Por LISZT VIEIRA*
Relatos de alguém que viveu no Chile os momentos trágicos do golpe que levou à morte de Salvador Allende
Morava em Santiago, na rua Agustinas, no centro da cidade. De manhã, acordei assustado com o barulho dos tanques na rua e corri para a janela, de onde avistei uma grande movimentação de pessoas. O síndico encaminhou todos os moradores para a garagem do prédio no subsolo. Aviões bombardearam o Palácio de La Moneda, onde se encontrava Salvador Allende. O Golpe já estava na rua. O último discurso de Allende foi transmitido pela Rádio Magallanes com ruídos de rajadas de metralhadora ao fundo. Pouco depois, a rádio seria fechada e Salvador Allende morto.
Durante o bombardeio eu e minha companheira ficamos no subsolo do prédio. Ouvíamos assustados o barulho das explosões. Quando conseguimos subir de volta ao apartamento, pegamos somente o essencial e nos preparamos para fugir. Os militares liberaram um toque de recolher para permitir aos trabalhadores que estavam no centro voltar para casa. Estávamos acompanhados de um chileno, um amigo que foi conosco para falar com os soldados nas barreiras.
Certamente reconheceriam nosso sotaque estrangeiro, e, além disso, o nosso documento tinha cor diferente. Graças ao nosso amigo, passamos por duas barreiras. Eu saí de casa apressado e deixei meu passaporte francês falso e uma certa quantia em dólares. Não sabia se conseguiria voltar para reavê-los. Tudo estava ocupado pelos militares e havia soldados em toda a parte. Precisávamos deixar o centro da cidade, uma área de risco com franco atiradores em quase todos os prédios.
Fomos para a casa de uma amiga, na periferia do centro. Passávamos os dias em casa. Quando o toque de recolher era suspenso, íamos às ruas encontrar os amigos. Todos os estrangeiros foram convocados a se apresentar. Lembrei-me das palavras de um companheiro uruguaio: Bajo ningún concepto uno se entrega a la policía.
Os que caíram na imprudência de fazê-lo, foram presos e encaminhados ao Estádio Nacional, transformado em centro de tortura. Panfletos lançados de aviões pediam aos chilenos para denunciar os estrangeiros, considerados terroristas. Pela TV, os três integrantes da Junta Militar falavam em repressão implacável e sangue. “Temos de extirpar o cancro do marxismo”, dizia o comandante da Força Aérea.
A ordem era matar sumariamente. Até hoje, não se sabe bem quantos milhares de chilenos e “estrangeiros” foram mortos pela dura repressão que se seguiu ao golpe. Cadáveres eram vistos de dia boiando nas águas turvas do rio Mapocho, que corta Santiago. E, de noite, tiros disparados por franco atiradores e rajadas de metralhadora e fuzil disparadas por soldados atravessavam a madrugada.
Precisava ir ao apartamento pegar o passaporte, recolher dinheiro e algumas roupas. Não podia ir sozinho e precisava de uma fachada, então combinei com duas conhecidas minhas, uma brasileira e uma alemã. As duas eram altas e louras, e fui caminhando no meio delas para passar despercebido. Pensei que se houvesse algum problema os militares iriam olhar para as mulheres, e não para mim. Foi exatamente o que ocorreu. Quando cheguei no meu prédio, percebi que havia um policial parado em frente ao edifício, com óculos Ray-ban, visivelmente um militar.
Já havia visto esse filme no Brasil. Parei por um instante e achei que ele não estava atrás de mim, no meu prédio morava o vice-presidente da CUT chilena, um dirigente sindical muito procurado. Atravessei a rua e fui andando com as duas louras. O policial que vigiava o prédio acompanhava com os olhos as duas mulheres, mas continuei andando em direção ao prédio. O síndico, na verdade um porteiro, uma espécie de concierge, assim que me viu entrar abaixou-se, fingindo consertar uma bomba d’água, e disse: “Largue-se! largue-se!” Já invadiram seu apartamento, invadiram o meu também e disseram que eu estava protegendo os terroristas estrangeiros. Todos os apartamentos de estrangeiros foram invadidos, estão atrás de você.
Senti um calafrio em todo o corpo. O síndico me salvou. Se ele tivesse me denunciado, seria preso imediatamente pelo militar armado que espreitava o prédio do outro lado da rua. Eu costumava assistir jogos de futebol em sua casa, juntamente com um médico uruguaio que morava no prédio com a mulher e dois bebês. Nunca havíamos trocado uma palavra até que, no dia do bombardeio, no subsolo do prédio, o médico virou-se para mim e disse: “Tem uma senhora no prédio que denunciou todos os estrangeiros, dizendo que são todos ligados aos Tupamaros. E denunciou o síndico dizendo que ele é o contato entre Allende e os Tupamaros”.
Na hora, isso me veio à memória, agradeci ao síndico e voltei caminhando, com as mãos trêmulas. Escapei de ser preso. Não pude recuperar minha roupa, meu passaporte, dinheiro, deixei tudo para trás. Fiquei hospedado uma semana na casa dessa amiga na periferia do centro. Conversando com os companheiros nos rápidos encontros, concluímos que só havia duas opções: buscar asilo numa embaixada ou ir para os abrigos da ONU.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) recebia estrangeiros em abrigos e registrava o nome completo dos abrigados. Mas a polícia podia levar os refugiados para interrogatório e, inclusive torturá-los, só não podia matá-los, estavam registrados nesse serviço da ONU. Quando se tratava de nomes visados, o aconselhável era buscar asilo numa embaixada, único local seguro onde a polícia não podia invadir, por razões de extraterritorialidade.
Algumas embaixadas já estavam completamente lotadas de refugiados latino-americanos de vários países. Finalmente, conseguimos chegar na embaixada argentina, que ainda estava com os portões abertos. Algumas horas depois, o governo chileno colocou policiais guardando a porta da embaixada, impedindo a entrada. Alguns companheiros ainda conseguiram entrar pulando o muro por trás da Embaixada.
O clima na cidade era muito tenso. A repressão militar continuava implacável. Os bairros populares e favelas, as poblaciones, eram invadidas e massacradas. No dia 24 de setembro, o Chile amanheceu triste: na noite anterior, Pablo Neruda havia morrido. Faleceu em sua casa de Isla Negra, a uns 120 quilômetros de Santiago. Hoje sabemos que foi envenenado por ordem da ditadura.
O enterro de Pablo Neruda foi emocionante. Foi, na verdade, o primeiro protesto público contra a ditadura desde que Pinochet assumiu o poder. O respeito a Pablo Neruda, prêmio Nobel, imobilizou por algumas horas até mesmo os fascistas do governo Pinochet. Soubemos que, no funeral, uma mulher gritou “Companheiro Pablo Neruda!”. Todos os militantes presentes responderam cantando o hino da Internacional Comunista, e não foram molestados pela repressão.
Nesse dia, dentro da embaixada argentina, um refugiado uruguaio, com sua voz grave, recitou uma poesia, Me matan si no trabajo, Y si trabajo me matan, de Nicolas Guillén e Daniel Viglietti. Naquele casarão, funcionava não só a Embaixada como também o Consulado da Argentina. O Cônsul era peronista de esquerda, e por isso abriu os portões para receber os refugiados. Ele era a verdadeira autoridade naquela Embaixada.
Quando o governo argentino e seus diplomatas reacionários perceberam que na embaixada em Santiago não havia apenas chilenos e argentinos, mas centenas de refugiados uruguaios, brasileiros e bolivianos, mandou fechar o portão e puniu o Cônsul, transferido para Bangladesh, segundo soubemos. Muitos que não conseguiram refúgio em alguma embaixada acabaram presos e levados para o Estádio Nacional, um estádio de futebol usado como centro de tortura.
Nesse Estádio, e no Estádio Chile, muitos prisioneiros foram torturados e assassinados. Um dos casos mais conhecidos foi o assassinato do cantor e compositor chileno Victor Jara, depois de ter suas mãos decepadas na tortura. Nunca me esqueci da canção Aqui me quedo, adaptação de um poema de Pablo Neruda, que começava assim: Yo no quiero la patria dividida/ ni por siete cuchillos desangrada/ quiero la luz de Chile enarbolada/ sobre la nueva casa construída. A partir de 2003, o Estádio Chile passou a chamar-se Estádio Victor Jara. Em homenagem a ele e a todos os companheiros assassinados pela ditadura de Pinochet, relembro aqui uma estrofe da belíssima canção de Pablo Milanés, Yo Pisaré las Calles Nuevamente:
Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada,
y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes.
Durante dois meses, juntamente com 650 pessoas, das quais 150 crianças, fiquei na Embaixada, aguardando as negociações para a transferência dos refugiados para a Argentina. Aí já é outra história. Conto essas e muitas outras histórias da minha clandestinidade e do meu exílio na Argélia, Cuba, Chile, Argentina, França e Portugal no meu livro de memórias A busca: memórias da resistência (Hucitec).
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).
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