A tragédia palestina

Área de Gaza bombardeada por Israel / Reprodução Telegram
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PEPE ESCOBAR*

O fanatismo obsessivo de Israel para conduzir a noção de “crime contra a humanidade” a níveis totalmente novos se enquadraria bem na definição de uma “enfermidade social epidêmica”

Neste momento já se consagrou por inteiro quem está lucrando com a horrível tragédia palestina. Tal como está, temos três triunfos para o Hegemon e um triunfo para a sua nação porta-aviões na Ásia Ocidental.

O primeiro favorecido é o Partido da Guerra Ltda., uma gigantesca falcatrua bipartidária norte-americana. O pedido suplementar de 106 bilhões de dólares da Casa Branca ao Congresso para “assistência” (especialmente à Ucrânia e a Israel) é um maná dos céus para os tentáculos armados do MICIMATT (complexo militar-industrial-Congresso-inteligência-mídia-academia-think tank, na lendária definição de Ray McGovern).

A lavanderia vai trabalhar a todo vapor, digerindo 61,4 bilhões de dólares para a Ucrânia (mais armas e reposição de estoques nos Estados Unidos) e 14,3 bilhões de dólares para Israel (especialmente para “apoio” à defesa aérea e antimísseis).

O segundo favorecido é o Partido Democrata, que vinha maquinando uma incontornável mudança de narrativa do estrondosamente fracassado Projeto Ucrânia. Isso, no entanto, só vai adiar a próxima humilhação da OTAN de 2024, que rebaixará a humilhação afegã ao nível de brincadeira infantil na caixa de areia.

O terceiro favorecido já está incendiando a Ásia Ocidental: a “estratégia” psicopata neoconservadora straussiana, concebida como uma resposta ao vindouro BRICS 11, que já dá sinais na direção da integração da Eurásia, tal como se vislumbrou na semana passada, no Fórum do Cinturão e Rota, em Pequim – o que inclui quase 100 bilhões de dólares em novos projetos de infraestrutura/desenvolvimento.

Por fim, o projeto patrocinado pelos maníacos sionistas genocidas acabou notavelmente turbinado: uma solução final para a questão palestina, que combina terra-arrasada em Gaza, êxodo para o Egito, Cisjordânia convertida em jaula de concentração e, para coroar, uma “judeificação de Al-Aqsa”, consumada com a escatológica destruição do terceiro lugar mais sagrado do Islã, a ser substituído pela reconstrução do Terceiro Templo Judaico.

É claro que tudo está interligado. Vastos setores do Estado profundo norte-americano, em conjunto com o “combo Joe Biden”, gerido pelos neoconservadores, podem aproveitar a nova bonança ombro a ombro com o Estado profundo israelita; aquele que se refugia em uma bolha protegida pela massiva barragem de propaganda, que demoniza todo e qualquer apoio ao drama palestino.

Há um problema, no entanto. Essa sagrada aliança acaba de perder – talvez sem remédio – a esmagadora maioria do Sul Global/Maioria Global, que é visceralmente pró-Palestina. Cidadãos palestinos especialmente instruídos que vivem em Gaza e sofrem durante o indizível, denunciam ferozmente os papéis ambíguos desempenhados por Egito, Jordânia e Emirados Árabes Unidos, ao mesmo tempo que elogiam a Rússia, o Irã e, entre as nações árabes, o Qatar, a Argélia e o Iêmen.

Todo o acima dito desvela uma nítida continuidade com o fim da União Soviética. Washington se recusou a dissolver a OTAN em 1990, para proteger os imensos lucros dos tentáculos belicosos do MICIMATT. A consequência lógica foi o Hegemon e a OTAN agindo em parceria, como uma espécie de Robocop Global, na matança de pelo menos quatro milhões e meio de pessoas na Ásia Ocidental e no deslocamento de mais de 40 milhões; e, depois, na matança, por procuração, de pelo menos meio milhão na Ucrânia, deslocando outras 10 milhões. E contando.

Em nítido contraste com o Império do caos, das mentiras e da pilhagem, o Sul Global/Maioria Global veem, no centro do “nexo atual da história universal”, a emergência daquilo que um sofisticado acadêmico chinês elegantemente descreveu como uma “camaradagem aristocrática” (“aristocratic bromance”). A evidência primeira a devemos ao próprio Vladimir Putin, ao comentar: “Não posso elogiar Xi Jinping, porque seria como se eu estivesse elogiando a mim mesmo, e isso seria uma coisa embaraçosa”. Sim: Putin e Xi – aqueles “autocratas do mal”, para os liberais totalitários atlanticistas – são amigos íntimos e, a rigor, almas gêmeas. Isto leva nosso acadêmico chinês a reconhecer não só o aprofundamento da compreensão mútua entre esses líderes, mas também dos nexos cada vez mais complexos entre os três últimos Estados-civilização soberanos: China, Rússia e Irã.

Nosso intelectual chinês procura mostrar que Putin e Xi, além de “terem praticamente a mesma leitura da realidade geopolítica”, são “os líderes de duas das três soberanias” e se veem “dispostos e capazes para agir com a correção exigida” para deter a matriz hegemônica: “Eles têm a compreensão, a visão, as ferramentas de poder, a vontade e, neste momento, as circunstâncias favoráveis, que lhes permitem colocar limites claros e definitivos às pretensões oriundas do establishment anglo-sionista-americano”. Assim, não é de admirar que sejam temidos, desprezados e descritos como “ameaças existenciais” à “civilização ocidental”.

Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, com os olhos voltados para a realpolitik, permite-se uma avaliação muito mais contundente: “Liderado pelos Estados Unidos, o mundo se encaminha inexoravelmente para um abismo sem fundo. Suas decisões evidenciam claramente não só uma irreversível deterioração mental, como também a perda de quaisquer resquícios de consciência que ainda restem. Essas decisões, tanto as mais significativas como as menores, mostram-se como sintomas flagrantes de uma enfermidade social epidêmica”.

O fanatismo obsessivo de Israel para conduzir a noção de “crime contra a humanidade” a níveis totalmente novos se enquadraria bem na definição de uma “enfermidade social epidêmica”. Senão algo pior. Tel Aviv embarcou numa rota de apagar qualquer pegada cultural, religiosa e civil no norte de Gaza, destruí-la até o rés do chão, expulsar seus moradores e, finalmente, anexá-la. Tudo isso legitimado, na íntegra, pela “ordem internacional baseada em regras” e seus humildes vassalos.

É instrutivo, no entanto, comparar o sonho israelita de uma solução final, com os fatos no terreno. Então, evoquemos o Tenente-general Andrey Gurulev, membro da Comissão da Duma do Estado (Parlamento) russo para a revisão das despesas do orçamento federal em defesa nacional, segurança e aplicação da lei, além de membro da Comissão de Defesa da mesma Duma.

Aqui estão as observações principais de Andrey Gurulev: “Os bombardeios israelenses não têm qualquer efeito militar. (…) Os contingentes armados da Palestina estão em abrigos, enquanto os civis estão morrendo nos edifícios residenciais. Passamos por isso na Síria, quando [no oeste de] Damasco, por exemplo, ficavam sentados em túneis subterrâneos e só saíam quando necessário. O Hamas preparou-se a 100%. Não foi sem razão que o fizeram. Eles têm reservas de armas e alimentos. (…) Os israelenses surgem em colunas de tanques, em veículos de combate de infantaria. O que esperam? Estão esperando os drones voarem sobre suas cabeças? Experimentamos isso durante a Operação Militar Especial [na Ucrânia]. Tanques em áreas urbanas são virtualmente ineficazes”.

“Os americanos estão tentando arrastar o Oriente Médio para a guerra. Aparentemente, decidiram não permanecer apenas cerimoniosamente com Israel. Nesse caso, o dano a Israel seria inaceitável”.

“A respeito dos dois grupos de porta-aviões no Mediterrâneo. A bordo destes navios, segundo os meus cálculos, existem aproximadamente 750-800 mísseis Tomahawk, capazes de cobrir uma porção razoável do território da Federação Russa. (…) Nosso Presidente imediatamente decidiu colocar Mig-31, equipados com mísseis hipersônicos Kinzhal, em prontidão de combate. Por alguma razão, todos imaginam que um avião com um Kinzhal voará para algum lugar, voará ao longo do Mar Negro, mas tudo tem uma dimensão bem mais global. Em primeiro lugar, trata-se da utilização de todos os sistemas de reconhecimento interligados num único sistema de informação, com a emissão de instruções específicas de alvos para pontos de controle. Se uma aeronave entrar no espaço aéreo do Mar Negro, deverá ter um escalão de apoio que a proteja de ataques aéreos inimigos, sistemas de defesa aérea e tudo o mais. Esse é um conjunto global de medidas para dissuadir o agressor norte-americano e fazê-lo pensar duas vezes antes de atacar o território da Federação Russa. À nossa frente estão dois grupos de porta-aviões, equipados até aos dentes, capazes de atingir alvos no território do nosso país. Será que deveríamos ficar aqui parados, cutucando o nariz? Devemos reagir, como de regra”.

“Se todo o Oriente Médio for arrastado para a guerra e os grupos de porta-aviões tentarem atacar o território do Irã, o Irã não vai permanecer em silêncio. Eles têm alvos já definidos, todos os objetos críticos. E vão atacá-los de diferentes maneiras, com Cúpula de Ferro e tudo o mais”.

Os analistas do Pentágono certamente compreendem o que Andrey Gurulev está dizendo. Mas não os psicopatas neoconservadores straussianos. À medida em que a “espessa nuvem negra vem baixando”, para lembrar Bob Dylan, é sempre esclarecedor prestar muita atenção às genuínas vozes da experiência.

Voltemo-nos, portanto, ao Dr. Mahathir Mohamad, 98 anos (não, Henry Kissinger não!). Passou toda a sua vida adulta na política, a maior parte dela como primeiro-ministro de uma nação muito importante (a Malásia); conhece muito bem todos os líderes mundiais, incluindo os atuais dos Estados Unidos e Israel; e nesta fase avançada da vida, nada teme e nada tem a perder. Dr. Mahathir vai direto ao ponto: “O cerne da questão é que todas essas atrocidades cometidas por Israel contra os palestinos derivam do apoio americano a Tel Aviv. Se o governo americano retirasse o seu apoio a Israel e interrompesse toda a ajuda militar ao regime, Israel não teria levado a cabo impunemente o genocídio e o assassinato em massa de palestinos. O governo dos Estados Unidos precisa ser honesto e dizer a verdade. Israel e as suas forças armadas é que são os terroristas. Os Estados Unidos apoiam abertamente terroristas. Então, o que são os Estados Unidos?”

Não faz sentido perguntar isso aos que atualmente dirigem a política externa norte-americana. Eles mal conseguiriam conter a espuma que sairia de suas bocas.

*Pepe Escobar é jornalista. Autor, entre outros livros, de Empire of Chaos (Nimble Books).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no portal da Strategic Culture Foundation.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre Aragão de Albuquerque Walnice Nogueira Galvão Ronald León Núñez Atilio A. Boron Osvaldo Coggiola Francisco de Oliveira Barros Júnior Antonio Martins Tarso Genro Priscila Figueiredo Sandra Bitencourt Gilberto Maringoni Daniel Afonso da Silva João Feres Júnior Marcos Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Érico Andrade Marcos Aurélio da Silva Andrés del Río Ari Marcelo Solon Ricardo Musse José Dirceu Michael Löwy Tadeu Valadares Anselm Jappe Boaventura de Sousa Santos Luís Fernando Vitagliano Juarez Guimarães Henry Burnett Eduardo Borges Jorge Luiz Souto Maior Francisco Pereira de Farias João Carlos Salles Alysson Leandro Mascaro Celso Favaretto Manuel Domingos Neto Heraldo Campos Annateresa Fabris Fábio Konder Comparato Ricardo Antunes Kátia Gerab Baggio Dennis Oliveira Bruno Machado Bernardo Ricupero Liszt Vieira Salem Nasser Gerson Almeida Vinício Carrilho Martinez Maria Rita Kehl Leda Maria Paulani Everaldo de Oliveira Andrade Claudio Katz Daniel Brazil José Geraldo Couto Tales Ab'Sáber Yuri Martins-Fontes Afrânio Catani José Costa Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Abramovay Alexandre de Freitas Barbosa Celso Frederico André Márcio Neves Soares Slavoj Žižek José Raimundo Trindade Eleutério F. S. Prado João Lanari Bo Jean Pierre Chauvin Leonardo Sacramento Eugênio Trivinho Luiz Bernardo Pericás Airton Paschoa José Luís Fiori João Carlos Loebens Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Fernandes Silveira Leonardo Avritzer Henri Acselrad Flávio R. Kothe Luiz Roberto Alves João Adolfo Hansen Denilson Cordeiro Daniel Costa Benicio Viero Schmidt Fernão Pessoa Ramos Francisco Fernandes Ladeira Paulo Martins Otaviano Helene Elias Jabbour Ronald Rocha Rubens Pinto Lyra Mário Maestri Bruno Fabricio Alcebino da Silva Chico Whitaker Ricardo Fabbrini João Sette Whitaker Ferreira Matheus Silveira de Souza Rafael R. Ioris Julian Rodrigues Marcelo Guimarães Lima Lorenzo Vitral Dênis de Moraes Rodrigo de Faria Renato Dagnino Eugênio Bucci Thomas Piketty Valerio Arcary Ronaldo Tadeu de Souza Milton Pinheiro Flávio Aguiar André Singer Manchetômetro Luiz Renato Martins Samuel Kilsztajn Ladislau Dowbor Andrew Korybko Caio Bugiato Antonino Infranca Vladimir Safatle Vanderlei Tenório Carla Teixeira Bento Prado Jr. Eleonora Albano Armando Boito Igor Felippe Santos Antônio Sales Rios Neto José Machado Moita Neto Marcus Ianoni José Micaelson Lacerda Morais Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcelo Módolo Remy José Fontana Gilberto Lopes Luiz Carlos Bresser-Pereira Lincoln Secco Luiz Werneck Vianna Paulo Capel Narvai Marilia Pacheco Fiorillo Michel Goulart da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Mariarosaria Fabris Sergio Amadeu da Silveira Carlos Tautz Leonardo Boff Eliziário Andrade Marilena Chauí Luiz Marques Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary Berenice Bento Fernando Nogueira da Costa Jorge Branco Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gabriel Cohn Chico Alencar Luis Felipe Miguel Luciano Nascimento Michael Roberts João Paulo Ayub Fonseca Marjorie C. Marona

NOVAS PUBLICAÇÕES