Por TIAGO CERQUEIRA LAZIER*
Se tem algo que nos une a todos como brasileiros, lamentavelmente, é esse crime de racismo que herdamos
Eu cresci no Brasil como um menino branco. Tenho, porém, registrado em minha memória dois episódios em que eu, ainda muito novo, me deparei com a questão do racismo. O primeiro episódio dá orgulho de contar, e o segundo, bem, há de ser contado.
O primeiro episódio se passa no Jardim da Infância. Eu não lembro quantos anos eu tinha, mas eu lembro que foi antes da primeira série, no prédio em que eu, como menino já grandinho, tive o primeiro contato com a sociedade fora da proteção familiar. Nesse prédio, havia um parquinho e nele as crianças brincavam. Eu nem tanto, não era particularmente entrosado com os demais, e ficava mais na minha, observando.
Um dia, reparei em um menino como eu – e ele sofria. Sua dor era tão visível que doía em mim. Ele sofria porque estava sendo perseguido por crianças que o chamavam, com ar de deboche, de chocolate. Ele era –você imaginou corretamente – um menino preto.
Eu talvez ainda não tivesse sido exposto ao racismo, não desse jeito tão óbvio, mas não tive dificuldade em relacionar a cor da pele desse menino com a tentativa de ofensa. Chamavam-no de chocolate, com o intuito de machucá-lo, porque ele era preto. O que eu não conseguia entender, e só conseguiria entender depois, era a razão da cor da pele daquele menino ser usada contra ele mesmo.
A crueldade daquela atitude era palpável, mas era também inexplicável… se é realmente um problema ter pele cor de chocolate, então, todos temos esse problema, não? Afinal, existe também chocolate branco. E, diga-se de passagem, ambos são deliciosos. Assim pensava minha mente de criança.
Eu tentei me aproximar do menino entristecido sentado em seu canto, assim como eu ficava sentado no meu, pois queria dizer a ele: eles também são chocolates. Eu me lembro como, em meio a todas aquelas crianças, testemunhas daquele sofrimento, minha atitude foi tão inesperada que, naquele momento, aquele meu coleguinha não conseguiu imaginar a possibilidade de um “menino branco”, como eu, aproximar-se dele como um amigo.
Depois disso, minha memória acaba, mas a história continua, alguns anos depois, na primeira ou na segunda série – depois de eu mudar de prédio na escola e antes de eu me mudar para uma nova cidade.
O palco não é mais o parquinho, porém a sala de aula. Lembro que a sala era grande, maior do que antes, e que nós nos sentávamos em carteiras enfileiradas, não mais em mesinhas compartilhadas de criança. Atrás de mim, sentava um menino branco. E ele me perturbava por algum motivo – não me lembro qual, e isso nem é relevante, o que importa é que ele me incomodava bastante.
Um dia, então… na verdade, acho que isso aconteceu mais de uma vez… em uma delas, lembro-me vagamente de estar de pé, caminhando para a saída da sala de aula, logo atrás do menino que me perturbava. Ou talvez fosse o contrário. Ele caminhava atrás de mim, me perturbando, e eu, muito incomodado, de repente paro, viro meu corpo na direção dele e digo algo como: você deveria ser pintado de preto.
Sim, você leu corretamente. Ei você, menino branco que me faz mal, sua pele deveria ser preta. Afinal, quem faz mal para a gente são as pessoas de pele preta. Ei, você, menino branco que me faz mal, gostaria que sua punição fosse ter a pele pintada de preto. Afinal, ser preto é uma punição por si só. Foi esse, efetivamente, o sentido das palavras que saíram da boca de um menino de 7 anos – que saíram da minha própria boca.
O mesmo menino que entendia, sem que ninguém precisasse lhe explicar, o que era racismo, ao observar o sofrimento de uma criança injuriada no parquinho; o mesmo menino que não conseguia entender o motivo de alguém ser racista, ou porque diabos seria ruim ter pele cor de chocolate preto enquanto outros têm pele cor de chocolate branco; esse mesmo menino agora dava voz e propagava os preconceitos de uma cultura racista, da qual ele era inevitavelmente parte.
Eu não me recordo quando foi que eu entendi que esse episódio se tratava de um ato racista da minha parte. Acho que, de certa forma, eu sempre soube quão absurdo e cruéis eram aquelas palavras. Não à toa carrego essa memória como uma das mais vívidas da minha primeira década de vida. Tão logo as disse, me senti incomodado, mesmo quando criança. E, mesmo assim, não pude evitar– não naquele momento pelo menos – de ser veículo de um racismo impregnado na sociedade.
Não é particularmente bacana escrever sobre isso. Eu poderia ter encerrado a narrativa logo após o primeiro episódio, com a conclusão de que nossa sociedade forma criança racistas – menos eu, claro. Mas isso seria falso, muito falso. A narrativa deste texto só termina, e a luta contra o racismo só começa, quando admitimos para nós mesmos que somos partes de uma sociedade racista.
Eu fui um menino espontaneamente antirracista, mas fui também um menino espontaneamente racista. Hoje, sou um adulto espontaneamente antirracista, mas sou também um adulto espontaneamente e lamentavelmente racista, nos pensamentos que vejo às vezes emergir de relance em minha cabeça.
Admitir isso pode parecer desconfortável, e certamente é, mas é também tão fácil como arrancar um band-aid. Na hora dói um pouco, mas depois alivia e oferece uma chance para que a ferida da nossa própria covardia, ao ser exposta ao tempo, possa, pouco a pouco, cicatrizar.
Admitir tudo isso é sim desconfortável, claro que é, mas essa história não é sobre minha própria vergonha, é sobre um crime que perdura a séculos, da escravidão e da discriminação que fundou o nosso país. Um crime em que todos inadvertidamente tomamos parte, e que precisa de reparação, não de uma vez por todas, mas pelo tempo que for necessário.
Se tem algo que nos une a todos como brasileiros, lamentavelmente, é esse crime do racismo que herdamos. Todos compartilhamos dessa herança, e cabe a cada um entender a forma como ela se expressou e expressa em sua vida.
Eu não sei qual é a sua história particular com o racismo. Eu sei que essa é parte da minha. E sei que admitir meu racismo é o que devo àquele meu coleguinha no parquinho, e a mim mesmo, ao meu menino de 5 anos que, tímido em seu canto, observava a injustiça e a estupidez do racismo, e o rejeitava.
Eu sei que ao admitir o racismo que emerge em meus pensamentos antes mesmo de ter tempo de identificá-lo, eu me dou mais tempo para reconhecê-lo, para desconstrui-lo e rejeitá-lo, antes de agir como um tolo, ou, pior, como um monstro.
Cada um tem sua história. Eu não sei qual a sua, mas estou bastante confiante que todos temos uma criança empática dentro da gente, querendo abraçar o mundo, querendo falar mais alto que a crueldade, a indiferença e o descuido que também é nosso, mas que pode ser reconhecido e vigiado. Não pela culpa, e sim pela abundância de espírito da criança que descobre pela primeira vez a beleza de compartilhar o mundo com pessoas diferentes – e não enxerga nada mais bonito do que isso.
Você já viu – aposto que sim – o sorriso do neném para um desconhecido na rua? É nesse sorriso que começa nossa luta contra o preconceito. E esse sorriso é imbatível.
*Tiago Cerqueira Lazier, doutor em Ciência Política pela USP, leciona na Leupanha Universität Lüneburg (Alemanha).