto, os institutos federais procuram responder às demandas econômicas locais, ou, em outras palavras, como se pode verificar nos discursos oficiais, os chamados arranjos produtivos locais (APL). Com isso, a pretensa conquista da cidadania por esses trabalhadores passa pelo treinamento técnico para o trabalho com vistas a responder aos interesses dos capitalistas de cada cidade ou região em que estão instalados os campi dos institutos federais.

Em sua maior parte, as vagas oferecidas nos institutos federais estão direcionadas para cursos técnicos de nível médio ou para os cursos superiores de tecnologia. Esses cursos se propõem a formar uma força de trabalho que, no processo de produção, se encontra numa posição intermediária, servindo de porta-voz e decodificador das determinações provenientes da direção da empresa. Na atual configuração da divisão do trabalho, esses profissionais exercem a função de coordenação e supervisão, controlando diretamente o trabalho daqueles que se encontram em tarefas de execução.

Na sociedade capitalista, onde a ciência e tecnologia estão intrinsecamente ligadas à produção, a divisão do trabalho atinge um grande grau de fracionamento, no qual “nem os operários podem mais dar conta de tarefas que não sejam aquelas estritamente delimitadas para execução, nem tampouco vale a pena, do ponto de vista empresarial, admitir um engenheiro para funções que não exigem esse grau de qualificação”.[i] Para diminuir esse fracionamento, com vistas a articular o ato de planejar e o ato de executar, cabe ao técnico, “dominando elementos, ao mesmo tempo, do trabalho manual e do trabalho intelectual, servir de ponto de ligação entre estes e, deste modo, contribuir para a aplicação mais eficaz das contribuições da ciência e da administração”.[ii]

O comprometimento da educação profissional, de forma geral, e dos institutos federais, em particular, com a lógica do capital fica mais evidente quando se analisa sua legislação específica. Conforme afirma na lei que criou os institutos federais, essas instituições têm por finalidade, entre outras, “orientar sua oferta formativa em benefício da consolidação e fortalecimento dos arranjos produtivos, sociais e culturais locais, identificados com base no mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural no âmbito de atuação do Instituto Federal”.[iii] Nessa lógica, além do ensino voltado aos interesses imediatos dos capitalistas locais, as ações de pesquisa, extensão e inovação devem responder às demandas econômicas regionais.

O conceito de arranjos locais, em suas diferentes dimensões previstas na lei, foi um dos fundamentos das políticas relacionadas à expansão dos institutos federais. Esses arranjos produtivos podem ser entendidos como “aglomerações de empresas localizadas em um mesmo território, que apresentam especializações produtivas e mantém algum vínculo de articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com outros atores locais”, incluindo diferentes empresas e instituições, como “fornecedores especializados, universidades, associações de classe, instituições governamentais e outras organizações que proveem educação, informação, conhecimento e/ou apoio técnico”.[iv]

Portanto, ao buscar responder às demandas apresentadas pelos grupos empresariais locais, os institutos federais colocam seu escopo a serviço dos interesses dos capitalistas das regiões em que estão instalados os campi das instituições. Se levado em conta o ponto de vista da força de trabalho, ela está sendo qualificada para atender as necessidades econômicas imediatas dos capitalistas, não havendo, portanto, apesar dos discursos oficiais, quaisquer perspectivas de conquista de cidadania ou mesmo de satisfação profissional. Essa busca pela cidadania associada ao trabalho se evidenciou em documento que definiu as diretrizes da educação profissional de nível técnico, quando afirmava: “Os cursos de Educação Profissional Técnica de Nível Médio têm por finalidade proporcionar ao estudante conhecimentos, saberes e competências profissionais necessários ao exercício profissional e da cidadania”.[v]

Nessa perspectiva, o conhecimento e o exercício profissionais estão associados de forma direta à ideologia da conquista cidadania. Esta é entendida, no contexto da educação profissional, “como o ato de o homem se constituir como homem entre outros homens e como homem que, com os outros, constrói o mundo humano, material e simbólico em que subsiste”.[vi] Nessa concepção, “constituir-se cidadão é se assumir protagonista do processo histórico”, lutando “por seu país, sua cidade, pelo bairro onde está, participa politicamente da vida, não aceita perder conquistas já efetuadas, cobra salário digno para aquilo que faz, exige justiça para si e para os outros”.[vii] Percebe-se que nessa concepção enfatizam-se somente direitos políticos e civis, ou seja, resume-se a cidadania à conquista de espaços dentro da democracia liberal, construída a partir do final do século XVIII.

Essa concepção, portanto, ignora o antagonismo estrutural de classes da sociedade capitalista e de que forma ele determina os diferentes direitos políticos e sociais. Essa ideia de cidadania está marcada pelas desigualdades econômicas, desde a Antiguidade, onde “a principal separação econômico-social, entre homens livres e escravos, era clara e diretamente refletida na definição da condição de cidadania política”.[viii] No capitalismo, a separação econômico-social está oculta em discursos de igualdade e reformas do sistema político e econômico. Mas, como se percebe pela própria dinâmica econômico-social, “a batalha para a extensão generalizada da cidadania social não pode existir sem a alteração radical da política econômica governamental”, ou, mais precisamente, “a universalização dos direitos sociais estendidos até a erradicação da miséria exigiria política econômica radical que afetaria os interesses privados capitalistas”.[ix]

Nos documentos que embasaram nos últimos quinze anos a educação profissional, observa-se o quanto a retórica da cidadania está enraizada. Em texto que discute as concepções da criação dos institutos federais, afirma-se que a educação profissional é considerada “fator estratégico não apenas na compreensão da necessidade do desenvolvimento nacional, mas também como um fator para fortalecer o processo de inserção cidadã para milhões de brasileiros”.[x] Trata-se, segundo o documento, de um “projeto progressista”, onde a educação é entendida “como compromisso de transformação e de enriquecimento de conhecimentos objetivos capazes de modificar a vida social e de atribuir-lhe maior sentido e alcance no conjunto da experiência humana, proposta incompatível com uma visão conservadora de sociedade. Trata-se, portanto, de uma estratégia de ação política e de transformação social”.[xi]

Pode-se verificar, assim, que a concepção difundida da educação profissional afirma que esta é um fator de transformação social, embasada na busca pela cidadania, resumida como conquista de emprego e salário, determinantes nessa suposta emancipação social. Os institutos federais, assim, tornam-se espaços onde são recebidos aqueles que estão supostamente “excluídos”, para, a partir da oferta de cursos rápidos de qualificação profissional, “incluí-los” na sociedade por meio da inserção dessa força de trabalho extremamente barata na esfera da produção. Dessa forma, o Estado, por meio da educação pública, colabora com o processo de reprodução do capital, ao assumir como uma de suas responsabilidades não apenas a qualificação profissional básica do trabalhador como a mediação junto aos capitalistas locais e regionais.

Portanto, ainda que os institutos federais apresentem em seus discursos contribuir para a transformação social, não colocam em seu escopo a superação do capitalismo. Seu projeto de mudança social se refere a uma melhor inserção da força de trabalho no processo de produção e reprodução do capital, apresentando a retórica de cidadania e de progresso social. Nesses discursos, estão longe a revolução e a superação do capitalismo, únicas formas de efetiva ruptura e transformação radical da sociedade.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] MACHADO, Lucília de Souza. Educação e divisão social do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1989, p. 80.

[ii] MACHADO, Lucília de Souza. Educação e divisão social do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1989, p. 81.

[iii] BRASIL. Lei Nº 11892, de 29 de dezembro de 2008.

[iv] MATTIODA, Eliana. APL’s de sucesso: estudo de caso de três Arranjos Produtivos Locais do Rio Grande do Sul. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2011, p. 42.

[v] BRASIL. Ministério da Educação. CNE/CEB. Resolução Nº 6, de 20 de setembro de 2012.

[vi] PACHECO, Eliezer; MORIGI, Valter. Introdução. In: ______. Ensino técnico, formação profissional e cidadania. Porto Alegre: Tekne, 2012, p. 10.

[vii] PACHECO, Eliezer; MORIGI, Valter. Introdução. In: ______. Ensino técnico, formação profissional e cidadania. Porto Alegre: Tekne, 2012, p. 10.

[viii] WELMOWICKI, José. Cidadania ou classe? O movimento operário da década de 80. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2004, p. 19.

[ix] WELMOWICKI, José. Cidadania ou classe? O movimento operário da década de 80. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2004, p. 33.

[x] BRASIL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia: Um novo modelo para a educação profissional e tecnológica: Concepções e diretrizes: Brasília: MEC/SETEC, 2008, p. 18.

[xi] BRASIL. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia: Um novo modelo para a educação profissional e tecnológica: Concepções e diretrizes: Brasília: MEC/SETEC, 2008, p. 18.


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