Por OSVALDO COGGIOLA*
A Comuna assinalou o nascimento de um novo tipo de revolução social, destinada a destruir o Estado burguês e dissolver a sociedade de classes
O “primeiro governo operário da história” foi produto da primeira crise/guerra de alcance mundial, provocada pela guerra franco-prussiana, que abalou toda Europa e além. A guerra franco-prussiana se desenvolveu entre 19 de julho de 1870 e 10 de maio de 1871, opondo o Império Francês e o Reino da Prússia, que recebeu apoio da Confederação da Alemanha do Norte, da qual fazia parte, e do Grão-Ducado de Baden, do Reino de Württemberg e do Reino da Baviera. Bismarck preparara um poderoso exército e conhecia a situação precária do exército francês. Sabia também que, se fosse atacado pelos franceses, teria o apoio dos estados alemães do Sul e, derrotando a França, já não haveria nenhum obstáculo a seu projeto de unificar a Alemanha.
Os conselheiros de Napoleão III asseguraram-lhe que o exército francês era capaz de derrotar os prussianos, o que restauraria a declinante popularidade do imperador. Mas, logo depois da declaração de guerra, exércitos prussianos avançaram para dentro da França. A eficácia da ofensiva alemã contrastou com a ineficiência da mobilização militar francesa. As forças francesas foram expulsas da Alsácia, enquanto a divisão comandada pelo general François Achille Bazaine foi obrigada a se retirar de Metz. Um exército chefiado pelo próprio Napoleão III e pelo marechal Patrice Mac Mahon tentou libertar Bazaine, veterano da aventura mexicana do Segundo Império, mas acabou cercado por Helmuth von Moltke, o chefe militar prussiano, em 31 de agosto, dando início à batalha de Sedan, que decidiu o conflito. Em 1º de setembro, os franceses tentaram inutilmente romper o cerco prussiano e, em 2 de setembro, Napoleão III, Mac Mahon e 83 mil soldados renderam-se aos alemães; o Imperador foi capturado e humilhado, antes de partir definitivamente para o ostracismo. A guerra franco-prussiana fora curta e concluiu em um desastre para as tropas francesas; o exército prussiano demonstrou, de forma cabal, a sua superioridade em liderança, tática, logística e em treinamento.
As cifras do desastre francês foram três mil soldados mortos, 14 mil feridos, mais de oitenta mil prisioneiros, entre os quais 39 generais e o próprio Imperador. Em Le Désastre, Émile Zola resumiu o fim da batalha de Sedan: “Como uma torrente turva fluía a multidão para os fossos de Sedan, fazendo pensar nos montões de lama e pedras que a corrente arrasta do alto das montanhas e leva à profundidade dos vales… Acaso era possível censurar algo a esses infelizes que tinham permanecido imóveis, esperando durante doze horas consecutivas, sob os projéteis de um inimigo invisível e frente ao qual se sabiam impotentes? Agora, as baterias inimigas os dizimavam de frente, dos flancos e pela retaguarda; o fogo cruzado era cada vez mais denso à medida que o exército fugia em procura da cidade. O extermínio, que tinha lugar no fundo do sujo fosso para o qual ia sendo precipitada essa massa humana, era total”. A derrota de Sedan implicava, cedo ou tarde, na perda do exército refugiado em Metz e o sítio de Paris. A ocupação de parte do território pelas tropas prussianas era vista como uma humilhação sem precedentes pela população francesa.
A notícia do desastre de Sedan levantou a população de Paris; a 3 de setembro explodiu uma insurreição popular, que continuou a 4 de setembro, quando o povo invadiu a câmara de representantes, exigindo a queda do regime; sob a pressão popular, o Império foi derrubado, a II República proclamada, a Assembleia Legislativa dissolvida, sendo formado um Governo de Defesa Nacional. Léon Gambetta (1838-1882), um dos líderes da revolta, foi nomeado ministro do interior e chefe do governo provisório. Com a proximidade das tropas alemãs, teve que deixar Paris de balão e se refugiar apressadamente em Tours, no oeste da França, onde estabeleceu um governo provisório.
As tropas prussianas mobilizavam-se para atacar Paris, enquanto o novo governo tentava negociar com Bismarck que, irredutível, só aceitava o fim da guerra depois da entrega da Alsácia e de Metz, onde ainda permaneciam as tropas de Bezaine, cercadas pelo exército prussiano. Sem tentar tomar Metz, as tropas prussianas empreenderam um cerco de cinco meses à capital francesa, impondo-lhe um bloqueio de alimentos, fome e constantes bombardeios. Em Tours, Gambetta mobilizou mais de 600 mil homens, organizando 36 missões militares com a finalidade de libertar Paris do sítio prussiano e restabelecer a soberania francesa em seu território; uma a uma, as incursões francesas contra os prussianos fracassaram.
Em dezembro de 1870, o exército de Loire foi disperso em Loigny e, em janeiro de 1871, sofreu nova derrota em Le Mans. Outros dois exércitos franceses, um do Norte e outro do Leste, foram rechaçados respectivamente em Saint-Quentin e na Suíça. No meio das derrotas houve a rendição apresentada pelo marechal Bazaine, no comando de 173 mil soldados, em Metz, a 27 de outubro de 1870. A rendição militar de Bazaine foi considerada por Gambetta um ato de traição à República, levando-o a abandonar o governo provisório. Seguiu-se um período de bombardeios à Paris e, durante 15 dias, casas e fortes situados à margem esquerda do rio Sena foram impiedosamente castigadas pelos pesados projéteis da artilharia prussiana. A capitulação de Paris aconteceu a 28 de janeiro de 1871.
Os erros militares franceses determinaram uma sucessão de derrotas, que levaram à derrubada do governo de Ollivier e seu ministério, sacrificados como bodes expiatórios. A maioria monarquista da Assembleia Nacional era francamente favorável à capitulação ante a Prússia. Apesar da disposição do povo parisiense em resistir, a Assembleia acabou assinando a paz com os alemães. As negociações de paz foram encampadas pela Assembleia Nacional francesa, reunida no dia 12 de fevereiro de 1871 em Bordeaux. No dia 13, Grévy foi nomeado presidente da República e Adolphe Thiers (1797-1877), político e historiador, ascendeu ao cargo de chefe do poder executivo. Liderando o governo provisório, Thiers se opôs a dar continuidade à guerra e passou a negociar a paz nos termos prussianos. As negociações de paz foram iniciadas em Versalhes no dia 21 de fevereiro e, no dia 26, os preliminares da paz já haviam sido assinados. A 1º de março, tropas prussianas adentraram simbolicamente Paris, que já não mais oferecia resistência, deixando a cidade no dia seguinte. Na classe operária e no povo parisiense o fermento político aumentava.
O que era a classe operária francesa, em 1870? Ela estava concentrada nas grandes fábricas e em algumas regiões, mas a pequena indústria e o artesanato eram numérica e socialmente predominantes; França continuava a ser um país predominantemente rural. Grandes impérios industriais, no entanto, já existiam: a fábrica Schneider ocupava 10 mil operários na indústria metalúrgica no Creusot; Wendel ocupava cerca de 10 mil em suas fábricas siderúrgicas da Lorena. As minas de Anzin ocupavam mais de 10 mil mineiros. A concentração era forte nas grandes empresas metalúrgicas, siderúrgicas, têxteis e químicas. Os canteiros navais de Paris tinham mais de 70 mil operários, grande parte vinda da província, num fluxo migratório de proporções enormes, resultado do processo de concentração da terra dos anos precedentes. Em 1866 havia, oficialmente, 4.715.084 pessoas empregadas nas fábricas e na indústria, mas só 1,5 milhão de operários trabalhavam em empresas com mais de dez pessoas. A concentração industrial fora rápida durante o regime bonapartista, mas limitada a alguns ramos industriais e em algumas regiões geográficas (Paris, Norte, Lorena, Sena-inferior e Lyon).
Dos 37 milhões de habitantes da França, mais de 25 milhões eram ainda rurais. As pequenas empresas eram maioria na indústria. Paris tinha uma população de dois milhões de habitantes: a nova divisão administrativa, de 1859, os agrupava em 20 bairros (arrondissements) com 442 mil operários na cidade em 1866 e 550 mil em 1872. Seu número crescia, e também sua concentração: o número de patrões diminuiu de 65 mil em 1847 para 39 mil em 1872; a relação patrão/operário passou de 1:5 em 1847 para 1:14 em 1870: havia algumas empresas com milhares de empregados. Cail, na metalurgia, empregava mais de dois mil operários. Gouin (construção de locomotivas), mais de 1.500, assim como Gevelot. A maior parte das empresas da metalurgia, contudo, ocupava de 10 a 50 operários. Nas profissões tradicionais (têxtil, calçados, artesanato) predominava a pequena indústria artesanal: havia em Paris três grandes casas de produção de calçados.
A guerra, incubadora e aceleradora social, precipitou a revolução; os prazos e ritmos políticos e sociais se aceleraram. Depois da derrota francesa, Blanqui criou um jornal, La Patrie en Danger, para apoiar a resistência de Gambetta contra os prussianos. Participou do motim de 31 de outubro de 1870, ocupando a Prefeitura de Paris durante algumas horas: detido, por isso, na véspera da Comuna de março de 1871, condenado à deportação pelo governo de Adolphe Thiers, foi internado em Clairvaux em razão de sua idade (66 anos). Blanqui viveu o episódio da Comuna na prisão (os communards tentaram trocar a sua liberdade pela de vários prisioneiros dos revolucionários, sem sucesso).
A 4 de setembro, no mesmo dia da proclamação da Segunda República, a seção parisiense da AIT realizou uma reunião com a Câmara Federal das Sociedades Operárias, que não decidiu pela derrubada imediata do governo republicano, mas definiu a luta por uma série de reivindicações, entre elas a abolição imediata da Polícia Imperial, a supressão da chefatura governamental de polícia em Paris, a organização da polícia municipal, a revogação de todas as leis contra a imprensa e contra os direitos de reunião e de associação, o armamento imediato dos trabalhadores e o alistamento em massa para fazer frente à ofensiva da Prússia. Para garantir a luta e vigiar o governo, propunham a formação do “Comitê Central Republicano de Defesa Nacional das Vinte Regiões de Paris”, que passou a existir lado a lado com o governo, criando uma situação de “duplo poder”. As resoluções operárias de setembro anteciparam os desenvolvimentos iminentes, e criaram as bases para uma situação de duplo poder na capital e, potencialmente, no país.
A 28 de janeiro de 1871 o chanceler prussiano Bismarck e Jules Favre, representante do Governo de Defesa Nacional da França, assinaram uma “Convenção sobre o Armistício e a Capitulação de Paris”. Favre aceitou as humilhantes exigências apresentadas pelos prussianos: o pagamento no prazo de duas semanas de uma indenização de 200 milhões de francos, a rendição de uma grande parte dos fortes de Paris, e a entrega da artilharia de campanha e das munições do exército de Paris. Adolphe Thiers, chefe de governo (“esse gnomo monstruoso que seduziu a burguesia francesa durante cerca de meio século porque é a expressão intelectual mais acabada da sua própria corrupção de classe”, na definição de Marx), diante do fato de Paris estar pesadamente armada, e cumprindo o acordo celebrado com a Prússia, ordenou que os soldados franceses confiscassem toda a munição que havia na cidade. Pelo tratado entre França e Alemanha, subscrito em Versalhes em 26 de fevereiro por Thiers e Favre, pela França, e pelo chanceler Bismarck, pela Alemanha, França cedia à Alemanha a Alsácia e a Lorena Oriental e pagaria uma indenização de cinco mil milhões de francos. O esforço e o excedente nacional francês ficariam comprometidos por mais de uma década. Em Paris, antes do fim do cerco prussiano, tentou-se uma nova organização da Guarda Nacional.
A Guarda, na prática, era o povo armado de Paris (300 a 350 mil homens em armas desde que o alistamento geral fora convocado em 1870, após as primeiras derrotas francesas). Ela nomeava seus oficiais em cada batalhão, mas o comando geral era nomeado pelo governo. A 15 de fevereiro de 1871 se reuniram em uma grande sala parisiense os delegados dos batalhões de 18 bairros parisienses. Uma comissão de vinte membros foi designada e encarregada de elaborar um projeto de estatuto: uma declaração de princípio reconheceu como único governo a “Comuna Revolucionária da Cidade”.
O comitê de delegados dos bairros elaborou uma “Declaração de Princípios”, na noite de 22 a 23 de fevereiro de 1871: “Todo membro do comitê de vigilância declara pertencer ao partido socialista revolucionário. Em consequência, busca com todos os meios suprimir os privilégios da burguesia, seu fim como casta dirigente e o poder dos trabalhadores. Em uma palavra, a igualdade social. Não mais patrões, não mais proletários, não mais classes (…) O produto integral do trabalho deve pertencer aos trabalhadores (…) Impedir-se-á, em caso de necessidade com a forca, a convocação de qualquer Constituinte ou outro tipo de Assembleia Nacional, antes que a base do atual quadro social seja mudada por meio de uma liquidação revolucionária política e social. Na espera desta revolução definitiva não reconhece como governo da cidade mais que a Comuna revolucionária formada por delegados dos grupos revolucionários desta mesma cidade. Reconhece como governo do país apenas o governo formado por delegados da Comuna revolucionária do país e dos principais centros operários. Empenha-se no combate por esta ideia e a divulgará, formando, onde não existem, grupos socialistas revolucionários. Articulará estes grupos entre si e com a Delegação Central. Porá todos os meios de que dispõe ao serviço da propaganda pela Associação Internacional dos Trabalhadores”. E concluía: “Não haverá mais opressores e oprimidos, fim da distinção de classes entre os cidadãos, fim das barreiras entre os povos. A família é a primeira forma de associação e todas as famílias unir-se-ão em uma maior, a pátria — nesta personalidade coletiva superior, a humanidade”.
Em sequência, a 3 de março, uma assembleia dos delegados de 200 batalhões da Guarda Nacional fundou a Federação Republicana da Guarda Nacional, votando seus estatutos e nomeando uma Comissão Executiva. Seu Comitê Central foi constituído com um programa: “A República, sendo o único governo de direito e de justiça, não pode estar subordinada ao sufrágio universal… A Guarda Nacional tem o direito absoluto de nomear todos os seus chefes e de revogá-los assim que perderem a confiança de quem os elegeu; entretanto, [apenas] depois de uma investigação preliminar destinada a salvaguardar os direitos sagrados da justiça”. Paralelamente, um manifesto foi afixado nas ruas da capital: “Somos a barreira inexoravelmente erguida contra qualquer tentativa de derrubada da República. Não queremos mais as alienações, as monarquias, os exploradores nem os opressores de todo tipo que, chegando a considerar seus semelhantes como de sua propriedade, fazem-nos servir à satisfação suas paixões mais criminosas. Pela República Francesa e, depois, pela República Universal. Chega de opressão, de escravidão ou de ditadura de qualquer tipo; pela nação soberana, com cidadãos livres, governando-se conforme sua vontade. Então, o lema sublime: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, não será mais uma vã palavra”.[i]
No ventre da crise nacional nascia a revolução social. Paris estava fortemente armada: cerca de 500 mil fuzis e 417 peças de artilharia de diversos calibres, 146 metralhadoras, 271 canhões. Como desarmá-la? Como livrar-se da Federação e de seu Comitê Central? Como controlar a Guarda Nacional? O governo já fizera algumas tentativas localizadas de tirar os canhões das mãos da Guarda Nacional, sem outro resultado que provocar a irritação da população que considerava os canhões como seus: haviam sido fundidos graças às subscrições e doações populares. A 17 de março, o governo afixou um apelo à população parisiense, alertando-a contra certos “homens mal intencionados” que “roubaram canhões do Estado”, “constituíram-se em senhores de uma parte da cidade”, exerciam sua ditadura através de um “comitê oculto”, tendo a pretensão de “formar um governo em oposição ao governo legal instituído pelo sufrágio universal”; o manifesto encerrava-se chamando os “bons cidadãos” a “separar-se dos maus”. Durante a noite de 17 para 18 de março, o governo afixou outro apelo, de conteúdo similar, dirigido especificamente à Guarda Nacional; ao mesmo tempo, empreendeu uma operação de grande envergadura, com quinze mil soldados, com a missão específica de retomar os canhões guardados nos bairros de Montmartre e de Belleville (o “bastião vermelho” de Paris) e na ocupação dos bairros de Saint-Antoine e da Bastilha.
O governo decidira apropriar-se dos canhões que defendiam Paris, provocando a revolta popular. A população parisiense lançou um grito de alarme, tomou conta das ruas, cercou a tropa que devia executar a tarefa; dois generais foram imediatamente fuzilados; pressionada, a tropa confraternizou com o povo e recusou-se a atirar contra o povo na rua. Thiers recolheu-se, com todo seu gabinete, para o Palácio de Versalhes, deixando um vácuo de poder. À meia-noite do mesmo dia, o Comitê Central da Guarda Nacional reuniu-se no Hôtel de Ville (sede da prefeitura de Paris). No esteio da recusa da população parisiense de entregar os canhões de Montmartre e da grande mobilização que ela suscitou, um governo revolucionário foi formado pelos representantes de bairro da Guarda Nacional. Sua primeira proclamação foi em favor da “abolição do sistema da escravidão do salário de uma vez por todas”. O Comitê Central da federação dos bairros ocupou o lugar de autoridade e se instalou no prédio da prefeitura. Na insurreição de março, as categorias de trabalhadores parisienses mais atuantes foram as da metalurgia e a construção, e também os jornalistas.
Assim, a guerra franco-prussiana culminou não só com a criação da nação alemã, mas também com a explosão da Comuna de Paris. Suas principais medidas, embora apenas esboçadas na sua maioria, passariam para a história: a polícia foi abolida e substituída pela Guarda Nacional, a educação foi secularizada, a previdência social foi instituída, uma comissão de inquérito sobre o governo anterior foi formada, e se decidiu por trabalhar no sentido da “abolição da escravidão do salário”. Com a jornada de 18 de março, a revolução iniciada em setembro de 1870 retomou e aprofundou seu curso, abrindo uma nova fase. O Comitê Central começou por abolir o estado de sítio na cidade, suprimir os tribunais militares, decretar anistia geral dos delitos políticos e a imediata libertação dos presos, restabelecer a liberdade de imprensa, nomear responsáveis pelos ministérios e pelos serviços administrativos e militares essenciais.
Na sua proclamação de dia 18, lia-se: “Os proletários da capital, em meio aos desfalecimentos e traições das classes governantes, compreenderam que para eles tinha chegado a hora de salvar a situação tomando em mãos a direção dos negócios públicos […] compreenderam que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo conquistando o poder”. No dia 19 de março, fixaram-se para o dia 22 as eleições para a Comuna. O Comitê Central da Guarda Nacional, politicamente, era formado basicamente por “blanquistas”, por membros da AIT, basicamente “proudhonianos” e por pessoas não filiadas politicamente: “O caráter de classe do movimento de Paris, que antes ficara relegado a segundo plano pela luta contra os invasores estrangeiros, ocorreu do dia 18 de março em diante com traços enérgicos e claros. Como os membros da Comuna eram todos, quase sem exceção, operários ou representantes reconhecidos dos operários, suas decisões distinguiam-se por um marcado caráter proletário. Estas decisões decretavam reformas que a burguesia republicana apenas tinha renunciado a implantar por covardia, e constituíam uma base indispensável para a livre ação da classe operária (como, por exemplo, a implantação do princípio de que, no que diz respeito ao Estado, a religião é um assunto puramente privado) ou iam diretamente ao encontro do interesse da classe operária e, em parte, abriam profundas fendas na velha ordem social”.[ii]
A Comuna de Paris foi proclamada, como no momento álgido da Revolução Francesa do final do século XVIII: ela foi o ponto alto e de virada do movimento organizado do proletariado na Europa, e foi um teste decisivo para a Associação Internacional dos Trabalhadores, que teve papel de destaque desde os primeiros momentos. A denominação de “Comuna” tinha raízes na Revolução Francesa; já houvera uma Comuna de Paris entre 1789 e 1795, sob o controle político dos jacobinos, Comuna que se recusara a obedecer às ordens do governo central depois de 1792, e fora a base da ditadura revolucionária do partido de Robespierre. A Comuna de 1871 foi heterogênea: aderiram a ela os patriotas (nacionalistas) na esperança de que a Comuna retomasse a guerra contra os alemães. Apoiaram-na igualmente os pequenos comerciantes ameaçados de ruína se o pagamento das letras e das rendas não fosse suspenso (o que a Comuna concedeu). Também os republicanos simpatizaram de início com a Comuna, temendo que a reacionária Assembleia Nacional restabelecesse a monarquia. Contudo o papel fundamental no movimento foi desempenhado pelos operários. A Comuna de 1871, todavia, nasceu sitiada pelas tropas prussianas, o que tornou urgente e necessário distribuir comida, dinheiro e armas. O Comitê Central da Guarda Nacional lançou um apelo geral, em 25 de março: “Nossa missão terminou. Vamos ceder o lugar no Hôtel de Ville a nossos novos eleitos, nossos mandatários regulares”.
No 11ème arrondissement de Paris foi formado um Comitê Central republicano, que apresentou um programa mais definido: direito de viver, liberdade individual, liberdade de consciência, liberdade de reunião e associação, liberdade de palavra, de imprensa e de todos os modos de expressão do pensamento, liberdade de sufrágio: “O Estado é o povo se governando a si próprio, composto de mandatários revogáveis, eleitos pelo sufrágio universal direto e organizado. O trabalho coletivo deverá ser organizado, o objetivo da vida é o desenvolvimento indefinido de nosso ser físico, intelectual e moral; a propriedade não deve ser mais que o direito de cada um participar, em razão da cooperação individual, no fruto coletivo do trabalho de todos, que é a forma da riqueza social”.
Em 29 de março, a Comuna suprimiu o alistamento militar obrigatório e diferenciado: “Todos os cidadãos válidos fazem parte da Guarda Nacional”; extinguiu-se o exército profissional permanente, substituindo-o pelo povo armado. Em 2 de abril, aboliu o orçamento dos cultos e decretou a separação entre a Igreja e o Estado, “considerando que a liberdade de consciência é a primeira das liberdades; e que o clero tem sido o cúmplice dos crimes da monarquia contra a liberdade”. Suprimiu o juramento político-profissional que os funcionários públicos deviam prestar e, “considerando que sua bandeira é a da República Universal”, reconheceu os direitos políticos dos estrangeiros, que foram numerosos entre seus membros (o húngaro Frankel, os poloneses Dombrowski e Wrobleski, o italiano Cipriani), presentes e atuantes na Paris revolucionária; alguns foram até eleitos para a própria Comuna. A Comuna não descuidou do simbólico: derrubou a Coluna de Vendôme (cujo bronze provinha de canhões tomados ao inimigo por Napoleão I) por ser “um símbolo de chauvinismo e de ódio contra os povos”; substituiu a bandeira tricolor republicana pela bandeira vermelha, queimou a guilhotina e decidiu pela demolição da Capela Expiatória erguida à memória do rei Luís XVI (deposto e executado pela Revolução Francesa).
No terreno social, a Comuna começou (através de um decreto de 2 de abril) por fixar em seis mil francos anuais o teto do ordenado dos funcionários e membros do governo, igualando-o com o salário operário; também proibiu a acumulação de cargos; um decreto de 20 de abril proibiu o trabalho noturno nas padarias, outro, de 27 de abril, proibiu, tanto nas empresas particulares como na administração pública, as multas e deduções sobre o salário dos trabalhadores. A Comuna anulou o decreto do Parlamento que havia, no início de março, extinguido as moratórias relativas aos aluguéis e aos contratos comerciais; considerando “justo que a propriedade assumisse sua parcela dos sacrifícios”; o decreto de 30 de março suprimiu, de maneira total e geral, os aluguéis para o período de outubro de 1870 a abril de 1871; outro decreto, de 17 de abril, concedeu a moratória até o 15 de julho dos contratos comerciais vencidos, e um prazo de três anos para seu pagamento. Um decreto de 7 de maio obrigou a Caixa de Penhores à restituição gratuita de certos objetos (roupas, móveis, livros, etc) e dos instrumentos de trabalho penhorados (entre 12 e 25 de maio foram restituídos 41.928 itens, no valor total de 323.407,80 francos). Cabe, finalmente, destacar que, em 16 de abril, foi promulgado um decreto que obrigou à reabertura e funcionamento das oficinas e fábricas abandonadas pelos seus donos; estudou-se a forma de viabilizar sua entrega aos trabalhadores organizados em cooperativas: “uma indenização foi prevista para os donos; mesmo assim, tratou-se de uma espécie de ataque à propriedade individual, cabendo admitir que a Comuna deu, então, um passo na via do comunismo”.[iii]
As eleições para a Comuna foram realizadas a 26 de março, obedecendo à democracia direta em todos os níveis da administração pública: representantes revogáveis a qualquer momento, constituindo um governo que fosse ao mesmo tempo legislativo e executivo, com o mínimo de burocracia. 86 representantes de bairro foram eleitos para a Comuna, dos quais só 25 eram de fato trabalhadores manuais. A Comuna, porém, era um organismo proletário: nas eleições, a abstenção nos bairros burgueses foi superior a 60%. Seus membros eleitos formavam um único coletivo sem presidente. Dividiram-se em nove comissões, que reproduziam os antigos ministérios; cada uma escolhia um delegado ao governo. No dia a dia, os batalhões da Guarda Nacional e uma multiplicidade de organismos e coletivos que surgiam (inclusive uma União de Mulheres criada em 8 de abril, que teve um papel fundamental na defesa da Comuna e no início da construção do ensino laico e universal) levavam à prática as determinações da Comuna.
A Comuna era uma forma estatal “expansiva” (o Estado se abria para toda a sociedade), que permitia a liberação das energias e da criatividade da sociedade. Entre suas medidas, contidas na “Proclamação da Comuna ao Povo Trabalhador de Paris”, se encontravam: a organização de conselhos operários nas fábricas abandonadas pelos patrões; a redução da jornada de trabalho para dez horas; a eleição da direção das fábricas pelos trabalhadores; a reforma do ensino. Karl Marx a caracterizou como um regime político proletário, apontando seus traços essenciais: a elegibilidade e revogabilidade permanente de todos os representantes políticos, seu salário não superior ao salário de um operário qualificado (ou seja, a supressão da burocracia estatal ou civil), a supressão dos corpos repressivos e militares permanentes e sua substituição pelo armamento geral da população (a supressão da casta militar). Foram abolidas todas as antigas autoridades: juízes, tribunais, câmara municipal, polícia, estabelecendo a gestão popular de todos os meios de vida coletiva, bem como foi declarado gratuito tudo o necessário à sobrevivência, assim como os serviços públicos. Foram expropriados os solos em geral: a habitação seria um direito de todos, residências secundárias não utilizadas foram ocupadas, os meios de transporte declarados gratuitos. As ruas passaram a ser propriedades dos pedestres, os veículos só poderiam ser usados nas regiões periféricas da cidade. O tempo de trabalho diminuiu, o sistema de multas que era aplicado aos operários foi abolido, estabeleceu-se a aposentadoria aos 55 anos de idade.
A 16 de abril, um decreto proclamou: “A Comuna de Paris: considerando que uma quantidade de fábricas foi abandonada por seus patrões para escapar às obrigações cívicas e sem levar em conta os interesses dos trabalhadores; considerando que, devido a este covarde abandono, numerosos trabalhos essenciais à vida comunal estão interrompidos e a existência dos trabalhadores comprometida; Decreta: As câmaras sindicais operárias estão convocadas a constituir uma comissão que tem por objetivo: 1) Fazer uma estatística das fábricas abandonadas e um inventário exato do estado em que se encontram e os instrumentos de trabalho existentes; 2) Apresentar um relatório sobre a rápida ativação destas fábricas, não mais pelos desertores que as abandonaram, mas pela associação cooperativa dos trabalhadores nelas empregados; 3) Elaborar um projeto de formação das sociedades cooperativas operárias; 4) Constituir um júri para fundamentar em estatuto, quando do retorno dos patrões, as condições de cessão definitiva destas fábricas para as sociedades operárias e a cota de indenização que se deve pagar aos patrões”. “O decreto tinha por objetivo buscar nas organizações operárias algumas fábricas onde pudessem iniciar o movimento (de socialização)”.[iv]
A 24 de abril, o delegado da Comissão do Trabalho e de Trocas, Léo Frankel, da AIT, convocou uma reunião dos representantes sindicais. No dia 25, foi convocado o sindicato que iria ficar à frente do movimento, o dos metalúrgicos. Outros sindicatos atenderam à convocação (no dia 4 de maio, pouco antes do fim da Comuna, foi constituída uma comissão executiva permanente dos sindicatos). Apesar da escassa duração da experiência, a operação teve resultados importantes: uma dezena de fábricas foi confiscada, especialmente nas áreas que interessavam à defesa militar, com recuperação de armas, fabricação de cartuchos e balas de canhão. Cinco empresas haviam feito o recenseamento das fábricas antes do confisco. A Comuna tinha igualmente a sua disposição os estabelecimentos pertencentes ao Estado (a Casa da Moeda, a Impressora Nacional, serviços de manutenção das vias públicas, manufaturas de tabacos, algumas empresas de fabricação de armas) e tinha confiado sua gestão a seus trabalhadores.
Os sindicatos estavam se reorganizando: “O que brecou os sindicatos foi sua desorganização consecutiva à repressão do fim do Império e ao cerco de Paris. Restavam apenas três sindicatos fortes: metalúrgicos, alfaiates, sapateiros. O sindicato dos metalúrgicos, um dos mais influentes e numerosos, com cinco ou seis mil filiados, controlava 20 fábricas de recuperação e de fabricação de armas, uma por bairro, a mais importante era a das oficinas Louvre. Às vésperas da derrota, os metalúrgicos tentaram tomar uma das maiores fábricas metalúrgicas da capital, a fábrica Barriquand, que tinha conhecido durante o Império greves violentas. Em tomo de um sólido núcleo de fábricas, algumas com mais de 100 trabalhadores, os metalúrgicos pensavam conquistar o controle da produção. Os alfaiates obtiveram da Comuna a preferência sobre as empresas privadas e, em maio, tinham o monopólio da vestimenta da Guarda Nacional para suas fábricas. Os sapateiros não tiveram a mesma oportunidade: Godilot detinha o monopólio da fabricação de calçados para a Comuna, o que impediu o confisco de sua empresa, mas gerou protestos violentos na categoria. As outras categorias eram menos ativas e menores, exceto a siderurgia, os gráficos, os serralheiros. A Comuna foi um momento de intensa retomada sindical, com o apoio da Comissão do Trabalho e Trocas. Organizaram-se, sempre como fim de confiscar e gerir a produção: papeleiros, cozinheiros, garçons de café e porteiros de edifícios”.[v] A revolução gerou um movimento para gerir a produção, através da gestão operária.
Eis os artigos principais do regulamento interno dos operários da fábrica de armas do Louvre (onde houve uma disputa pela gestão com um diretor autoritário nomeado pela Comuna): “Art. 1. A fábrica fica sob a direção de um delegado da Comuna. O delegado para a direção será eleito pelos operários reunidos e revogável toda vez que não cumprir seu dever; Art. 2. O diretor da empresa e os chefes de setor serão igualmente eleitos pelos operários reunidos; serão responsáveis de seus atos e também revogáveis […] Art. 6. Um conselho será reunido obrigatoriamente todo dia, às 5 h, com meia hora de tolerância, para deliberar sobre as ações do dia seguinte e sobre as relações e propostas feitas, seja pelo delegado na direção, seja pelo diretor da empresa, o chefe de setor ou os operários delegados. Art. 7. O conselho compõe-se do delegado na direção, do chefe de empresa, dos chefes de setor e de um operário por cada setor, eleito como delegado. Art. 8. Os delegados são renováveis a cada 15 dias; a renovação será feita pela metade, a cada oito dias, e por função. Art. 9. Os delegados deverão prestar contas aos operários; serão seus representantes diante do conselho da direção, e deverão levar suas observações e reivindicações. (…) Art. 13. A contratação de operários seguirá o seguinte: por proposta do chefe da empresa, o conselho decidirá se há vagas para empregar os operários e determinará os nomes. Os candidatos às vagas poderão ser apresentados por todos os operários. O conselho será o único a fazer a avaliação. Art. 14. A demissão de um operário só poderá ocorrer por decisão do conselho, com um relatório do chefe da empresa. Art. 15. A duração da jornada é fixada em dez horas”.
A Comuna introduziu reformas sociais e políticas radicais: 1. O trabalho noturno foi extinto; 2. Oficinas que estavam fechadas foram reabertas para que cooperativas fossem instaladas; 3. Residências vazias foram desapropriadas e reocupadas; 4. Em cada residência oficial foi instalado um comitê para organizar a ocupação de moradias; 5. Todos os descontos nos salários foram abolidos; 6. A jornada de trabalho foi reduzida, e chegou-se a propor a jornada de oito horas; 7. Os sindicatos foram legalizados; 8. Instituiu-se a igualdade entre os sexos; 9. Projetou-se a gestão operária das fábricas (sem, no entanto, implantá-la por completo); 10. O monopólio da lei pelos advogados, o juramento judicial e os honorários foram abolidos; 11. Testamentos, adoções e a contratação de advogados se tornaram gratuitos; 12. O casamento se tornou gratuito e simplificado; 13. A pena de morte foi abolida; 14. O cargo de juiz se tornou eletivo; 15. O calendário revolucionário de 1793 foi novamente adotado; 16. O Estado e a Igreja foram separados; a Igreja deixou de ser subvencionada pelo Estado; os espólios sem herdeiros passaram a ser confiscados pelo Estado; 17. A educação se tornou gratuita, secular e compulsória. Escolas noturnas foram criadas e todas as escolas passaram a ser de sexo misto; 18. Imagens santas foram derretidas e sociedades de discussão foram criadas nas igrejas; 19. A Igreja de Brea, erguida em memória dos homens envolvidos na repressão da Revolução de 1848 foi demolida, o confessionário de Luís XVI e a coluna Vendôme também; a bandeira vermelha foi adotada como símbolo da “unidade federal da humanidade”.
Marx concluiu que se estava produzindo a transição para um novo tipo de Estado, caracterizado pela sua tendência à extinção, ou seja, que “a classe operária não podia limitar-se a tomar tal qual a máquina do Estado e fazê-la funcionar em proveito próprio”, devia destruir essa máquina através da implantação da “forma política enfim encontrada da ditadura do proletariado”: “A Comuna devia ser, não um órgão parlamentar, mas um corpo ativo, executivo e legislativo ao mesmo tempo”. Lênin resumiu, em O Estado e a Revolução: “A Comuna parece apenas substituir a máquina do Estado que destruiu por uma democracia mais completa: supressão do exército permanente, elegibilidade e revogabilidade de todos os funcionários sem exceção. Porém, na verdade, isto apenas representa a gigantesca substituição de certas instituições por outras de um tipo absolutamente diferente. Trata-se justamente de um caso de transformação de quantidade em qualidade: realizada da maneira mais completa e consequente que se possa imaginar, a democracia burguesa converteu-se em democracia proletária; o Estado (força especial de repressão de uma classe determinada) transformou-se em algo que já não era mais um Estado propriamente dito”.
Na Comuna havia delegados radicais, moderados e conservadores; a maioria não seguia qualquer linha partidária; os “líderes” consumiam tempo precioso em infindáveis discussões, quando o mais urgente teria sido agir contra a mobilização dos soldados de Thiers em Versalhes: segundo seu principal cronista, a respeito da defesa só se produziu “legislação insignificante, sem plano militar, sem programa, deixando-se arrastar em discussões em que nada se decide e a partir das quais nada se faz”.[vi] As iniciativas dos membros da AIT marcaram os passos da revolução, mas na eleição interna da Comuna eles ficaram em minoria. Os membros das seções parisienses da Internacional que fizeram parte da Comuna, eram Assi, Avrial, Beslay, Chalain, Clémence, Lefrançais, Malon, Pindy, Theisz, Vaillant, Amouroux e Géresme. A estes se somariam outros eleitos no decorrer da Comuna, como Serrailler. A “maioria” na Comuna coube aos adeptos de Blanqui: o “partido blanquista” era uma realidade, organizado em “seções”, segundo a tradição jacobino-radical da I República: “Os membros da Comuna dividiram-se em uma maioria, os blanquistas, que predominaram no Comitê Central da Guarda Nacional, e uma minoria, os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, que compunham a escola socialista preponderantemente formada por adeptos dos proudhonistas”.[vii]
Edouard Vaillant, responsável educacional da Comuna, era membro do “partido blanquista” (no entanto, segundo Engels, “conhecia o socialismo científico alemão”). Os blanquistas, que não faziam parte da AIT, foram desde o início maioria no Comitê Central da Guarda Nacional, e haviam buscado derrubar o governo burguês de Trochu e, depois, de Thiers. Por duas vezes antes de 18 de março de 1871, em outubro de 1870 e janeiro de 1871, haviam organizado insurreições mal sucedidas.
Os blanquistas cultivavam uma teoria conspirativa e “vanguardista” da revolução, julgavam o proletariado incapaz de desenvolver, sob o domínio do capital, a consciência de classe necessária, e por isso julgavam que a revolução seria conduzida no início pela ditadura de um pequeno grupo de revolucionários dedicados, nos moldes dos jacobinos da Revolução Francesa. Porque foram os blanquistas a corrente “hegemônica” na Comuna, sendo esta uma negação de suas práticas conspirativas? Porque, mantendo uma organização clandestina e coesa de militantes disciplinados e dedicados, os blanquistas puderam, antes da Comuna, fazer um amplo trabalho de divulgação revolucionária no proletariado, mesmo sob as repressivas condições do regime de Napoleão III, e forjaram um conjunto de lutadores que se conheciam mutuamente e eram reconhecidos pelos demais operários por sua honestidade e abnegação. Esse conjunto de militantes pôde, quando a situação revolucionária se estabeleceu, tomar decisões rápidas e decisivas, afinadas com o estado de ânimo de conjunto. A ligação concreta e viva com a vida da classe acabou suprindo as debilidades de sua ideologia.
O mesmo se pode dizer dos seguidores das ideias de Proudhon, que eram maioria entre os membros da AIT, e que cultivavam as ideias econômicas mutualistas de seu mestre, uma espécie de socialismo de pequenos produtores, mas que acabaram impulsionando na prática as medidas que apontavam para uma economia coletivista gerida por associações proletárias. Para Engels, “os proudhonistas foram, em primeira linha, os responsáveis pelos decretos econômicos da Comuna, tanto pelos seus aspectos gloriosos quanto inglórios, tais como os blanquistas, por suas ações e omissões políticas. E, em ambos os casos, quis a ironia da história – tal como, de costume, quando doutrinadores assumem o timão do navio – que uns e outros fizessem o contrário daquilo que prescrevia sua doutrina de escola”: os blanquistas, “educados na Escola da Conspiração, mantidos coesos pela disciplina férrea que a esta corresponde, partiam da concepção de que um número relativamente pequeno de homens decididos e bem organizados seria capaz de, em certo momento favorável, não apenas assumir o timão do Estado, como também de, mediante a dinamização de grande e implacável energia, mantê-lo o tempo necessário, até que conseguissem arrastar a massa do povo para a revolução, agrupada em torno do pequeno grupo dirigente. Para tanto, seria indispensável a mais severa e ditatorial centralização de todo o poder nas mãos do novo governo revolucionário”. E, “o que fez a Comuna cuja maioria era composta precisamente por esses blanquistas? Em todas as suas proclamações, dirigidas aos franceses da província, conclamou estes à formação de uma Federação Livre de Todas as Comunas Francesas com Paris, à formação de uma organização nacional que, pela primeira vez, devia ser criada verdadeiramente pela própria nação. Precisamente o poder opressor do governo centralista existente – as forças armadas, a polícia política, a burocracia, criadas por Napoleão em 1798, e que, desde então, foram assumidas por todos os novos governos como instrumentos a serem utilizados contra seus adversários – precisamente esse poder havia de sucumbir, por todos os lados, tal como em Paris já havia sucumbido”.
Outro setor da AIT percebeu as características únicas da Comuna, bem como suas debilidades. Marx registrou suas conclusões em sua mensagem ao Conselho Geral da AIT, A Guerra Civil na França, escrita no calor da revolução, e publicada em junho de 1871. Der Bürgerkrieg in Frankreich foi escrita com o objetivo de disseminar entre os trabalhadores de todos os países o entendimento do caráter e do significado da Comuna.
A Comuna de 1871 assinalou o nascimento de um novo tipo de revolução social, destinada a destruir o Estado burguês e dissolver a sociedade de classes. O Estado-Comuna seria um Estado em vias de autodissolução: “Contra a opinião contemporânea de seus inimigos conservadores, a Comuna de Paris de 1871 não foi só uma sublevação das massas descontentes de pequeno-burgueses e proletários, condicionada pelas circunstâncias críticas da capital francesa. Do mesmo modo que os movimentos paralelos de Lyon, Saint-Étienne e Marselha, a Comuna teve um caráter marcadamente revolucionário e aspirava a uma total transformação da organização social e política da França”.[viii]
Foi a Comuna, devido à sua composição social majoritária, uma revolta “artesanal” e dos lojistas, uma revolução “plebeia”, a última revolta de camadas sociais fadadas a desaparecer pelo desenvolvimento capitalista, ou o último degrau do ciclo revolucionário democrático que conheceu seu esplendor nos séculos XVII e XVIII? Ou “não uma ação orientada para fins especificamente proletários, mas as últimas dores de agonia de um patriotismo jacobino torturado”.[ix] O cenário social francês de 1870 não era o de 1789: já “em fins da década de 1820, o ouvrier substituíra o sans-culotte de orientação pequeno-burguesa como o principal protagonista do protesto social, e os assalariados, mesmo os que trabalhavam como compagnons em pequenas oficinas, já não estavam tão presos aos cordões do avental de seus mestres-artesãos”. Aos revolucionários de 1848 (e, com mais razão, aos de 1871) “no vocabulário francês da época (embora talvez não no nosso) é razoável chamá-los de prolétaires… Apesar do crescimento lento das fábricas em Paris, eles agora se consideravam proletários, e não mais ouvriers, e muito menos sans-culottes. O capitalista, como antítese do prolétaire, era o inimigo”.[x] As limitações políticas da Comuna se evidenciaram no fato dela recuar em apossar-se do Banco Central da França, limitando-se a tomar dinheiro emprestado, enquanto o governo de Thiers continuou usando-o tranquilamente: “Naqueles cofres há 4,6 milhões de francos” – lamentava Lissagaray – “mas as chaves estão em Versalhes; dada a tendência do movimento para conciliar-se com os prefeitos, ninguém se atreve a arrombar os ferrolhos e fechaduras”.
O arrombamento dos cofres poderia também ser visto como uma apropriação indébita dos depósitos dos camponeses, cujo apoio a Comuna almejava. A Comuna vacilou e recuou em dar seu passo decisivo: ultrapassar a legalidade republicana e suprimir a propriedade privada burguesa, sem o qual, no entanto, tornar-se-ia impossível “abolir a escravidão assalariada”. A experiência revolucionária parisiense foi de breve duração; dois meses depois de sua instauração, foi destruída de modo violento e selvagem, arrastando na sua derrota as tentativas incipientes de se organizar comunas em outras cidades e regiões francesas.[xi]
*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).
Notas
[i] Nicole Priollaud. 1871: la Commune de Paris. Textes réunis. Paris, Levi & Messinger, 1983.
[ii] Friedrich Engels. A guerra civil na França, introdução de 1891. In Osvaldo Coggiola (org.) Escritos sobre a Comuna de Paris. São Paulo, Xamã, 2003.
[iii] Georges Bourgin. La Commune 1870-1871. Paris, Les Éditions Nationales, 1939.
[iv] Jacques Rougerie. Dix-Huit Cent Soixante et Onze. Jalons pour une histoire de la Commune de Paris. Paris, Presses Universitaires de France, 1972.
[v] Jacques Rougerie. Paris Libre 1871. Paris, Seuil, 1971.
[vi] Prosper-Olivier Lissagary. Histoire de la Commune de 1871. Paris, François Maspéro, 1983. O livro, publicado em 1876, visava a combater “as mentiras e calúnias burguesas” que se seguiram à supressão da Comuna.
[vii] Friedrich Engels. Op. Cit.
[viii] Hans Mommsen. “Commune” de Paris. In: C. D. Kernig. Marxismo y Democracia. História 2. Madri, Rioduero, 1975.
[ix] Leopold Schwarzschild. El Prusiano Rojo. La vida y la leyenda de Karl Marx. Buenos Aires, Peuser, 1956.
[x] George Rudé. Ideologia e Protesto Popular. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
[xi] Jeanne Gaillard. Communes de Province, Commune de Paris, 1870-1871. Paris, Flammarion, 1971.