As cicatrizes do apartheid

Imagem: Inga Seliverstova
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Por FLÁVIO AGUIAR*

O regime de discriminação racial instituído a partir de 1948 e conhecido com o nome de Apartheid chegou a um alcance e um requinte cruel raramente vistos na história humana

Há exatos 30 anos o regime do Apartheid chegou ao fim na África do Sul. Os principais personagens deste final pacífico para um dos regimes mais odiosos de segregação racial da história humana foram o líder do Congresso Nacional Africano (CNA), o negro Nelson Mandela, depois de amargar 27 anos na prisão, e o líder do Partido Nacional da África do Sul (PN), o branco Frederik William De Klerk, que foi presidente do país entre 1989 e 1994. Neste ano, na primeira eleição realmente universal e democrática no país, Nelson Mandela foi eleito presidente, cargo que ocupou até 1999.

O regime do Apartheid foi oficialmente instituído na África do Sul a partir de 1948, quando o Partido Nacional, liderado por Daniel Malan, venceu as eleições comprometendo-se a manter a supremacia política, econômica e cultural da minoria branca, constituída sobretudo pelos então chamados de Boers, descendentes dos colonos holandeses, hoje chamados de Afrikaaners.

É verdade que o regime segregacionista voltado contra a maioria negra tinha antecedentes longínquos, promovidos pelo colonialismo europeu dos portugueses, da Companhia das Índias Orientais e do Império Britânico, que dominou a maior parte da região até quase o começo da Primeira Guerra Mundial. Entretanto o regime de discriminação racial instituído a partir de 1948 e conhecido com o nome de Apartheid chegou a um alcance e um requinte cruel raramente vistos na história humana, “aperfeiçoando” as segregações anteriores.

Consta que seu principal arquiteto foi Hendrik Verwoerd, que chegou a ser primeiro ministro entre 1958 e 1966. Um exemplo daquele “aperfeiçoamento”: o chamado “Ato de Imoralidade”, de 1927, proibia o casamento entre pessoas brancas e negras. Já o Ato de Proibição de Casamentos Mistos, de 1949, proibia o casamento de pessoas brancas com pessoas de qualquer outra raça.

O Apartheid reconhecia a existência de quatro raças no país: os brancos, os asiáticos, inicialmente chamados de indianos, os “coloured”, que no Brasil o IBGE chamaria de “pardos”, e os negros. Curiosamente, os documentos de identidade de brancos, asiáticos e “coloured” registravam a raça de seu proprietário; os dos negros não, condenados que eram a uma espécie de anonimato humano.

A legislação do Apartheid era vasta e abrangente, e sua violação era considerada um crime contra o Estado, ou lesa-pátria, com punições extremamente severas. Estabelecia a segregação racial em todas as dimensões da vida, da intimidade sexual aos locais de trabalho. Abrangia a licença para o estabelecimento de residência, os locais de trabalho, os serviços públicos, o transporte, a educação, a saúde, o lazer e tudo o mais que a vida pudesse compreender.

Apesar da forte resistência interna e internacional, os governos do Apartheid estiveram longe de permanecerem isolados. Devido à Guerra Fria, contaram com fortes apoios entre políticos conservadores, como Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margareth Thatcher na Inglaterra, no sistema bancário e financeiro internacional, na indústria de armamentos e nos serviços de inteligência policial de diversos países em todos os continentes, inclusive africanos. Tornou-se um forte defensor dos remanescentes do colonialismo europeu na África e apoiador de políticos de direita nos países que dele se liberavam.

Preso em 5 de agosto de 1962, Nelson Mandela tornou-se o principal líder e símbolo da resistência contra o regime, sendo condenado por alta traição algum tempo depois. Passou por algumas prisões durante o pouco mais de 27 anos que ficou no cárcere. Era submetido a um regime duríssimo. Podia escrever apenas duas cartas por ano, cada uma com no máximo 500 palavras e submetidas à censura antes de serem enviadas.

De Klerk foi o político branco que chegou à conclusão de que os dias do Apartheid estavam contados, e se dispôs a apressar o seu fim antes que fosse tarde demais para uma solução negociada. Entre outras providências, apressou a libertação de Mandela, o que aconteceu no começo de fevereiro de 1990. Quatro anos depois, Mandela saia de sua casa no bairro de Soweto, em Johannesburgo, direta e triunfalmente para o Palácio Presidencial.

Se a legislação do Apartheid foi varrida do mapa e hoje ele é considerado um crime contra a humanidade, as suas cicatrizes estão longe de desaparecer. Um relatório do Banco Mundial de 2022 deu à África do Sul a incômoda posição de ser o país mais desigual do mundo. Por exemplo, os traços remanescentes da divisão de bairros residenciais são claramente visíveis, além de outros. Organizações não governamentais e agências do governo reconhecem a existência de racismo e de diferenças graves de oportunidades, emprego e serviços em prejuízo da população negra, que perfaz mais de 80% dos 62 milhões de habitantes do país, sendo que aqueles que têm mais de 30 anos conheceram a vida sob o Apartheid.

Entretanto, apesar das dificuldades, o sentimento que se percebe no tratamento cotidiano com quase todas as pessoas é de alegria e de um otimismo comedido. Claro: viver sob Apartheid devia ser algo tão horrível que qualquer outra forma de vida é bem-vinda.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]

Publicado originalmente na seção “O Mundo Agora”, da Rádio França Internacional (Brasil).


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