Meu nome é Gal

Frame do filme "Meu nome é Gal"/ Divulgação
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Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO & JORGE NÓVOA*

Considerações sobre o filme dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi

Meu nome é Gal (2023) é uma cinebiografia de uma das maiores cantoras da música popular brasileira, Gal Costa (1945-2022). O filme destaca o papel de Gal Costa não apenas como cantora, integrante de um dos principais movimentos culturais do país, o tropicalismo, mas também como se inseriu naturalmente numa luta feminista, sem programática de partido político. Devido à sua personalidade autêntica e sem que tivesse total consciência do que poderia estar representando, Gal Costa acabou se tornando uma referência para as mulheres brasileiras.

No filme, a mulher ocupa um lugar central em toda a produção, pois além de ser um tributo à cantora (representada por Sophie Charlotte no papel principal), ainda conta com a direção de Dandara Ferreira e Lô Politi e com o roteiro de Maíra Bühler e Lô Politi. Ao longo da narrativa, o espectador é surpreendido com a forte presença da mãe de Gal, Mariah Costa Penna, sua grande incentivadora, que ouvia música clássica todos os dias durante a gravidez, para que nascesse “uma pessoa musical”. Na película e na história de Gal, seu pai foi ausente, motivo que a levou a escolher o sobrenome materno, Costa, como nome artístico.

 A narrativa destaca os primeiros anos da carreira da cantora, a partir de 1967, quando a tímida Gracinha (Maria da Graça Costa Penna Burgos), apelidada de Gal pelos amigos mais próximos, chegou ao Rio de Janeiro; até 1971, quando afirmou definitivamente sua originalidade em interpretações musicais e sua confluência com o movimento tropicalista.

É bom lembrar, que quando o pai da bossa nova, João Gilberto, a conheceu ainda na Bahia, considerou-a, imediatamente, como a melhor e a mais afinada intérprete da música brasileira, provavelmente porque deslocava a tradição cultivada pelas cantoras e cantores do Rádio, que adoravam o rococó das vozes, densamente expressas em conteúdos sonoros robustos. A bossa nova pedia intimidade e discrição de sentimentos, numa melancolia controlada, avessa às cenas de ciúmes e “dores de cotovelo” dos cantores de Rádio.

O estilo bossanovista acompanharia Gal Costa até se unir aos amigos baianos no Rio de Janeiro. A partir de então, sob o incentivo de Caetano Veloso e de Gilberto Gil (que nunca se libertaram de Dorival Caymmi e de João Gilberto, ou seja, de raízes baianas sólidas, mesmo estando decididos a criar novas formas e conteúdos, mesclando o regional, o brasileiro e o universal), Gal Costa se integrou à inevitável espontaneidade política das propostas tropicalistas.

Era a época dos festivais de música e do surgimento de novos talentos, nos violentos e repressivos anos da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Em frente à tela, o espectador pode lembrar ou conhecer a bela interpretação de Coração Vagabundo, do primeiro álbum, Domingo, que Gal Costa gravou em parceria com Caetano Veloso, em 1967. Revelando-se uma discípula fiel de João Gilberto, Gal encantou e não desafinou em sua voz bossanovista, encantando um público mais maduro, em geral da classe média alta, luxuriante e alcoólica, que constituiu a maioria dos que estavam habituados a ouvir o som da bossa nova nas boates, bares e grandes hotéis do Rio de Janeiro, de inícios e meados dos anos 1960.

Em 1969, Gal lançou o primeiro álbum solo Gal Costa. Já era outra mulher, muito mais inteira. Cantora mais “moderna” e despojada, bem afinada estética, musical e politicamente com o movimento tropicalista, com forte influência de James Brown e de Janis Joplin, ela apostava numa voz estridente, metálica, mais próxima do rock brasileiro.

O ponto de inflexão (da bossa nova para o tropicalismo) ocorreu no 4º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968, quando Gal Costa interpretou Divino, Maravilhoso, música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e obteve o 3º lugar. Gal Costa subiu ao palco acompanhada de uma banda de guitarras elétricas e pelo coro feminino de Ivete e Arlete. Os cabelos crespos espalhados e indomados e a roupa futurista com brilhos, lantejoulas e espelhos produziram um corte, não apenas na sua trajetória, mas na do movimento e da própria música popular brasileira.

Ainda na atualidade, sua voz agudíssima faz ecoar nos ouvidos dos brasileiros o refrão, “é preciso estar atento e forte, não temos medo de temer a morte”. Assumindo uma mise-en-scène de roqueira e cantando com agressividade, foi um “grito de raiva” contra tudo: contra o tédio e a melancolia da classe média alta, contra uma fração da juventude alienada (que a vaiou) e contra a violência do governo que surgiu do golpe de 1964. Já havia ficado longe o estilo, muito diferente, marcado pela suavidade de Coração Vagabundo. A expressão “divino, maravilhoso” acabou sendo apropriada por uma parte do público e a música se tornou a principal faixa do LP Gal Costa, de 1969.

Em 2005, em entrevista, Gal Costa conseguiu sintetizar o que foi a participação no Festival: “Cantei com toda a fúria e força que havia em mim. Metade da plateia se levantou para vaiar. A outra metade aplaudiu ferozmente. Um homem na minha frente berrava insultos. Foi então que me veio ainda uma força maior que me atirou contra ele. Cantava diretamente para ele: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!”. Cantava com tanta força e tanta violência que o homenzinho foi se aquietando, se encolhendo, e sumiu dentro de si mesmo. Foi a primeira vez que senti o que era dominar uma plateia. E uma plateia enfurecida. Naquele tempo de polarização política, a música era a única forma de expressão. Despertava paixões, verdadeiras guerras. Saí do Divino, Maravilhoso fortalecida, crescida. Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa”.

Meu nome é Gal destacou esse importante momento na vida da cantora, quando ela se conscientizou que para cantar não bastava ter voz: precisava ter atitude! E foi com atitude que ela subiu no palco. Na tela, vemos surgir uma mulher forte, que canta e se expressa com todo o corpo, ocupando todo o palco, atitude que acompanhará Gal Costa em toda sua carreira. Com a interpretação de Divino, Maravilhoso, Gal Costa transformou-se num ícone do movimento tropicalista.

Tropicalismo e política

Em primeira instância, o tropicalismo[i] foi um movimento cultural brasileiro da segunda metade dos anos 1960. Mesmo tendo a música como seu elemento principal, o movimento se estendia ao cinema,[ii] às artes plásticas, ao teatro, a pintura e à literatura. Sua marca principal foi a inovação estética radical, mesclando elementos da cultura popular e da tradição, com tendências estrangeiras, sobretudo a guitarra elétrica e o rock, elementos da cultura jovem mundial.

As figuras de destaque foram os cantores-compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas a cantora Gal Costa, o cantor-compositor Tom Zé, o maestro Rogério Duprat e o produtor cultural Guilherme Araújo também desenvolveram papel muito importante. O movimento representou uma renovação no contexto musical brasileiro ao unir gêneros populares, como o baião e o caipira, ao pop e ao rock. Momentos marcantes do movimento foi o lançamento do álbum Tropicália ou Panis e Circenses, em 1968, e os Festivais de Música Popular Brasileira, realizados pela TV Record, sobretudo o 3º Festival (1967), quando Caetano Veloso interpretou Alegria, Alegria e Gilberto Gil, ao lado da banda Os Mutantes, Domingo no Parque, verdadeiros protestos contra o autoritarismo do governo militar.

Naquela época, analistas do mainstream de esquerda, como Robert Schwartz, não conseguiram compreender o movimento tropicalista e ainda hoje existem os que o condene. Boa parte da esquerda tradicional esperava, desses novos atores, que assumissem, de alguma forma, uma crítica teleológica ao capitalismo. Os intelectuais, jornalistas e críticos mais atuantes, em geral, foram formados teoricamente pela estética do realismo social e outros em um enquadramento do “realismo socialista”.

As polêmicas sobre o ajuste a um modelo estético se faziam, como ainda se fazem, como se fosse possível abstrair as condições em que a obra de arte verdadeira (e enquanto tal) pode surgir. É curioso observar que, no que concerne não apenas à estética, mas também às performances que os tropicalistas desenvolviam, assim como seus hábitos e crítica à dupla moral dominante, chocavam na mesma medida, tanto a esquerda como à direita.

No início, essas questões também os angustiaram, afinal eles buscavam a autenticidade em formas novas. As teorizações apareciam sobretudo, nas reflexões de Caetano, não tanto nas de Gil. Em ambos de modo muito espontâneo. Praticavam uma espécie de “crítica empírica”, quase instintiva que não aceitava se enquadrar, nem nos esquemas da esquerda tradicional dos PCs, nem nos modelos morais de um liberalismo moribundo, que logo capitularia diante das forças das botas e fuzis.

Dois comentários ajudam a entender a gênese do movimento. Um aparece no depoimento de Nelson Motta (2000, p. 95-6): “Uma noite de verão, pouco antes do carnaval de 1968, passei horas tomando chope e conversando com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Luiz Carlos Barreto no Bar Alpino, em Ipanema. Entusiasmados com o cinema novo, o Teatro Oficina, os discos de Gil e Caetano, excitados com o momento político e com aquele movimento artístico que não tinha sido articulado nem tinha nome, mas estava em pleno andamento, com tantas novidades e tanta potência, começamos a imaginar uma festança para celebrar o novo movimento. (…) No dia seguinte, com a dramática falta de notícias que aflige os colunistas no verão carioca, usei todo o espaço da coluna para contar, em forma de manifesto debochado, todas as besteiras que tínhamos imaginado no Alpino. Sob o título de “Cruzada Tropicalista”, irresponsavelmente enchi meia página de jornal celebrando o momento artístico com uma futura festa imaginária. (…) A festa nunca aconteceu, mas a coluna teve grande repercussão e surpreendentemente foi levada a sério, comentada acaloradamente contra e a favor em outros jornais, no rádio e na televisão, que passaram a se referir ao movimento de Gil e Caetano como tropicalismo”.

O depoimento de Caetano Veloso (2003, p. 35), também ajuda na compreensão da origem do tropicalismo: “É muito política, do período das passeatas, da preparação para a luta clandestina. Foi feita com muita consciência. Muitos não entenderam, achavam que os tropicalistas eram alienados porque não fazíamos o papel do esquerdista convencional”.

É possível encontrar, em outro texto, se referindo ao contexto da gênese, o seguinte diálogo entre Gilberto Gil e Caetano Veloso: “O trabalho que fizemos, eu e Caetano, surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado. Eu acho que só agora, em função dos resultados dessas nossas investidas iniciais, se pode pensar numa programação, numa administração desse material novo que foi lançado no mercado. Eu estava sugerindo até, ontem, conversando com Gil, a ideia de um disco-manifesto, feito agora pela gente. Porque até aqui toda a nossa relação de trabalho, apesar de estarmos há bastante tempo juntos, nasceu mais de uma relação de amizade. Agora as coisas já são postas em termos de Grupo Baiano, de movimento…”

“Gal e Betânia, embora não tenham participado diretamente das discussões que nos levaram as essas descobertas, estão empenhadas, como intérpretes, em assumi-las. E há um detalhe mais singular ainda. Porque Bethânia, por um lado, é rebelde, terrível, ela não suporta programação, ela quer descobrir as coisas por si mesma, mas por outro lado foi a primeira a chamar a atenção de Caetano para a importância do iê-iê-iê”.

“Quanto a Gal, parece-me que, no sentido em que se pode tomar como elemento fundamental o reconhecimento de João Gilberto como um marco inovador, ela é o próprio símbolo desse reconhecimento. Não há cantora brasileira que tenha essa capacidade de usar funcional e instrumentalmente a voz como ela” (In: Risério, 1982, p. 105).

Portanto, parece evidente, o grau de espontaneidade desse movimento músico-cultural. E, ao mesmo tempo, como o próprio movimento irá modificando os atores, que tomam consciência de como reverberam nas pessoas, denominadas de público, enfim, dos cidadãos. Logo eles perceberam que, se quisessem mudar algo no país, precisariam não capitular diante dos ditames do mercado, ou daqueles que dominavam a política naquele momento, mas usá-los para criar impactos transformadores.

Pretendiam uma arte de massas, mas sem renunciar a seus valores estéticos. Propunham uma arte camaleônica, mutante. Aliás, Os Mutantes foi o nome de uma banda que acompanhou o Tropicalismo por um bom percurso. Nela, outra mulher líder, a inglesa-brasileira Rita Lee, com os seus “mutantes”, seria um capítulo a parte da música popular brasileira, inaugurando um rock pop crítico à sociedade de consumo e à hipocrisia dos hábitos e costumes. Foram eles que produziram os acordes de baixo e guitarra em momentos importantes do percurso do tropicalismo. E, em 1968, acompanharam Caetano Veloso em sua polêmica apresentação de É Proibido Proibir. As roupas futuristas, elaboradas com plástico brilhante em cores fortes, revelaram toda a rebeldia e potencialidade imagética do movimento.

A dimensão política do tropicalismo surge como uma reação quase que espontânea, visceral num primeiro momento, mas que foi sendo trabalhada, elaborada. Possivelmente, se a ditadura militar não tivesse existido naquele momento, essa dimensão ficaria mais escondida, submersa pela avalanche, ao mesmo tempo brasileira e universalista, que unia poetas e cantores nordestinos à contracultura dos beatniks, hippies e undergrounds dos anos 1950, 1960 e 1970 norte-americanos e europeus, à rebeldia dos poetas russos ou futuristas do início do século XX.

Talvez, se possa dizer, que a heterodoxia estética tropicalista buscava se livrar das receitas e modelos, mas estava aberta a todos os movimentos estéticos progressistas e desalienantes do século XX. No Brasil, sua referência maior foi o Movimento da Arte Moderna de 1922, que teve como expoentes, mas não apenas, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Os modernistas pretendiam uma renovação da arte e cultura brasileira, procurando recuperar os valores culturais e históricos mais profundos do país.

Já o movimento tropicalista teve uma ambição maior. Sem renunciar a tais valores (incorporando, inclusive, elementos que aparecem no movimento de 22), se colocava num patamar mais universalista. Mas, o contexto político brasileiro e mundial (da Guerra Fria, da Guerra do Vietnã, do Maio de 68, da ditadura militar no Brasil) turbinou a expressão política do tropicalismo. A avidez devoradora de todos eles, sintetizada por Caetano, digeria os “poetas malditos”, mas também os Beatles e Jimi Hendrix, e as guitarras elétricas apareceram com força dissonante.

Depois do governo João Goulart (1961-1964) ter promovido uma série de reformas, visando atenuar a desigualdade social no país, organizou-se um forte movimento da direita política propondo uma modernização conservadora. Essa facção (formada por setores mais reacionários do Congresso Nacional, das classes alta e média, da mídia e da Igreja Católica) obteve apoio do Exército e destituiu o governo de João Goulart por meio de um golpe militar: era o ano de 1964.

Até 1968, mesmo sob uma ditadura, os intelectuais e artistas possuíam certa liberdade, mesmo que, muitas vezes, tivessem problemas com a censura do Estado. No governo de Costa e Silva (1967-1969), sobretudo com o AI-5 (Ato Institucional no. 5), ocorreu um recrudescimento da utilização da censura. Partidos políticos foram colocados na ilegalidade, greves operárias foram criminalizadas, artistas e intelectuais foram perseguidos. O governo foi marcado por prisões, torturas e assassinatos. Ainda na atualidade, não se sabe exatamente o que ocorreu com as vítimas do regime, mesmo com a criação da Comissão Nacional da Verdade (em 2011, pelo governo de Dilma Rousseff), responsável em apurar as graves violações de direitos humanos cometidas no Brasil, no período de 1946 a 1988.

O tropicalismo apareceu, pois, no interior de um país convulsionado por esses fatos. Assim sendo, além de uma renovação no cenário artístico, sobretudo musical, o movimento terminou adquirindo um forte engajamento político que o marcou definitivamente, sem que, contudo, sua dimensão estética fosse rebaixada aos valores dominantes. Ao contrário, a política deu um tom original e especial à sua estética. Nesse contexto, o tropicalismo assumiu uma postura resistente, combatendo o autoritarismo e a desigualdade social, propondo uma nova expressão estética engajada, participativa e contra todas as formas de alienação, defendendo a liberdade de expressão amorosa, a beleza da nudez dos corpos e a justiça social.

As músicas e os Festivas de MPB se transformaram em espaço de luta e denúncias. Gil e Caetano fizeram um programa na TV Tupi, em 1968, que durou quase três meses. O programa se chamava Divino, Maravilhoso. A ironia e a irreverência foram ácidas, não apenas nas músicas, mas nas indumentárias. Foi um sucesso absoluto. O programa adquiriu esse nome, porque o produtor musical Guilherme Araújo tinha o hábito de classificar o que os tropicalistas estavam fazendo como “divino, maravilhoso”. Mas, como analisado anteriormente, foi a voz de Gal Costa, cantando a canção homônima, no Festival da Record, que popularizou a expressão, no mesmo período em que o programa era exibido na Tupi.

A liderança artística e musical de Caetano e de Gil não ficaram impunes. Eles foram presos em dezembro de 1968, após o último programa Divino, Maravilhoso. As gravações, ao que parece, foram destruídas, com o intuito de proteger os cantores, já que estavam no comando do programa, que já era considerado, em função da audiência e da audácia dos apresentadores e convidados, como o maior programa ao vivo de auditório da televisão brasileira.

Caetano e Gil foram liberados em fevereiro de 1969 e em julho se exilaram em Londres. Só voltaram ao Brasil em 1972. Gal Costa escolheu ficar no Brasil, enfrentado a censura e as ameaças. Foi a forma que encontrou para não deixar o tropicalismo morrer. Ela continuou usando sua voz e seu corpo, como havia feito em Divino, Maravilhoso, não apenas para cantar e encantar plateias, mas para revelar toda sua indignação e combater um governo autoritário e injusto, além da hipocrisia de uma moral herdada da colonização, que ainda sobrevivia nos extratos sociais dominantes. Pensando à distância, ela pode ser incluída no panteão das mulheres do movimento feminista brasileiro.

Gal e a emancipação da mulher – a liberdade passa pelo corpo

Em 1971, com o álbum ao vivo Fa-tal – Gal a Todo Vapor, a cantora (que contava apenas com 26 anos), criou uma identidade corporal: vestindo apenas um top e uma saia bem abaixo do umbigo e com longas fendas, Gal sentava-se (nos bancos colocados nos palcos durante seus shows) com as pernas nuas e abertas, encaixando, de forma sensual, o violão no meio delas, para cantar que era “amor da cabeça aos pés”.[iii]

A imagem chocou o público mais conservador, ao mesmo tempo em que atraía os mais jovens. O álbum também representou o definitivo engajamento político da cantora, ao se colocar como uma das porta-vozes contra a ditadura militar, mesmo que só falasse por meio das músicas. Em 1973, Gal lançou o álbum Índia. A capa trazia uma imagem da região pubiana da cantora, no interior imagens dela seminua. O álbum foi censurado pelo governo militar por “ferir a moral e os bons costumes”.

Contudo, sua atitude contestatória não estava restrita aos palcos ou aos discos que gravava. Ainda nos anos 1970, Gal frequentou a praia de Ipanema, num local que ficou conhecido como “as dunas de Gal”, usando biquínis pequenos e ousados. O local, antes quase deserto, passou a ser frequentado por pessoas alternativas, atraídas pelo estilo hippie de Gal Costa. Foi um momento mágico, no qual a cantora se transformou numa espécie de musa da contracultura tropicalista brasileira. Passados vinte anos, em 1994, Gal Costa cantou Brasil, composição do cantor Cazuza, deixando à mostra os seios nus.

A imagem dos seios nus é associada às formas de luta, protesto e resistência, contra a ordem patriarcal, machista e conservadora, não raro misógina.[iv] Em Meu nome é Gal, a forma como a cantora se apropriou do próprio corpo surge com grande intensidade. Não faltam cenas de Sophie Charlotte com saias abaixo do umbigo (cotidianamente ou nos shows), de biquíni ousado na praia e com os longos cabelos despenteados.[v]

Outro elemento da identidade corporal de Gal Costa foi a boca pintada de batom vermelho. O sorriso amplo e os lábios grossos ficavam ainda mais sensuais no tom rubro. No filme, logo depois de Gracinha ter escolhido seu nome profissional, ela senta-se em frente ao espelho e mirando seus próprios olhos, escreve com batom vermelho: Gal Costa. Curiosamente, ao longo da narrativa a atriz jamais aparece com os lábios rubros, apenas nas cenas finais do filme, numa praia deserta, numa tomada ampla em que surge de costas, andando em direção ao mar apenas de calcinha, Sophie Charlotte se vira para a câmera e, num close de seu rosto, ela pinta os lábios de vermelho.

Recuperar a forma como Gal Costa se sentia confortável e se assenhorava de seu corpo levanta o debate sobre o processo de alienação pelo qual as mulheres passaram e ainda passam em relação aos seus corpos. Desde o século XVI, período da acumulação primitiva do capital, como explica Silvia Federici (2023, p. 186), as mulheres foram alienadas de seus próprios corpos: “o corpo feminino foi transformado em um instrumento para a reprodução do trabalho e a expansão da força de trabalho, tratado como uma máquina natural de criação, que funcionava de acordo com ritmos fora do controle das mulheres”, que acabaram por perder o poder sobre sua sexualidade, procriação e maternidade. O capitalismo fez surgir um regime patriarcal mais opressor, promovendo um ataque feminicida contra as mulheres, materializado na caça às bruxas, que teve seu ponto auge entre 1550 e 1650, quando mais de 200 mil mulheres foram acusadas e mais de 100 mil assassinadas. Caçar bruxas foi fundamental “para a construção de uma nova ordem patriarcal em que o corpo das mulheres, seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram colocados sob o controle do Estado e transformados em recursos econômicos” (Federici, 2023, p. 313-4).

Nesse contexto, o corpo se transformou no principal espaço de exploração, pois as mulheres foram aprisionadas em seus corpos para serem mais bem exploradas e reprimidas.

Mais de três séculos depois do fim da caça às bruxas (que não ficou restrita à Europa, estendendo-se às Américas, sobretudo ao Brasil, nos séculos de colonização), a reapropriação dos próprios corpos pelas mulheres ainda integra a pauta dos movimentos feministas. Não se trata apenas do direito ao voto, da inserção no mercado de trabalho e da equidade salarial. Por mais que essas lutas e conquistas sejam importantes, elas não abrangem o todo das necessidades das mulheres, que para além de independência material e realização profissional, também precisam ser respeitadas em seus desejos mais íntimos.

Temas como sexualidade feminina (o que inclui o orgasmo), lesbianismo ou bissexualidade e aborto, ainda são tabus na sociedade brasileira, que se mantém fortemente moralista e conservadora, tornando as mulheres prisioneiras em seus próprios corpos. De modo independente de seus desejos, anseios, sexualidade e necessidades, elas precisam seguir a ordem vigente para serem respeitadas, o que, muitas vezes, significa o desrespeito consigo mesmas.

O exemplo que os dados estatísticos trazem são assustadores no que dizem respeito aos crimes contra as mulheres no Brasil. Em 2023, foram registrados 3.181 casos de violência contra a mulher. A cada 24 horas, oito mulheres foram vítimas de agressão, tortura, ameaça ou assédio. Dentre os casos de violência, 1.463 foram feminicídios, ou seja, uma mulher a cada seis horas foi vítima fatal de agressão no Brasil, numa grande maioria (mais de 70%) por parte de companheiros ou ex.

O número representa um aumento de 1,6% em relação ao ano anterior, o que revela que o Estado segue falhando na tarefa de proteger as mulheres. O aumento também está na contramão da tendência: enquanto o número de homicídios caiu 3,4%, o de crimes contra as mulheres aumentou (Bueno, 2024). Esses números revelam a necessidade de repensar o papel da feminilidade e dos direitos das mulheres em sociedades patriarcais e capitalistas, sobretudo numa sociedade que guarda a mentalidade escravocrata em boa parte da prática social de suas elites, como é a brasileira.

O aprofundamento das contradições sociais (numa fase em que a exploração social cresceu pari passu com a aplicação das políticas neoliberais e com a redução drástica das políticas públicas exigida, inclusive, pelo Banco Mundial e pelo FMI, para que o Estado brasileiro possa equilibrar suas contas públicas) só tem feito potencializar e fermentar um terreno profundamente propício ao agravamento do tratamento degradante em relação à mulher, sobretudo pobre, preta e mestiça, tratada como objeto de consumo e exploração cruel, em duplas jornadas de trabalho, fora e dentro de suas casas.

Não apenas outras mulheres, de classe média e alta, que podem pagar salários das empregadas domésticas as exploram, mas também seus próprios companheiros (super-explorados em seus empregos ou trabalhando na informalidade) descarregam nelas suas frustrações e a violência que vivem em outros ambientes.

Diante dessa realidade, o comportamento de Gal Costa torna-se ainda mais ousado. Não apenas como cantora, passeando pelos timbres bossanovista, do rock, do tropicalismo e dos mais diversos gêneros culturais brasileiros, mas também ao usar seu próprio corpo em defesa de uma pauta de liberdade política, cultural e social para as mulheres.

O filme em sua homenagem também cumpre esse papel, de forma pedagógica, estimula a reflexão sobre os direitos, e, sobretudo, incentiva as mulheres a se reapropriarem de si mesmas e de seus corpos, assumindo suas identidades e seus desejos e se reconhecendo como autoras de suas histórias. Em frente à tela, o espectador é convidado a assumir um papel mais ativo. É convidado a cerrar o punho e unir-se num “somos tod@s Gal”.

*Soleni Biscouto Fressato é doutora em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora, entre outros livros, de Novelas: espelho mágico da vida (quando a realidade se confunde com o espetáculo) (Perspectiva).

*Jorge Nóvoa é professor titular do Departamento de Ciências Sociais da UFBA. Autor e organizador, dentre outros livros, de Cinematógrafo: um olhar sobre a história(EDUFBA\ Unesp), com Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson.

Texto originalmente apresentado nas X Jornadas de Historia y Cine. No sólo musas y divas: las mujeres y las artes (2024), da Universidade Carlos III de Madri.

Referência


Meu nome é Gal
Brasil, 2023, 87 minutos.
Direção: Dandara Ferreira e Lô Politi.
Roteiro: Maíra Bühler e Lô Politi.

Bibliografia


BUENO, Samira et al. Feminicídios em 2023. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: <https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/eca3a94f-2981-488c-af29-572a73c8a9bf/content >.

COSTA, Gal. O divino maravilhoso. [Entrevista concedida a] Ana de Oliveira. Tropicália, 2005. Disponível em: <http://tropicalia.com.br/eubioticamente-atraidos/verbo-tropicalista/o-divino-maravilhoso>.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras Bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2ed. São Paulo: Elefante, 2023.

FÓRUM BRASILEIRO de Segurança Pública. Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2023. São Paulo, 2023.

MOTTA, Nelson. Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais. São Paulo: Objetiva, 2000.

OLIVERIA, Ana de. Tropicália ou Panis et Circenses. São Paulo: Iyá Omin, 2010.

RISÉRIO, Antônio. Gilberto Gil. Expresso 2222. Salvador: Corrupio, 1982.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Notas


[i] Maiores informações sobre o tropicalismo podem ser encontradas no site Tropicália, organizado por Ana Oliveira. Disponível em: <http://tropicalia.com.br>

[ii] Glauber Rocha, líder do Movimento do Cinema Novo, vivia com os tropicalistas nos bares, nas festas e discussões, embora não apareça no filme, assim como o crítico cultural Nelson Motta.

[iii] Refrão da música Dê Um Rolê (Novos Baianos, 1971). Interpretação de Gal Costa disponível no canal do YouTube Biscoito Fino. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-nY1qJcdKdE>.

[iv] Ideia defendida por Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa (2023), com base na experiência que viveu na Nigéria, durante os anos 1980, acompanhando os vários métodos de lutas das mulheres das classes populares durante a colonização europeia. Mostrar os seios e, em casos extremos, as genitálias, era uma forma de desespero, mas também de protesto e de resistência. O documentário Rio de Topless (2019), de Ana Paula Nogueira, também defende a ideia que mostrar os seios é uma forma de protesto e resistência das mulheres.

[v] Não à toa a cantora lançou, em 1990, a música Cabelo. No refrão, uma síntese dela mesma: “cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada”.


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