Balas de Washington

George Grosz, Air Attack (Fliegerbombe), 1915
image_pdf

Por EVO MORALES AYMA*

Prefácio do livro recém-editado de Vijay Prashad

Este é um livro sobre balas, diz o seu autor. Balas que assassinaram processos democráticos, que assassinaram revoluções e que assassinaram esperanças.

O bravo historiador e jornalista indiano Vijay Prashad emprega toda a sua vontade para explicar e ordenar de forma compreensível e totalizadora o obscuro interesse com que o imperialismo intervém nos países que tentam construir seu próprio destino.

Nas páginas deste livro se documenta a participação dos Estados Unidos do assassinato de lideranças sociais da África, Ásia e da América Latina e nos massacres massivos dos povos que se opõem a pagar com sua própria pobreza os negócios delirantes das corporações multinacionais.

Prashad diz que essas balas de Washington têm um preço: “O preço mais alto é pago pelas pessoas. Porque nestes assassinatos, nesta intimidação violenta, são as pessoas as que perdem suas lideranças em seus locais, um líder camponês, um líder sindical, um líder dos pobres”.

Prashad nos relata de maneira documentada a participação da CIA no golpe de Estado de 1954 contra Jacobo Arbenz Guzmán, presidente da Guatemala democraticamente eleito. Arbenz tivera a intolerável audácia de se opor aos interesses da United Fruit Company.

No Chile, o autor mostra como o governo estadunidense, por meio da CIA, financia, com 8 milhões de dólares, greves e protestos contra Allende.

O que aconteceu no Brasil, no golpe parlamentar que terminou com a destituição da presidenta Dilma Roussef, em agosto de 2016, é um exemplo completo da prática perversa do lawfare, isto é, “o uso da lei como arma de guerra”. O mesmo instrumento foi utilizado contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sofreu 580 dias de prisão como resultado de um julgamento em que a promotoria não apresentou provas concretas, mas apenas “convicções”.

Os tempos mudaram e mudaram os negócios, mas as formas e as respostas do imperialismo apenas se modificaram.

Nós, bolivianos, conhecemos muito bem esta política perversa. Inclusive muito antes dos quase 14 anos de nossa administração do Estado plurinacional da Bolívia, tivemos que enfrentar operações, amedrontamentos e represálias que vinham dos Estados Unidos.

Em 2008, tive que expulsar do país o embaixador estadunidense Philip Goldberg, que estava conspirando com líderes separatistas para lhes dar instruções e recursos para dividir a Bolívia. Naquele momento, o Departamento de Estado estadunidense disse que minhas denúncias eram infundadas. Não sei o que dirão agora, quando é tão evidente a participação da embaixada estadunidense no golpe de Estado que nos derrubou em fins de 2019. O que dirão os futuros pesquisadores que se dedicarem a ler os documentos, hoje secretos, da CIA?

As chamadas doutrinas Monroe e de “Segurança Nacional” tentam converter a América Latina em seu quintal e tentam criminalizar qualquer organização que se oponha a seus interesses e tente construir um modelo alternativo político, econômico e social.

Ao longo das décadas, inventaram uma série de pretextos e construíram uma narrativa para tentar justificar suas criminosas intervenções políticas e militares. Primeiro era a desculpa da luta se soma a desculpa da luta contra o terrorismo.

Este livro traz à memória uma infinidade de ocasiões em que as balas de Washington destroçaram esperanças. O colonialismo utilizou sempre a ideia de progresso de acordo com seus próprios parâmetros e sua realidade. Esse mesmo colonialismo que hoje coloca em crise nosso planeta, que devora os recursos naturais e que concentra a riqueza surgida da devastação diz que nossas leis do Bem Viver são utopias.

Mas se nossos sonhos de equilíbrio com a Pachamama, de liberdade e de justiça social ainda não são realidade ou se viram bloqueadas, isso ocorre principalmente pela intervenção do imperialismo para bloquear nossas revoluções políticas, culturais e econômicas que hasteiam a soberania, a dignidade, a paz e a fraternidade com todos os povos.

Se a salvação da humanidade está longe é porque Washington persiste em utilizar suas balas contra os povos.

Escrevemos estas linhas e lemos estes textos em momentos muito tensos para nosso planeta. Um vírus está colocando a economia mundial em quarentena, e o capitalismo, com sua habitual voracidade e sua necessidade de concentrar riquezas, está mostrando seus limites.

É provável que o mundo que surja deste conturbado ano de 2020 já não seja o que conhecemos. Cada dia se impõe o dever de continuar nossa luta contra o imperialismo, contra o capitalismo e contra o colonialismo. Devemos trabalhar juntos por um mundo em que seja possível mais respeito pelas pessoas e pela Mãe Terra. Para isso, é importante a intervenção dos Estados em favor das maiorias e dos oprimidos. Temos a convicção de que somos a maioria. E que as maiorias, ao fim, vencerão.

*Evo Morales Ayma é ex-presidente da Bolívia.

Referência


Vijay Prashad. Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos. Tradução: Rafael Tatemoto. São Paulo, Expressão Popular, 2020, 168 págs.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES