Ontologia e economia política – Marx leitor de Hegel

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Por LEONARDO DA HORA*

Prefácio ao livro recém-lançado de Wécio Araújo

Medir a influência de Hegel sobre Marx é um problema tão clássico quanto difícil no campo de estudos marxianos. Marx nem sempre é claro em relação à sua dívida teórica com o antigo professor da Universidade de Berlim, ainda que esta, para qualquer leitor minimamente atento de sua extensa obra, seja inegável. Mas se determinar, com alguma precisão teórica, a natureza e a extensão de tal influência está longe de ser uma tarefa fácil, não se pode tampouco renunciar facilmente a tal empreitada, sobretudo se quisermos obter uma compreensão mais clara e profunda do método que Marx mobiliza para desenvolver a sua crítica da economia política.

A leitora pode, contudo, se perguntar: existe ainda algo de novo a ser dito sobre tal tema? Não já existem inúmeros estudos que esmiúçam diversos aspectos da intricada relação entre “dialética marxista” e “dialética hegeliana”, para relembrarmos o título de um livro de um eminente especialista nessa questão?[i] Com efeito, desde a famosa negação althusseriana de tal influência na obra de maturidade de Marx, estabelecendo o controverso “corte epistemológico” entre o “jovem” e o “velho” Marx (Althusser, 2015), incontáveis estudos foram publicados a fim de refutar tal perspectiva, mostrando que a influência da filosofia de Hegel sobre a crítica do capitalismo desenvolvida por Marx se estende pelo menos até O Capital, passando sobretudo pelos Grundrisse. Deixando entre parênteses a enorme bibliografia internacional sobre o tema, é importante reconhecer que aqui no Brasil tivemos uma produção teórica do mais alto nível, a começar pelo trabalho do já citado Ruy Fausto, mas também com destaque para as contribuições de José Arthur Giannotti (1975, 1985), Marcos Lutz Müller (1982) e Jorge Grespan (2012). 

É com enorme satisfação que posso constatar, a partir da publicação deste presente livro de Wécio Pinheiro Araújo, Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel, que esta tradição brasileira de estudos hegelo-marxianos está mais viva do que nunca. Satisfação porque trata-se não apenas de uma tradição teórica e acadêmica de especialistas fechados em torno de um determinado tema, mas sobretudo de uma perspectiva de teoria social crítica, em que o legado dialético é posto a serviço da renovação da crítica do capitalismo na contemporaneidade.

Mas em que consiste a contribuição do presente livro, em meio a tão rica tradição? Em primeiro lugar, eu diria que este livro é, salvo engano, um dos primeiros, no Brasil, a dialogar de modo sistemático com um conjunto de autores – tais como Christopher Arthur (2016), Fred Moseley e Tony Smith (2015) – vinculados à chamada New Dialectics, a qual visa renovar os estudos dialéticos acerca da influência de Hegel sobre Marx. Nesse sentido, Araújo, desde a introdução, se filia a essa ênfase na dimensão “sistemática”, em oposição à dimensão histórica, da dialética hegeliana. Com isso, no lugar de uma lógica dialética do desenvolvimento que fundamentaria a história mundial, pautada na contradição entre forças produtivas e relações de produção, bem como na contradição e na luta entre as classes, temos uma ênfase na articulação de categorias designadas a conceituar um todo concreto existente, em que a ordem de exposição destas categorias não precisa coincidir com a ordem da sua aparição na história. É essa perspectiva que irá servir para interpretar O Capital e seu método expositivoà luz da Ciência da Lógica, por exemplo.

No entanto, para além dessa filiação, de modo mais específico, temos o título da presente obra que, em certa medida, já indica que a articulação entre ontologia e economia política é a chave para compreender o seu escopo central. Mas se “economia política” é facilmente associável à crítica de Marx ao capitalismo, qual o sentido da palavra ontologia aqui? Em que medida a ontologia desempenha um papel na crítica da economia política? Trata-se, na realidade, de uma ontologia do sujeito, isto é, de um resgate dos caracteres fundamentais que traçam e estruturam a formação do sujeito, segundo a perspectiva hegeliana.

De fato, a leitura que Araújo nos propõe se notabiliza por recuperar, notadamente, a filosofia do espírito hegeliana enquanto uma espécie de ontologia social, que nos fornece as bases fundamentais a partir das quais podemos compreender o modo como não apenas Hegel, mas também Marx analisa a sociabilidade humana, em geral, e a sociedade capitalista em particular. Isto é, os elementos centrais de tal ontologia se mostrarão essenciais para o modo como Marx vai abordar as formações sócio-históricas, notadamente a concepção da vida humana totalizada no ser social, formado no e pelo trabalho enquanto essência objetiva e subjetiva do sujeito.

Como esclarece Araújo, ao produzir um conteúdo material, o trabalho produz também uma racionalidade enquanto forma subjetiva deste conteúdo a ser vivenciado pelos sujeitos produtores em sociedade. E, neste sentido, o conceito hegeliano de formação (Bildung) permite-nos compreender que o trabalho não se refere apenas à produção de objetos em sentido material, mas sobretudo à produção de racionalidade segundo relações que formam e educam socialmente o indivíduo, estabelecendo assim uma verdadeira ontologia social enquanto uma ontologia do sujeito que tem seu pressuposto central no fato social de que “o trabalho forma”. Neste sentido, o Espírito (Geist) pode ser compreendido enquanto razão imanente à atividade consciente objetiva que se expressa no processo de trabalho e nos seus resultados. Dito de outro modo, o espírito é, em última instância, a forma geral do agir intencional do conceito na forma da racionalidade imanente produzida no processo de trabalho como atividade consciente objetiva (práxis). O Espírito representa a unidade entre subjetividade e objetividade que se estabelece como um Todo, para além da vontade individual, mas decorrente das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos em sociedade.

Logo, no mundo humano, as coisas materiais produzidas pelo trabalho são “dotadas de espírito” enquanto razão imanente que se torna real à medida que é vivenciada pelos próprios indivíduos produtores, na medida em que tais indivíduos são sujeitos na experiência da vida em sociedade. Nenhuma outra espécie no planeta põe no mundo racionalidade imanente à sua realidade a partir de um processo ativo consciente e objetivo que se realiza também subjetivamente, isto é, sendo dito e, portanto, transpassado pela linguagem. Neste sentido, somente o ser humano produz – em sentido rigoroso – realidade no mundo, porque somente ele põe “espírito” (leia-se: racionalidade) nas coisas que produz e na forma de vivenciá-las subjetivamente na experiência histórica.

A partir deste núcleo sócio-ontológico acerca do sujeito, não apenas Hegel, mas também Marx pode tanto descrever quanto criticar a sociedade capitalista. Isso porque tal base conceitual lhe fornece critérios para avaliar em que medida tal sujeito que, ao mesmo tempo, se forma e se exterioriza nos objetos que produz, se reconhece e se reconcilia com essa produção, articulando objetividade e subjetividade. E a resposta de Marx a esse respeito não deixa de ser surpreendente: neste tipo de sociedade, não é o ser humano que aparece como sujeito ou espírito nesse processo de produção da vida e da sociedade, mas sim o próprio capital. Em outras palavras, enquanto relação social dominante na sociedade moderna, o capital adquire a estatura ontológica de Espírito à medida que age como Sujeito autônomo e negativo do trabalho substantivado na forma valor, ao passo que os indivíduos se encontram alienados de sua própria essência de ser social dotado de atividade livre.

O uso do verbo aparecer não é gratuito aqui e, mais uma vez, Marx se mostra devedor da ontologia hegeliana ao mostrar que o modo de produção capitalista é essencialmente perpassado por uma dialética entre essência e aparência, em que a segunda esconde e deforma a primeira. Temos então uma crítica da aparência (Schein) na busca daquilo que acontece para além dela, isto é, em uma esfera mediatizada da realidade que Hegel determina como efetividade (Wirklichkeit) e essência (Wesen). Essa referência marxiana carrega o sentido da efetividade hegeliana, que diz respeito ao mais concreto não por ser o sensível ou o tangível (rico de sensações), mas, ao contrário e em sentido dialético, por ser a essência (Wesen) e, portanto, aquela esfera da realidade que, embora pobre de sensações, se revela rica de mediações estabelecidas entre aquilo que aparece e aquilo que a coisa é para além de sua aparência.

Os sujeitos (os trabalhadores) não se reconhecem no seu próprio mundo, seja nos objetos resultantes do seu trabalho, seja nos outros indivíduos com os quais estabelece relações, precisamente porque a riqueza aparece na sociedade capitalista sob as formas fetichistas da mercadoria, do dinheiro e do capital e jamais como trabalho humano socializado.  Todavia, segundo a leitura de Araújo, se a substância do capital é produzida pelo trabalho, Marx percebe que o valor se refere à essência historicamente determinada e socialmente condicionada que está “por trás” da forma fenomênica basilar por meio da qual a riqueza aparece na sociedade capitalista: a forma mercadoria. Este itinerário demonstra como cada vez mais toda a atenção de Marx se voltou para a forma valor enquanto racionalidade imanente aos produtos do trabalho no modo de produção capitalista. Isto é, o trabalho desenvolvido sob as condições capitalistas da propriedade privada (de)forma os indivíduos, na medida em que os aliena de sua própria atividade, projetada como propriedade do Capital, esse “sujeito automático” do processo de produção qua processo de valorização.  

Assim, de acordo com a leitura de Araújo, a contribuição de Marx traz uma inflexão importante na elaboração hegeliana acerca do Espírito, aparentemente tão “abstrata”. Com efeito, Marx salienta que entre o polo universal do processo de trabalho em geral e o polo singular do trabalhador individual, vemos inserir-se, no mundo moderno, o polo particular do capital, que é fruto de uma forma historicamente específica de socializar o trabalho.  Em outras palavras, aquilo que em Hegel podemos identificar como o espírito objetivo da modernidade capitalista, em Marx remete justamente à lógica social da mercadoria enquanto invólucro da produção de mais valor, que assume o lugar central em torno do qual se organizam todas as relações sociais vivenciadas pelos indivíduos na experiência da vida em sociedade. Enquanto forma social que determina a realidade humana assumindo o posto que era apenas do trabalho em geral como universal concreto, a forma valor se torna a essência de uma sociedade “na qual a riqueza aparece como uma enorme coleção de mercadorias” – para relembrarmos o começo do Capital.

Mas essa subsunção do trabalho sob o capital, signo dos tempos modernos, repousa sobre uma contradição insolúvel: o trabalho passa a ser apenas um momento do desenvolvimento mais amplo do capital, como se esse último fosse auto-subsistente e não tivesse no trabalho a fonte viva de seu processo de valorização. Isto é, apesar de relegar o trabalho a um momento do desenvolvimento do seu processo de acumulação, o capital continua sendo resultado do próprio desenvolvimento histórico do processo de trabalho. O caráter específico do capitalismo reside precisamente nisso: apesar de ser o movimento criador do valor – substância da acumulação e essência das relações sociais capitalistas -, o trabalho deixa de ser, em última instância, o processo determinante das relações sociais nesta sociedade, passando a ser subjugado e determinado pelas formas que assumem os seus próprios produtos (o valor, a mercadoria, o dinheiro, o capital etc.).

A solução dessa contradição reside, como se sabe, no revolucionamento das condições capitalistas de produção, com a eliminação da propriedade privada e o estabelecimento de uma sociedade comunista. Mas, de um ponto de vista ontológico-dialético, o que isso significa? Mais uma vez, Araújo tem o cuidado de reler as teses marxianas à luz da gramática hegeliana, de sorte que o comunismo aparecerá como uma tentativa de reconciliar o mundo da produção com o verdadeiro sujeito do processo produtivo (o trabalhador), isto é, o Espírito com a sua própria consciência situada no trabalhador como sujeito central desta sociedade que o subjuga e o aliena. Isso porque o ser humano, que é livre em sua essência, deve estabelecer condições em sociedade para produzir um mundo verdadeiramente em harmonia com esta essência, isto é, um mundo realmente livre, ou ainda, na linguagem marxiana, a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. Sem dúvida, esta formulação está assentada na operação lógica hegeliana de reconciliar o conceito com a objetividade.

Sendo assim, pergunta-se Araújo, o que seria o projeto político comunista senão a reconciliação do Espírito consigo mesmo, com a sua própria essência? Pelo simples fato de que, para Marx, o Espírito se encontra estranhado de si mesmo na forma que adquire a exteriorização objetiva da consciência no trabalho estranhado/alienado. Neste sentido, podemos afirmar por analogia que assim como em Hegel o Espírito se estranha de si mesmo na cultura, na ontologia do ser social marxiana, a racionalidade imanente às relações sociais produzidas a partir do processo de trabalho se estranha de si mesma por meio da situação na qual o trabalho se encontra no interior da relação social que define o sujeito moderno como concretamente alienado, a saber: a relação social de exploração estabelecida entre capital e trabalho.

Mas se até aqui insistimos bastante no modo como Araújo aproxima Marx de Hegel, assinalando o quanto o primeiro deve à ontologia do segundo, o que fazer com as reiteradas críticas de Marx a Hegel, em que ele tenta mostrar suas diferenças e especificidades em relação ao autor da Ciência da Lógica? É aqui que podemos constatar a outra face da contribuição deste livro, que corre em paralelo à primeira ao longo de todo o livro, de modo que podemos dizerque não temos apenas um, mas um duplo objetivo que o atravessa: além de, em certa medida, radicalizar as leituras que já apontavam para o peso e extensão da influência hegeliana na crítica marxiana da economia política, esta obra nos mostra como o próprio Hegel esteve surpreendentemente próximo de tal crítica.

Com efeito, a principal tese aqui é a de que, se a diferença entre Hegel e Marx não se encontra propriamente no método, já que Marx se apropria da ontologia dialética hegeliana, então o que os separa é, sobretudo, o contexto histórico em que cada um viveu e refletiu. Nada mais dialético do que isso: se, nesta tradição, a verdade possui um núcleo temporal e histórico, e a tarefa da filosofia é pensar o seu próprio tempo, então ambos cumpriram perfeitamente os seus papéis.

Nesse sentido, a despeito das censuras de Marx contra Hegel, é justo reconhecer que, em primeiro lugar, Hegel vivenciou um tempo no qual o capitalista ainda era uma figura menor, ou seja, um tempo de transição para as sucessivas fases da organização fabril que mais tarde levariam à consolidação do sistema industrial, quando então o capital se tornaria o Espírito e a razão universal, e o capitalista a figura mais poderosa. Sendo assim, não seria possível a Hegel uma crítica ontológica do trabalho na modernidade industrializada tal como realizada por Marx.

Claro que não se trata aqui de mero “contextualismo”, mas de algo mais profundo, como o próprio Araújo nos lembra desde a introdução: é a própria constituição do objeto de estudo de cada um, com a decorrente compreensão da ação política, que está em questão. Neste contexto, bem diferente de Hegel que apontava para a busca de corrigir a contradição imanente ao sujeito moderno estabelecida entre a realidade social e a vida política por meio do Estado político e racional, Marx estava convencido de que somente a ação revolucionária poderia levar a uma sociedade realmente livre e verdadeiramente humana, inclusive, para além do Estado político.

Ainda assim, Hegel apropriou-se da economia política já desenvolvida em sua época e esboçou uma análise que não deixa de se aproximar de alguns dos principais desdobramentos teóricos presentes na crítica da economia política marxiana. Na verdade, Araújo, de modo bastante ousado, chega mesmo a afirmar que Hegel teria antecipado os fundamentos para uma crítica ontológico-dialética da economia política, dentro dos seus limites e possibilidades históricos. Para apoiar controversa afirmação, ele menciona os exemplos da alusão de fundo à existência de uma “classe industrial” que obtém seus “meios” do trabalho de outrem e de uma proto-distinção entre valor de uso e valor de troca – conforme podemos ler na Filosofia do Direito. No entanto, é na Filosofia real, escrita por Hegel já na época de Jena, que Araújo vai buscar as bases de sustentação dessa tese interpretativa, não sem contar com a ajuda de comentadores como Christopher Arthur. Nesta obra, Hegel já percebera a centralidade da forma dinheiro, associada à figura do que Marx iria denominar trabalho abstrato, para articular e mediar os diversos produtos e, com isso, os distintos trabalhos individualizados num processo tipicamente capitalista de socialização do trabalho. Isso faz com que Hegel já antecipe o que mais tarde será um tópico importante para Marx: a insegurança e o caráter em certa medida irracional que marca um modo de produção baseado na propriedade privada que só se socializa indiretamente, post festum, por meio do mercado. Nesse sentido, esse Hegel de Jena já tinha percebido que a possibilidade de o trabalhador preservar sua existência está subordinada à rede de oportunidades que se enreda no todo social assim estruturado. Assim, um vasto número de pessoas está condenado ao trabalho absolutamente brutal, insalubre e incerto nas fábricas, usinas e minas. Hegel teria então sido o primeiro a elaborar filosoficamente a questão de como o produto do trabalho, enquanto processo que provê as necessidades de todos na sociedade burguesa, encontra-se submetido à forma mercadoria e à troca de mercadorias mediada pelo dinheiro. 

Destarte, segundo a leitura proposta por Araújo, tanto em Hegel quanto em Marx constatamos a indissolúvel articulação entre ontologia e economia política, em que o trabalho se conserva como o fundamento universal e, portanto, ontológico do ser humano. Interessa-lhes, cada um no seu tempo e segundo as suas inclinações políticas, o desenvolvimento dialético das particularidades que tencionam o processo histórico renovando a própria universalidade concreta situada no trabalho. Para Hegel, este espírito remete ao Estado racional como Ideia moral objetiva necessária à realização da vida ética de um povo, enquanto para Marx trata-se do comunismo como superação do capital enquanto relação social alienante e responsável por todo estranhamento situado na forma de vida prática da modernidade. 

Para finalizar este breve prefácio deste instigante livro, eu tomarei a liberdade de colocar uma questão que se encontra, por assim dizer, no pano de fundo desta obra, na medida em que a anima e aponta para além dela: Se entre os empreendimentos teóricos de Hegel e Marx não devemos estabelecer uma distinção de natureza, mas sim de contexto histórico, uma vez que ambos pensaram o seu próprio tempo e definiram seus objetos de estudo por meio de uma ontologia dialética, o que significaria realizar o mesmo hoje? O que poderia significar pensar o nosso próprio tempo por meio desse legado que ambos nos deixaram? Para começar, basta pensarmos que permanecemos presos ao sistema capitalista de produção e consumo, que continua a nos impor uma forma de vida que nos conduz repetidamente a experienciar crises, assimetrias e patologias sociais. Ou seja, em certa medida, o tempo presente não é tão distinto daquela realidade que Hegel e, sobretudo Marx, tinha diante dos seus olhos. Nesse sentido, podemos dar razão a Habermas, quando este afirma que “permanecemos contemporâneos dos jovens hegelianos” (Habermas, 2001, p. 67).

Por outro lado, evidentemente, muitos elementos do capitalismo se transformaram ao longo desse tempo. O mundo de hoje parece manter uma estranha convivência entre crise e realismo. De um lado, é inegável que testemunhamos um conjunto importante de crises em diversos níveis: econômico, político, social, mas também e sobretudo ecológico. De outro lado, vivenciamos uma dificuldade de vislumbrar e imaginar outras formas de vida e de organização social. Tudo parece muito complexo e difícil de ser alterado em um nível mais profundo, a despeito dos evidentes problemas intrinsecamente vinculados aos modelos sociais e institucionais predominantes. Diante desse cenário, qualquer empreendimento de teoria crítica precisa, ao mesmo tempo, ser capaz de diagnosticar não só as crises contemporâneas, mas a robustez recalcitrante dos atuais regimes de organização e dominação social.   

Nessa perspectiva, Araújo nos indica, sem desenvolver completamente (o que certamente é tarefa para outro livro), um caminho promissor, já nas conclusões do livro. Trata-se de retomar um elemento bastante presente nas análises ontológicas de Hegel e Marx: a articulação entre objetividade e subjetividade. Com isso, busca-se analisar as tensões e contradições que marcam o processo de formação dos sujeitos, isto é, o modo como o sujeito moderno vivencia o conteúdo das relações sociais sob a forma da ideologia. Parece-me bastante pertinente reinvestir o problema dos processos de subjetivação na contemporaneidade, em sua articulação entre os mecanismos “automáticos” do fetichismo e as produções deliberadamente ideológicas – os quais, aliás, nosso autor faz questão de não confundir, a fim de dar conta da complexidade do movimento de alienação típico das sociedades capitalistas.

Compreender e repensar a intricada relação entre estes três conceitos centrais em Marx – alienação, fetichismo e ideologia – pode de fato ser uma via crucial para uma teoria crítica que pretende retomar a ontologia do sujeito hegelo-marxiana a fim de compreender o seu tempo presente, em que os sujeitos concernidos, a despeito das inúmeras crises e da catástrofe ecológica que se avizinha, parecem se encontrar teimosamente enredados na “estranha objetividade do valor”.

*Leonardo da Hora é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Referência


Wécio Araújo. Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel. São Paulo, Editora Dialética, 2024, 156 págs. [https://amzn.to/3La8amr]

Nota


[i] Trata-se do livro de Ruy Fausto (2007).


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