Lutas dos afrodescendentes

Keith Arnatt, Retrato do artista como uma sombra de seu antigo eu, 1969–72
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Por GERALDO OLIVEIRA*

As lutas e o amparo legal são fundamentais para garantir o respeito e a preservação da memória e da história negra

Em decorrência da celebração da morte de Zumbi em 20 de novembro, setores da mídia e unidades escolares, sobretudo as públicas, encarregaram-se de ressaltar o negro e suas criações e recriações culturais. Procuraram não deixar passar em branco suas múltiplas contribuições para formação social e cultural do Brasil.

Sem dúvida, impossível destacar a formação da sociedade nacional sem referenciar o negro, apesar de que ao longo da história do país foi proibido de manifestar publicamente as suas crenças e produções culturais, como evidencia a famigerada lei de 1890, que o perseguia e punia, interpretando as suas crenças como curandeirismo ou espiritismo, conforme destaca a pesquisadora Giumbelli (2003).

Além disso, é importante destacar que no período inicial da formação nacional a catequese jesuítica imposta aos negros, os obrigavam a rejeitar suas produções culturais, como as crenças, afinal crenças são atividades culturais, fazendo-os a assumir a doutrina cristã na versão católica, que destoava de sua cosmovisão e formas de expressar a sua espiritualidade, até porque a fé do europeu foi construída dentro de uma racionalidade que contrastava com a do negro africano, que expressava a sua crença na harmonia com o outro e sobretudo com a natureza.

Esse desprezo pela cultura tem suas raízes e seus vínculos com a mentalidade do europeu branco, que se considerava o centro ou a única referência cultural verdadeira – o denominado eurocentrismo –, e a pretensa antropologia negra criada pelo médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues, que ancorado e inspirado sobretudo no evolucionismo inglês e na escola de criminologia italiana, forjou uma antropologia sustentada numa concepção negativa e depreciativa sobre negro, e principalmente sobre as suas compleições físicas e suas atividades culturais.

Conforme essa pretensa antropologia, o negro era visto como ser desprovido de inteligência, incapaz de cumprir leis, de comportamento propenso ao crime e de sérios desvios psíquicos, e a sua miscigenação não contribuiria em nada para o progresso civilizatório devido a geração de raças inferiores e degeneradas, como destaca (RODRIGUES apud MUNANGA,2009).

Ora, destruir, negar ou impor uma cultura a outros povos, significa a perda da identidade, a ruptura do sentido de vida e a perda das referências nas suas relações sociais, interação com o mundo etc. Se afirmar como única referência cultural e no qual os demais povos devem seguir como modelo, ou tratar quem não está em conformidade com minha cultura como outsider, não foi privilégio dos europeus, pois os gregos também o fizeram denominando-os de bárbaros. Tratar os povos e suas culturas em termos hierárquicos, ainda que sejam diferentes em suas tecnologias e referenciais, é uma atitude errônea, visto que diferenças não demanda inferioridade. (LEVI-STRAUSS, 1993).

Afora as negações culturais – que foram um duro golpe nas produções culturais dos afrodescendentes –, vale ressaltar que essa população viveu por longo período da história nacional â margem do processo de escolarização. Conforme os registros, durante o período colonial e imperial, entre 1822 e 1889, e parte da República os afrodescendentes eram proibidos de frequentar a escola. Nos dois períodos iniciais se deve ao fato de sua condição de mercadoria, e isso se aplicava inclusive aos libertos.

Além disso, tinha outros impedimentos como a lei da Provincia do Sul de 1837 e, o decreto nº 1331ª de 1854 e, o Aviso imperial 144 de 1864 que proibia a frequência de escravos, negros libertos e portadores de doenças contagiosas às escolas públicas. Nesse período a educação escolar era reservada propriamente aos filhos dos senhores de terra, que após completar o ensino elementar os enviava para estudar na metrópole. (BAKKE, 2011).

Agora já no período republicano, apesar da defesa da universalização do ensino, as políticas públicas de branqueamento da população, que consistiu no incentivo a imigração europeia com o objetivo de acrescentar sangue branco a população brasileira e assim evitar o atraso, se refletiu decisivamente nas políticas educacionais e no modelo pedagógico que considerava o homem branco europeu como modelo civilizatório. E devido a isso, a implantação do sistema de seleção e dos exames de admissão entre ciclos, excluiu o negro tanto como aluno quanto como sujeito nos conteúdos abordados pelas disciplinas.

Para a efetiva escolarização da população negra, e a inclusão da sua história e cultura nos currículos escolares, necessitou de lutas históricas, e ampla participação dos movimentos negros dentre eles, a Frente Negra Brasileira (FNB) criada em 1931 e do Movimento Negro Unificado (MNU), organização formada por negros de classe média de esquerda fundada na década de 1970. Além desses movimentos no decorrer da história, se soma também a intensa mobilização da sociedade, o que culminou na inclusão na Constituição de 1988 o combate ao racismo, a defesa das crenças e da liberdade religiosa, e posteriormente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, com a defesa e valorização da cultura negra e de sua história. (BAKKE, 2011).

Ressaltamos que as lutas e o amparo legal são fundamentais para garantir o respeito e a preservação da memória e da história negra. Para além disso, se não houver um trabalho contínuo de ruptura dos estereótipos e discriminações – presentes nas mentes e nos corações – os afrodescendentes continuaram sendo inviabilizados e estranhos na sociedade e no espaço escolar.

Ademais, é preciso enfatizar que embora a sociedade é conservadora e se opõe as lutas – achando que vivemos num paraíso de convivência social e racial –, a recriação do Ministério da Igualdade Racial – cuja finalidade é a elaboração de políticas de ações afirmativas, de combate ao racismo e promoção da igualdade racial –, representa a afirmação e a percepção de que é longo o caminho para a superação do racismo, e das péssimas condições de vida e de miséria dos afrodescendentes – decorrência da escravidão –, e que por isso, são maioria nas favelas, nas prisões, e em consequência dessas baixas condições de vida, sofrem toda sorte de rejeição.

Entretando, não basta somente as ações do Estado, mas o empenho de toda sociedade, e destacaria as instituições religiosas devido ao seu poder agregador e de formação de opinião pública. E para isso, não é suficiente um discurso fundamentado na doutrina de que somos todos irmãos. É preciso enfrentar essa realidade tão hostil a população negra, e o meio se faz na luta política de promoção social, e aceitação de que somos um país racista, e que esses afrodescendentes se encontram numa situação degradante e que urge superação.

A melhoria da qualidade de vida dos afrodescendentes, passa necessariamente pela educação, e os dados provenientes dos estudos sobre a educação negra no Brasil, nos mostram que esses são minoria nos espaços escolares – desde o fundamental até a universidade-, apesar de serem maioria em termos populacional. E com relação a isso, não basta somente acolher os afrodescendentes nas instituições de ensino, e sim inserir nos currículos e nas celebrações e nos calendários escolares, as suas criações e recriações, e compreendê-los no mesmo pé de igualdade com as demais criações dos povos formadores da cultura nacional, sem preconceito ou estereótipo, conforme determina a Lei de Base de Educação Nacional de 1996 (LDB).

Ademais, acolher a cultura negra no universo escolar, não significa restringir somente as suas produções culturais, ou ressaltar aqueles que de certa maneira conseguiram se sobrepor e se tornaram referencias – apesar de importante –, mas também, destacar sem rodeios a escravidão, o enriquecimento que propiciou as elites, as condições do tráfico, o aliciamento na África negra, o tratamento dado aos descendentes, o silenciamento das elites políticas em face de sua situação socioeconômica, o racismo, a marginalidade social, e sobretudo, a ruptura das ideias falsas e fantasiosos imposta ao negro, que em lugar de elevá-los contribuiu para mantê-los na marginalidade social.

Dessa forma, entendemos que isso, ajuda a produção de uma consciência crítica a respeito da escravidão, e a desconstrução da compreensão errônea de que trabalho compulsório no Brasil foi menos cruel que em outras colônias. E por fim, expressar a consciência negra e exigir melhores condições de vida, não é uma reclamação injustificada como se diz por aí.

Penso que ainda é tempo – não obstante ter passado mais de cem anos do fim da escravidão – de construir uma história diferente, principalmente para a imensa população de afrodescendentes, que busca não um abraço amigo, mas superação das adversidades sociais e econômicas. É uma vergonha para um país que prega patriotismo, e se diz maior produtor e exportador de alimentos, configurando entre as maiores economias mundiais, mas por outro lado, sujeitando grande parte de sua população, principalmente os afrodescendentes em situação de miséria ou de condições mínimas de sobrevivência, e sendo estrangeiros em seu próprio país.

Conforme os estudiosos do assunto, a superação da miséria é luta política e ausência de justiça social, e explicá-lo pelo lado da inexistência de recursos ou dificuldades econômicas do país é balela e enganação. Romper com as desigualdades gritantes do país, se faz além de políticas públicas, também com a taxação dos mais ricos, e a criação de um modelo social e econômico mais equilibrado.

Se continuar a naturalização da pobreza, e a ganância de alguns se sobrepondo, e achar que a solução só se faz por obras e atitudes assistenciais, seremos a permanência das desigualdades gritantes e a repetição de um futuro vergonhoso.

*Geraldo Oliveira é mestre em ciências sociais pela PUC-Minas.

Referências


BAKKE, Rachel R. Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na aplicação da Lei 10.639. 2011.222 f. Tese (DOUTORADO) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pósgraduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.

GIUMBELLI, Emerson. O “baixo espiritismo” e a história dos cultos mediúnicos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 9, n. 9, jul. 2003. Disponível: em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832003000100011.

LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

MUNANGA, Kabengele. Negros e mestiços na obra de Nina Rodrigues. In: ALMEIDA, Adroaldo José Silva; SANTOS, Lyndon de Araújo; FERRETTI, Sergio (org.). Religião, raça e identidade: colóquio do centenário da morte de Nina Rodrigues. São Paulo: Paulinas, 2009. (Coleções estudos da ABHR; 6)


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