Pele negra, máscaras brancas

Imagem: Claudio Mubarac / Jornal de Resenhas
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES*

Comentário sobre o primeiro livro de Frantz Fanon

Pele negra, máscaras brancas foi publicado originalmente em Paris, pela Seuil, em 1952. Fanon, jovem médico martinicano, condecorado por sua atuação no exército francês na Segunda Guerra, tinha, então, 27 anos, e havia se doutorado em psiquiatria, no ano anterior, em Lyon. A primeira versão do livro, com o título de Ensaio para a desalienação dos negros, o jovem estudante de psiquiatria escrevera com a intenção de entregar como tese de doutoramento, no que foi demovido por seu orientador, que lhe ponderou que um estudo clínico convencional seria mais adequado.

Um ano mais tarde, Fanon enviou o manuscrito para Francis Jeanson, filósofo associado ao Temps Modernes, em busca de um prefácio. Jeanson acabara de publicar naquela revista uma devastadora resenha do Rebelde, de Camus, no que viria a ser o primeiro passo da ruptura deste com Sartre. Nos conta Patrick Ehlen (Frantz Fanon: A spiritual biography), que Jeanson recebeu entusiasticamente o manuscrito e, para seu azar, “cometeu o erro” de dizer isto a Fanon, que esperava por uma crítica à altura de seus esforços.

A resposta veio fumegante: “O que você quer dizer é que, para um negro, não está mau.” A cena que se seguiu, com Jeanson apontando a porta de saída para Fanon, convenceu o jovem médico da sinceridade do filósofo, e foi o início não apenas de uma relação de amizade, mas de uma colaboração duradoura, até sua morte em 1961, com o círculo íntimo de Sartre, baseado na crueza e clareza de intenções com que opiniões e ideias eram expressas.

Depois de praticar a psiquiatria social (ou institucional) em Saint-Alban, na França metropolitana, Fanon seguiu para a Argélia, onde, em Blida, passou a praticar uma psiquiatria libertária e anticolonial, para finalmente se engajar, a partir de 1956, na Frente de Libertação Nacional. Apenas em 1961, com a publicação de Os condenados da terra, completa-se a aplicação político-científica do humanismo de Fanon, inspirado em Hegel, Marx e nos existencialistas.

Com Pele negra, seu primeiro passo, Fanon quer libertar o homem negro de si mesmo. O negro quer ser branco e assim se nega enquanto homem; mesmo quando assume sua raça, o negro não é um homem, nos diz Fanon, em superação polêmica da negritude, pois seu esquema mental continua colonizado; não pode lhe bastar reaver o passado ou devotar-se às civilizações africanas para se reinventar a si mesmo, é preciso criar o futuro. É preciso ir mais além da negritude e da psicanálise de Freud e Lacan para descolonizar-se, pois, para Fanon, a psicanálise não existe abstratamente, por cima e além das estruturas sociais, das sociedades e da economia coloniais.

A violência do estado colonial priva o homem negro de humanidade, despoja-o sistemática e racionalmente, por meio de humilhações, espancamentos, tortura física e mental, que geram as neuroses coloniais. Este, assim como o estado metropolitano francês, é um estado racista. A libertação, que não pode ser obra senão dos oprimidos pela cor, passa pela negação do embranquecimento, do racismo institucionalizado, dos estados coloniais e pós-coloniais. Em todos os casos, só a confrontação do racismo pela violência revolucionária pode libertar. Pois só pela luta contra o colonialismo o homem negro pode deixar de ser escravo da escravidão.

Nada mais claro, nada mais cru. Mas clareza, neste livro, não significa transparência de pensamento que evite a metáfora, a analogia e a constante remissão a fatos, ideias, autores e informações partilhadas na Paris do pós-guerra, mas largamente desconhecidos fora dele. O nosso mundo literário e acadêmico praticamente ignorou a obra até recentemente, quando os estudos culturais, os estudos subalternos, e outras modas acadêmicas anglo-saxônicas aportaram nas nossas faculdades de Comunicação, Ciências Sociais e Letras. Tal recepção tardia merece atenção e estudo, não se limitando geograficamente ao Brasil. Fanon já estava morto quando a esquerda mundial o descobriu.

Mas, ainda assim, foi o prefácio de Sartre a Os condenados da terra que circulou amplamente entre os não-negros, não os seus livros. Fanon continuou sendo para o mundo europeu e americano (inclusive latino) um revolucionário negro, com as máscaras brancas que a cultura universalista europeia lhe pôs. O homem que disse com todas as letras que queria ser um homem e não um negro, dificilmente consegue ser lido como um homem.

A recepção de Fanon teve pelo menos três momentos decisivos, que lembro aqui brevemente. A primeira deu-se nos anos 1960, em meio às riots, em bairros ardendo em chamas, pelos Panteras Negras. O estado norte-americano é um estado colonial, os negros americanos são sujeitos de uma colonização interna, diziam então. A guerra de libertação não se daria apenas no Terceiro Mundo, na Argélia, na Indochina, na África do Sul, mas no coração do imperialismo. Leitura mais que adequada a Fanon. Entre nós, alguns jovens intelectuais exilados, como Glauber Rocha e Paulo Freire assim também o entenderam.

A segunda recepção de Fanon foi feita, no Brasil, por Abdias do Nascimento e pelos jovens estudantes e profissionais negros dos anos 1970. O estado brasileiro é também um estado colonial apesar de sua fachada ideológica de democracia racial. Todo seu aparato de violência, toda a parafernália emocional e psíquica de embranquecimento, de tortura e de desumanização se mantiveram intactos desde a Independência; este estado colonial foi apenas apropriado pelos brasileiros brancos ou que se definem como tal; também nele não há espaço para os negros. Existe diagnóstico mais fanoniano?

Uma terceira recepção de Fanon é a que ocorre hoje em dia nos estados metropolitanos pós-coloniais , onde os imigrantes oriundos das ex-colônias são subcidadãos, indigènes de la Republique, como se auto-intitulam na França. Talvez agora os franceses escutem-no dizer que a França republicana é racista sem considerá-lo um negro.

Seja como for, nos EUA, na Europa, na África ou aqui, Pele negra é mais atual que nunca.

*Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor aposentado e sênior do Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Classes, raças e democracia (Editora 34).

 

Referência


Frantz Fanon. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Sebastião Nascimento com a colaboração de Raquel Camargo. São Paulo, Ubu, 2020.

 

 

 

 

 

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Caio Bugiato Lucas Fiaschetti Estevez Dennis Oliveira Alysson Leandro Mascaro Remy José Fontana Francisco de Oliveira Barros Júnior Flávio R. Kothe Airton Paschoa Valerio Arcary Lorenzo Vitral Luiz Bernardo Pericás Renato Dagnino Marcelo Guimarães Lima Otaviano Helene Daniel Afonso da Silva Bento Prado Jr. Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antônio Sales Rios Neto Marilena Chauí Bernardo Ricupero Antonino Infranca Mário Maestri Vanderlei Tenório Marcelo Módolo Gilberto Lopes Andrew Korybko Celso Favaretto Carla Teixeira Samuel Kilsztajn Kátia Gerab Baggio Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Afrânio Catani Benicio Viero Schmidt Alexandre Aragão de Albuquerque Eduardo Borges Jorge Luiz Souto Maior Plínio de Arruda Sampaio Jr. Carlos Tautz Walnice Nogueira Galvão Berenice Bento Ronaldo Tadeu de Souza Ronald León Núñez Salem Nasser Ronald Rocha Luiz Roberto Alves Maria Rita Kehl Claudio Katz Rubens Pinto Lyra Marcos Aurélio da Silva Julian Rodrigues João Lanari Bo Vinício Carrilho Martinez Henri Acselrad Paulo Nogueira Batista Jr Henry Burnett José Costa Júnior Gabriel Cohn Juarez Guimarães Gilberto Maringoni Flávio Aguiar Eleutério F. S. Prado Sergio Amadeu da Silveira Paulo Sérgio Pinheiro José Luís Fiori Francisco Pereira de Farias Sandra Bitencourt Valerio Arcary Luís Fernando Vitagliano Alexandre de Freitas Barbosa Tales Ab'Sáber Celso Frederico Eugênio Bucci Vladimir Safatle Anselm Jappe Leonardo Sacramento Lincoln Secco Ladislau Dowbor Yuri Martins-Fontes Rodrigo de Faria Eliziário Andrade Gerson Almeida André Singer Paulo Martins Marjorie C. Marona Paulo Fernandes Silveira Jorge Branco Francisco Fernandes Ladeira Daniel Brazil Marcos Silva João Carlos Salles Slavoj Žižek Luiz Werneck Vianna Marcus Ianoni Jean Marc Von Der Weid Matheus Silveira de Souza Milton Pinheiro José Micaelson Lacerda Morais Érico Andrade Liszt Vieira Manuel Domingos Neto Fábio Konder Comparato Daniel Costa Ari Marcelo Solon Eleonora Albano Tadeu Valadares José Raimundo Trindade André Márcio Neves Soares João Adolfo Hansen Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antonio Martins Michael Löwy Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Loebens José Machado Moita Neto Luis Felipe Miguel Eugênio Trivinho Ricardo Antunes Thomas Piketty Leda Maria Paulani Elias Jabbour Andrés del Río Rafael R. Ioris Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Luiz Renato Martins Luciano Nascimento Denilson Cordeiro Osvaldo Coggiola Bruno Machado Atilio A. Boron Annateresa Fabris Boaventura de Sousa Santos José Dirceu José Geraldo Couto Tarso Genro Ricardo Musse Leonardo Avritzer João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Lima Castro Tranjan Heraldo Campos Fernão Pessoa Ramos Armando Boito Chico Alencar Manchetômetro Ricardo Abramovay Ricardo Fabbrini Fernando Nogueira da Costa Michael Roberts Paulo Capel Narvai Dênis de Moraes Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Eduardo Soares João Sette Whitaker Ferreira Chico Whitaker João Feres Júnior Mariarosaria Fabris Igor Felippe Santos Leonardo Boff Jean Pierre Chauvin

NOVAS PUBLICAÇÕES