Suspeito que estamos

Imagem: Hélio Oiticica, Tropicália, Penetráveis ​​PN 2 ‘Pureza é um mito’ e PN 3 ‘Imagético’, 1966–7
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VITOR MORAIS*

Cada um no seu quadrado, seguindo o papel a que lhe foi designado por um Deus que faz feitiço na tribo da mercadoria

Há tempos que venho esperando pelo dia 28 de maio de 2024 para realizar o acerto de contas que aqui segue. Acerto de contas pois foi eu mesmo quem me convidei a fazer a atualização histórica, o balanço de uma época, da bomba relógio armada para metralhar um país que Nuno Ramos soltou, assim, como quem não quer nada além de uma verborragia, na página três da Folha de S. Paulo em 28 de maio de 2014. Faltava menos de um mês para a estreia do Brasil contra a Croácia em Itaquera, abrindo a porteira da Copa do Mundo. De lá para cá, o Brasil tomou 7 a 1 da Alemanha, que ganhou nosso Mundial de 2014, e a zebra da Croácia foi parar na final da Copa de 2018, na Rússia.

Mas eu não vim pela Copa, que agora muda de data conforme a dança climática endinheirada. Isto porque tem dez anos que Nuno Ramos suspeitou. Oficialmente ele não se sentia preparado para dizer sobre nada, e então disse sobre tudo, valendo-se deste sacana recurso de suspeitar. Coisa que pode parecer mezzo irônica, mezzo cortesã, mas que funcionou, pois seu “Suspeito que estamos” foi um marco de época. Este texto é menos pretencioso no desejo da repercussão. Antes, quero dizer do que sei. Afinal, há dez anos não havia apenas futebol para ganhar, mas uma eleição para capitanear a vitória guinando as emoções sociais de um país em erupção estridente. Talvez isto explique por que Nuno Ramos suspeitava sabendo, com mesura estranha aos paulistas. Hoje suspeitar tornou-se algo alienado, para não dizer vendido. Está tudo escancarado. Vamos a veracidade?

Então vou falar sobre o que sei – e que o Nuno já sabia há dez anos. Sei que soube da existência de Nuno Ramos em maio de 2020, quando vi um dos insuportáveis vídeos de Paula Lavigne expondo o confinamento de Caetano Veloso. Sei que a cafonice sem meninice dos vídeos fazia parte de uma estratégia de marketing intelectual do agrado de Caetano. Ele dizia no vídeo que lia Nuno Ramos. Era “O baile da Ilha Fiscal”. Caetano já me chamava atenção à época, para além do frenesi de sua divinolândia. Deparei-me ali no texto de Nuno com uma espécie de pós-réquiem. Fui descobrir depois que ele já havia vertido em defunto o Brasil (Moebius) em seu livro de 2019, Verifique se o mesmo. “É provável, em suma, que tenha escrito sobre algo de que me despeço”. Então a gente cantava para tudo ficar Odara, joia rara, dançando enquanto o navio afundava. Sim, cena do “Titanic”, o titânico.

Eu prefiro o “Valhacouto” de Douglas Germano e Aldir Blanc. “Quero danças sobre as ruínas / Dos reinos da escuridão / Riam, riam, o circo começou a lamber / Eu quero beber pelas esquinas, reza, rimas / Mas vou precisar de vocês”. O engraçado é que também o Nuno cantava para tudo ficar Odara, na sua própria festa de aniversário de 60 anos. Quem é que não cantava? A pancada não é pouca. De algum modo, há a saída à Jim Jones e a saída à Caetano Veloso. E eu estou crente que Jim Jones, Paulo Martins e, por que não, Glauber Rocha, comungam da mesma entidade kamikaze. A singularidade do Brasil de Moebius é que, se Hitler se suicida por covardia, Getúlio Vargas o fez por heroísmo. Ele foi herói. De que, é outra estória. Hoje somos todos kamikazes ao céu, destilando um som que mela o estômago e causa diarreias infinitas.

Sei que Francisco Alambert não estava jogando ideias ao léu quando reivindicou, em seu “Brasil diarreia 2020” o “Brasil diarreia” de Helio Oiticica. Não mais aspiramos. Estamos em um grande labirinto, girando em falso, decidindo se vamos morrer de heroísmo no país em que se morre de Brasil; ou se em nome de uma falta de cuidados terminais, escolheremos pela agônica razão tropicalista (o termo é de Alambert), dançando para tudo ficar Odara quando Odaraebius nem mais existe. Nem nunca existiu. As recentes agendas intelectuais revisionistas do Brasil Modernoebius, que fazem questão de escancarar suas políticas eugenistas e disciplinadoras comprovam isto. Elas se inserem em um contexto maior, “uma mesma e última privatização – a do infinito”. Os sonhos que não envelhecem são findos no mundo do mesmo. Eu também tenho medo do mesmo. Sua autoridade violenta e viril diz mais sobre qualquer sensibilidade desvirilizante de Caetano. Chego a sentir saudades do torturador sentimental cantado em prosa e verso por Chico Buarque e Ruy Guerra.

Em dez anos a Patrícia Poeta copiou a Fátima Bernardes e fez poesia sobre racismo reverso no Jardim Botânico, em rede nacional, social, digital, o que for. O Luciano Huck, com este sobrenome que engana, parecendo de super-herói, super-homem, super super, virou pré-candidato a presidente da República. O príncipe de Higienópolis adorou, falando desde seu principado em ruínas de quem nunca foi rei de fato. Acontece que o homem verde da televisão é meio Datena, meio Silvio Santos; brinca, mas não vai. Covarde. Frouxo. Coisa séria demais. E olha lá; sim, a Portuguesa faliu, e o Galvão Bueno foi aposentado em 2022. Obsoleto demais no “tempo saturado de agoras”, meio folclórico, andava falando mais que o que devia.

E então neste rolo compressor de jogar no lixo tudo que fica velho – e fica velho em um segundo – eu sei muito bem em que o Cacaso pensava quando escreveu em “Jogos florais” (de Grupo Escolar, 1974), o seguinte: “Ficou moderno o Brasil / ficou moderno o milagre: / a água já não vira vinho, / vira direto vinagre”. É um azedume insuportável e onipresente este em que vivemos. Também Jesus (esse foi herói), ao pedir água na cruz, recebeu vinagre. O autor do milagre raiz recebe o milagre Nutella®. A mesma iguaria pós-moderna que os puristas de hoje em dia se negam a comer pela exploração do óleo de palma no sudeste asiático. Os mesmos que fazem listas de palavras proibidas. Há momentos em que acho que todos se merecem neste 2024. O mesmo merece o mesmo.

Mas então lembro que sei dalgo. É o seguinte: há algo na alga que impregna n’algo. A racionalidade, a abstração do capital, que muda dia e noite no vai e vem dos pinguins do mundo, na sua guinada neoliberal, colocou todo mundo como inimigo de todo mundo. Isto me faz crer que não era mero infortúnio o “Se vira nos 30” do Domingão do Faustão. Agora, também nosso lado cumpre este papel na era dos intelectuais influencers. Os sujeitos periféricos, da esquerda dita identitária, vão lá e atacam aliados de classe, de bairro, que encontram zelo de comunidade (de pobreza e fé) nas igrejas evangélicas, que por sua vez instrumentalizam a fé e levam ao limite a subjetivação de que o inimigo mora mesmo ao lado. E politizam, e não querem apenas cargos e vagas em processos seletivos com cotas. Querem mais, muito mais. É um curto-circuito, e é para ser assim mesmo. Não há nada de surpreendente e novo nisso, senão de assustador. Cada um no seu quadrado, seguindo o papel a que lhe foi designado por um Deus que faz feitiço na tribo da mercadoria (a expressão é de Paulo Arantes).

E há nós, marionetes de nós mesmos, que sabemos que existiu passado e então ficamos saudosos. Ah, como foi bom. Esta ressaca de revolução frustrada, utopia tropical, civilização brasileira que vai decolar e salvar o mundo de si próprio. Pobre Brasil, foi comido por aquilo de si mesmo que deveria salvá-lo. Chega de saudade. Vem, vamos embora, gente.

*Vitor Morais foi graduando em História na USP.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES