O socialismo urge

Imagem_Elyeser Szturm
image_pdf

Por Marcos Aurélio da Silva*

Só uma sociedade organizada de modo socialista pode suportar uma situação como a que estamos a viver

Um estudo do Departamento de Epidemiologia da Universidade de Harvard publicado na Science conclui que sem vacina contra a Covid-19 estratégias intermitentes de quarentena serão necessárias pelo menos até 2022. E talvez tenhamos novos surtos a cada ano, ou bianuais, conclui o mesmo estudo.

Nestas condições, economia e sociedade nenhuma podem sobreviver dominadas pela lógica capitalista das leis da oferta e da procura. Ou, com mais precisão, onde o Estado serve a sustentar este ideário, a toda prova misoneísta e conservador.

O ex-presidente Lula disse outro dia que o Estado precisa emitir dinheiro. Conclusão acertada, mas não se trata só disto. Trata-se do fato que só uma sociedade organizada de modo SOCIALISTA — ou por políticas progressivamente socializantes, capazes de organizarem em determinado momento uma nova síntese — pode suportar uma situação destas.

E não se trata de pensar que o vírus pôs a urgência do socialismo, como se um fenômeno externo, saído da natureza, fosse capaz disto. Contra o que dizem as teorias da conspiração, o vírus é obviamente um fenômeno biológico, ligado aos processos naturais e suas mutações.

Assim como não foi a peste bubônica que pôs fim ao feudalismo, mas antes as contradições históricas que já estavam se formando no interior da Idade Média, as mesmas que levaram à democratização da propriedade fundiária, embrião do Kulack inglês, também agora são as contradições do capitalismo que estão pondo em questão o próprio modo de produção.

Numa palavra, a sua forma atual de organização, financeirizada e especulativa, concentradora da propriedade e da renda, não é capaz de fornecer uma resposta a um constrangimento natural de grande dimensão. O capitalismo não é capaz de dominar a natureza nas exigências postas pelo presente, porque o capitalismo já não cria forças produtivas — técnicas, mas também sociais, como o distanciamento de uma visão empobrecida deste conceito exige ―; o capitalismo agora as destrói.

Em meados do século XIV, foram as regiões onde a servidão mais se aproximava da escravidão aquelas que mais sofreram com a peste, fazendo com que os senhores fossem forçados a abrandar as formas de exploração. Não sem lutas, como lembram as periódicas jacqueries ― as grandes revoltas camponesas, geralmente violentas, a queimar Igrejas, a promoverem uma deserção en masse dos produtores.

São as regiões que hoje lembram o nosso Equador, que com o garrote da dívida externa diante de si, é forçado a lançar os cadáveres da Covid-19 nas ruas. E o que dizer das favelas do Terceiro Mundo, quando o vírus ali começar a se espalhar, a cada biênio, impiedosamente? Será o tempo da novas jacqueries, exigindo novas relações sociais, com suas formas jurídicas correspondentes? A saber, as formas de um Estado que não seja o veículo de um ideário conservador e particularista — mas rigorosamente um Estado social.

Não faltarão resistências a esta passagem do “momento egoístico passional” ao “momento ético político”. Toda ordem liberal, seja aquela obscurantista como a mais “esclarecida”, se levantará contra ela, a falar da criação das condições para um “Estado de exceção”, de sociedades autoritárias e de totalitarismo.

A ver o recente artigo de Giorgio Agamben no italiano Il Manifesto (“Stato d’eccezione per un’emergenza immotivata”), típico da démarche pós-moderna que agora hegemoniza o mundo do dissenso, ao se permitir aceitar a confusão de que “toda coerção Estatal” — para lembrarmos uma passagem de Gramsci — é necessariamente “escravidão”, e não “autodisciplina”.

Uma nova escravidão é certamente o projeto da extrema direita que agora está em alta, de Viktor Orbán a Bolsonaro. Mas uma rigorosa dialética exige uma “negação determinada”, a negação de um “conteúdo determinado”, e não a liquidação tuot court do Estado.

Com efeito, o socialismo que urge requer também uma luta no terreno das ideologias.

*Marcos Aurélio da Silva é professor de geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES