Diário a bordo do Cruzeiro Coronavírus

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Flávio Aguiar*

Relato do acompanhamento diário do transcorrer da pandemia

Terça-feira, 31 de março

Situação na Alemanha, às 12:30 (hora local): 67.051 casos registrados. 650 casos fatais. 13.500 altas. Casos considerados graves ou muito graves no momento: 1.979.

Neste momento complicado, neste dia de hoje, o primeiro assunto que me vem à mente é o da disputa brasileira entre a Revolução de 31 de Março e o Golpe de 1o de Abril. O assunto me surgiu depois de ler a Ordem do Dia do Ministério da Defesa e dos ministros militares repetindo o mantra de que o golpe não foi golpe, mas um movimento preventivo em defesa da democracia.

Não adianta: foi golpe mesmo, e me lembro muito bem, o golpe começou em 1o de abril. Estávamos acordados, eu e meu irmão Rogério, na madrugada, quando chegou a notícia pelo rádio: às duas horas da madrugada daquele dia o general Olímpio Mourão Filho começou a movimentação das tropas sob seu comando, em Juiz de Fora, em direção ao Rio de Janeiro. Foi o começo do golpe. Mourão foi recebido pelos militares no Rio a contragosto. Na verdade, ele antecipara o golpe, previsto para ser deflagrado alguns dias depois. Por que terá ele se precipitado? Fumos de glória? Desconfiança em relação aos golpistas-chefes? Vá se saber.

A fake news, que persiste em se tornar fake história, sobre a “Revolução de 31 de Março” veio depois, diante do que os golpistas (não só os militares, é bom lembrar) viam como a tentativa de desmoralização apresentando o que acontecia como uma quartelada do dia dos bobos. Junto com esta, veio a declaração pomposa de que “a Revolução era irreversível”. Bom, o regime instalado durou de facto, como é moda dizer, 21 anos. De cuore, para muitos, ainda não acabou: veja-se o movimento dos que querem o golpe de volta, em torno de Bolsonaro e adjacências.

Falando nisto, a movimentação do ex-presidente Bolsonaro está se tornando patética. Digo ex-presidente porque está ficando cada vez mais claro que ele reina (até mesmo no sentido infantil da expressão, como em “Reinações de Narizinho”), mas não governa mais. Embora possa e vá ainda causar muito estrago. Tanto é verdade que a sua desmoralização internacional atingiu limites nunca dantes navegados: Twitter, Instagram e Facebook censuraram (e desta vez com razão!) as suas mensagens. Um ridículo nunca dantes visto, primeira vez que um chefe de Estado é censurado nestas plataformas. O que comprova a afirmação de que nem mais tão “chefe” ele seja. Desconfio até que ele nem chefia mais o seu clã familiar, sendo, pelo contrário, chefiado por ele. Ele chefia, na verdade, apenas as carreatas de idiotas que correm atrás de suas palavras de ordem, mais talvez a parte do baixo clero das Forças Armadas e de PMs estaduais, além dos generais de pijama aglomerados em seu entorno.

Por aqui o quadro continua desolador. Hoje pela manhã fui ao banco e passei pelo supermercado da esquina. Ruas relativamente vazias. Fila na entrada. Distância de metro e meio a dois metros entre cada um. Na porta do super um vigia controla a entrada, só entra um quando sai outro. Daí o vigia pega diligentemente o carrinho que o sainte deixou e passa um desinfetante na barra. Muitas prateleiras vazias. Sobretudo as de papel higiênico, toalhas de papel, sabonetes, massas e molhos de tomate. Informações disponíveis dizem que o consumo destes produtos triplicou ou quadruplicou nos últimos dias. Os horários estão restritos. Os que funcionavam 24 horas agora funcionam apenas das sete da manhã às oito da noite. E alguns, dizem, estão cogitando reservar horários especiais para idosos, cadeirantes, mulheres grávidas ou com bebês e outros “portadores de necessidades especiais”, como se diz hoje.

Do exterior, notícias aterradoras ou bizarras. Catástrofe nos Estados Unidos, graças à incúria inicial de Donald Trump. Na Espanha, recorde de mortos num único dia: 849 ontem. Quanto à Itália, ficou mais claro pelo menos parte das razões que levaram à sua catástrofe: quando a epidemia se manifestou no norte do país, na Lombardia, a capital, Milão, adotou a consigna que Bolsonaro insiste em vender hoje, “Milão não pode parar”. O prefeito hoje admite que foi um grande erro. Tarde demais.

Na Áustria os supermercados proibiram a entrada de pessoas sem máscaras. Não sei como está o seu fornecimento. Aqui na Alemanha elas estão em falta total. Estamos pensando, eu e minha companheira Zinka, em adaptar uma daquelas máscaras de avião, para os olhos. Quem sabe.

Na Hungria, Viktor Orban aproveitou a oportunidade para fazer aprovar uma lei permitindo que ele governe por decreto. Mais ou menos o que Hitler fez em 1933. Se Bolsonaro e família caírem, poderiam se exilar aí. Duvido que Trump os receba.

Bom, hoje comecei comentando a “Revolução de 31 de Março”. Amanhã começo pelo “Golpe de 1* de Abril”. Até.

PS – Um detalhe bizarro. Atravessamos um inverno pífio para os padrões berlinenses. Temperaturas características de um inverno típico dos planaltos do sul do Brasil, e sem um único floco de neve. Daí a primavera entrou gelada: nas madrugadas, até -8 ÀoC nos arredores de Berlim. E ontem, de surpresa, às duas da tarde, a temperatura caiu para zero grau e… nevou. Meia hora. O suficiente para cobrir nosso pátio com seu manto branco. O tempora, o mores! Pois o tempo, “afora este mudar-se cada dia/outra mudança faz de mor espanto/que não se muda já como soía”.

Quarta-feira, primeiro de abril

Alemanha, 11 horas: 71.808 casos, 775 mortos, 16.100 altas. Atualmente, 2.675 casos graves ou muito graves.

Prometi ontem que hoje falaria sobre o Golpe de 1o de abril. Pretendo fazê-lo, mas… acontece que a vida dá voltas e volteios. Começarei por outra ponta do novelo, lembrando frase imortal de meu colega dos tempos de USP, Joe Peralta: “a vida é uma faca de muitos gumes”.

Acontece que ontem meu irmão Rogério, de 79 anos, faleceu no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Além da dor da perda, neste momento o sentimento se intensifica pela tristeza da distância. Lutava ele há cinco anos contra um câncer que foi minando sua resistência devagar e sempre, até leva-lo a debilidade final. Desde que foi hospitalizado no começo de março só pude, nas circunstâncias, falar com ele ao telefone. Da última vez, na sexta-feira, me convenci de que o desenlace estava próximo. Deixo aqui minha homenagem a ele que me acompanhou sempre com suas asas de irmão mais velho, me abriu caminhos e me protegeu sempre que pôde. Tivemos convergências (muitas) e divergências (poucas): tanto aquelas como estas fazem parte da vida. Estou triste, mas conformado.

O trespasse me trouxe à mente um dos disparates proferido por um bolsonarista de primeira grandeza, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, para quem muitos, “inclusive economistas”, ressaltou, cometem o engano de considerar “que a vida tem um valor infinito”. Como Bolsonaro e os bolsonaristas estão sempre em campanha feroz contra a língua portuguesa, é difícil entender o que ele quis dizer exatamente, embora se saiba que ele estava investindo contra o “confinamento horizontal”. O fato é que ele, querendo enganar a torcida, apontou algo verdadeiro: a vida, de fato, não tem valor infinito, pois não é infinita. Ao contrário, ela é finita, e por isto mesmo deve ser preservada o máximo que se puder, em nível individual, coletivo e hoje, é bom lembrar, planetário. Isto comprova que, mesmo querendo construir uma estupidez, alguém pode apontar algo valioso: o valor da vida.

As frases repetidas à exaustão pelo projeto do Sumo Sacerdote pentecostal que ora ocupa o Palácio do Planalto, sobre a inevitabilidade das mortes que ocorrerão, lembram-me uma lógica, mal digerida por ele, das lições que aprendi quando fiz o serviço militar, há mais de meio século. Nas aulas sobre estratégias ensinava-se que, ao atacar a infantaria uma posição inimiga, devia fazê-lo com três vezes o número dos defensores. Porque, dizia esta lógica, “é normal que num ataque se perca um terço da força atacante, entre mortos e feridos”. É assim, portanto, que esta turma pensa, na verdade. Ao contrario da retórica balofa sobre a “proteção de empregos”, eles pensam que a economia é uma guerra de todos contra todos e que nela, algumas destas vidas (as dos outros) se perderão inevitavelmente.

Bom, no mundo real, o da OMS, da ONU, e de quem esteja de fato preocupado em combater a epidemia, a guerra – a do ou contra o coronavírus – continua. A França agora foi incorporada às regiões catastróficas, tendo-se para tal parâmetro o indicador do número de mortes ultrapassar o da China. França: 52.128 casos até o momento, 3.523 mortes, contra os 81.554 casos e 3.312 mortes entre os chineses até este momento. Os outros casos catastróficos são a Espanha, a Itália e os Estados Unidos de Donald Trump: 185.592 casos, 4.056 mortes.

Outra catástrofe nos ronda, sorrateira. No sábado minha companheira Zinka foi à feira-livre que acontece neste dia, na Nollendorfplatz, perto de nossa casa. É uma feira grande, das mais conhecidas de Berlim, normalmente tem de tudo, mas agora só vende produtos de alimentação. Ela comprou o de sempre, mas gastou pelo menos três vezes mais. Ou seja, a inflação viral está comendo pelas bordas e pelo centro. É aterrorizador, tanto quanto o vírus, pois, para retomar o Camões que inaugurei ontem, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, mas os preços sempre sobem para cima, e depois da subida, nunca mais descem para baixo. Ao contrário, podem ate descer mais para cima.

Por seu turno, o presidente (eleito com quase 98% dos votos, dá para desconfiar) do Turcomenistão, uma ex-República Soviética, vizinho do Irã, do Cazaquistão, do Uzbequistão, do Afeganistão e do Mar Cáspio, atacou o problema do coronavírus de uma maneira de dar inveja a Bolsonaro e Trump. Gurbanguly Berdimmuhamedow (o presidente), que também tem pretensões atléticas, que nem o Bolsonaro, simplesmente proibiu o uso da palavra “coronavírus” e, segundo outras denúncias, está mandando prender quem fale no vírus ou use máscara na rua. É uma vacina radical: se não se fala no problema, ele passa a não existir. Pós-modernamente, é mandado para o não-lugar.

Falando em Bolsonaro, chego, afinal, ao Golpe de 1o de Abril. Lembrei-me de uma crônica antiga de Carlos Drummond de Andrade, em que o poeta dizia que durante anos esperara o “político da Revolução de 31 de Março”, e ele viera: Paulo Maluf. É bom esclarecer que quando o poeta escreveu isto, quem escrevesse num jornal “Golpe”, mesmo que fosse “de 31 de Março”, ou simplesmente “de 64”, era sumariamente censurado, numa solução à la Turcomenistão.

Pois bem, agora podemos (pelo menos ainda) falar em Golpe de 1 o de Abril, e o político mais acabado deste golpe é ele, Jair Messias Bolsonaro, produzido 54 anos (em 2018) depois da inauguração do “Regime Irreversível”. Por quê? Porque o Golpe de 1o de Abril inaugurou a maior fábrica daquilo que hoje se chama de “fake news”. A começar por se apresentar como “Revolução de 31 de Março”, distorcendo não só a data, mas uma palavra de histórico nobre, usurpando-a. A seguir introduziu-nos num corredor onde as palavras foram continuamente massacradas ou simplesmente banidas. Criaram-se expressões esdrúxulas, como “milagre brasileiro”, por exemplo. Baniram-se outras. Lembro-me de ter escrito uma resenha sobre o livro A República comunista-cristã dos guaranis, do jesuíta suíço Clovis Lugon, no jornal Movimento. O censor simplesmente suprimiu a palavra “comunista” da menção ao título do livro. E por aí afora.

Jair Messias, por querer ou sem querer, tornou-se o rei das fake news. Chegou recentemente a distorcer declarações do diretor da OMS para justificar sua proposta de “confinamento vertical”. É de fato o discípulo acabado das artimanhas do Golpe de 1o de Abril. Ambos, irmanados, Jair Messias e o Golpe de 64, são a prova viva de que, de fato, é possível enganar muitos o tempo todo, mas é impossível enganar todos todo o tempo. O Corona pode ter feito soar não apenas as panelas, mas o gongo de Waterloo para o bloco do Jair, quiçá até para Trump.

Quinta-feira, 02 de abril

Alemanha, 15h30 – 79.465 casos. 959 fatais. 19.175 altas. Atualmente 3.408 casos graves ou muito graves.

Desculpem a insistência nos números, mas a situação, além de patética, é muito grave. Estados Unidos versus China, respectivamente: casos: 215.357 x 81.589; mortos: 5.113 x 3.318; altas: 8.878 x 76.408. O pandemônio está nos EUA. Na Espanha, 110.238 casos, 10.003 mortos, 26.743 altas, 6092 casos graves. Explosão.

Reino Unido, 33.718 casos, 2.921 mortos, 135 altas, 163 casos graves ou muito graves atualmente.

Detalhes. No ano passado, foi feita uma pesquisa sobre quais seriam os países melhor equipados para enfrentar uma pandemia. Em primeiro lugar, Estados Unidos. Segundo, Reino Unido. A Coreia do Sul aparece em nono lugar. A China nem aparecia. O que aconteceu? Resposta minha: Donald Trump, Brexit e Boris Johnson.

A campanha de Trump contra o “Medicare universal” de Obama, semelhante ao SUS brasileiro, ainda que menos abrangente. A subestimação da epidemia, como Bolso e seus fanáticos. A reação recalcitrante e tardia de Johnson em Londres. Um desastre, que Bolsonaro quer imitar.

Do Brasil, leio que a mídia tradicional não quer reconhecer o papel vital do SUS na contenção da pandemia. Lealdade às empresas privadas? Preconceito contra o que é público? Necessidade de inflar a bolinha cada vez mais apagada de Paulo Guedes, o incompetente e abúlico? Vá se saber. Provavelmente é tudo junto e algo mais.

Cotidiano: hoje é meu dia de ficar trancado em casa. Esfregar com solução de cloro tudo o que chega de fora. Comida, em banho de hipoclorito de sódio que eu trouxe do Brasil, país adiantado em matéria de prevenção de doenças contagiosas. Ao contrário da Europa, onde até hoje muita gente achava que doença contagiosa era coisa de Terceiro mundo. Esqueceram que Hegel morreu de cólera em Berlim.

Nas ruas, cresce o número de pessoas usando máscaras. Vou reparar uma para mim, já que elas estão em falta, no estilo Durango Kid, Cavaleiro Negro, estas coisas. Vestirei meu poncho, meu chapelão mexicano, sairei à rua, e quero ver quem tasca.

Cinema na quarentena: ontem assistimos O homem que sabia demais”, dirigido por Hitchcock, mas na versão inglesa, de 1934, em preto e branco, que eu nem sabia que existia. Peter Lorre dá um show de bola no desempenho do vilão desalmado que sequestra criancinhas. Hoje vamos rever a versão Hollywood, de 1956, com James Stewart e Doris Day, um de meus favoritos, para comparação.

A versão de 1934, que se passa na Suíça e em Londres (a de 56 troca a Suíça pelo Marrocos), é mais tosca, mas por isto mesmo tem o seu encanto. Tem mais tiroteios, corridas por telhados, lembrando Vertigo, com o mesmo James Stewart e Kim Novak. Ainda outros de meus favoritos são Janela Indiscreta (1954) e Intriga Internacional, 1959. Além de Ladrão de Casaca (1955), em que me apaixonei por Grace Kelly, traindo meu amor pela brasileira Eliana. Infelizmente ela preferiu aquele insosso Príncipe Rainier, de Mônaco, onde o filme foi rodado. 

Continuamos com sol a pino e frio cortante para a estação: 16 horas, 9 graus.

Amanhã tem mais. Até.

Sexta-feira, 03 de abril

Alemanha, 11 horas da manhã: 84.818 casos; mortos: 1.107; altas: 22.440; casos graves ou muito graves no momento: 3.956.

Diz uma das teorias políticas mais correntes no momento que a arte de governar consiste em semear o caos para depois administrá-lo. Jair Messias está refinando a teoria. Pois para ele governar é semear o caos não administrá-lo e ainda culpar os outros por ele. Na verdade, ele está acuado. De um lado, os militares mais próximos da ativa, que espremem seu espaço de manobra. De outro os militares aloprados, que mais atrapalham do que ajudam, como o General Chilique, que foi a uma reunião no Palácio “por engano”, quando deveria permanecer isolado. Do terceiro lado, os simplesmente aloprados, com desfiam uma besteira cruel atrás da outra, como o presidente do Banco do Brasil, que voltou à carga, junto com o nefasto Malafaia, o mala-fala, atacando a quarentena. Ainda adiante, o filho Carluxo, que agora parece digitalizar o pai e afirma que o Brasil caminha a passos rápidos para o socialismo (Que Deus possa ouvi-lo!).

É evidente que Jair Messias sente-se ameaçado, como Macbeth que, depois de assumir o reino, passa a ter delírios com os fantasmas que criou. Neste quadro de pandelírio, a única alternativa é mesmo semear o caos, um destampar da caixa de Pandora dos distúrbios da guerra de todos contra todos que o leve a por o Exército nas ruas (se é que este irá obedecê-lo), as PMs revoltadas contra seus governadores estaduais, as milícias que lhe restarem, junto com as bombas radioativas, tipo Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo, etc.

A ver no que vai dar este bolo abatumado que é o núcleo central do governo hoje, mas que ainda pode explodir. Para completar a desgraça, há o desagradável (para ele) cerco dos que ainda preservam uma frente de competência no pandemônio em que o país pode se transformar, alguns operadores da área da saúde, da economia (não o Guedes, que parece mais perdido do que cachorro em procissão), de estados e prefeituras que estão de fato assumindo atitudes coerentes e condizentes com a gravidade do momento.

Enquanto isto, no mundo ao redor prossegue a dança macabra dos números. Mais de um milhão de infectados, quase 54 mil mortos. Os Estados Unidos lideram espetacularmente as contaminações: 245.380. Espanha e Itália disputam o segundo lugar. São tidos hoje como exemplos de países cujas autoridades não levaram a sério, de início, os riscos da pandemia.

As manchetes espelham a outra pandemia, a do “desespero reativo”. Para aparente surpresa geral, a Rússia envia avião de socorro aos Estados Unidos. Trump envia uma esquadrilha de aviões à China para buscar material de combate contra o vírus. Em Miami um avião chinês, com material sanitário contratado pelo governo baiano, fica retido. Suspeita-se que o governo norte-americano tenha prometido pagar mais pelo material do que o baiano, e que a empresa chinesa esteja fazendo corpo mole para não entregar os produtos a seu freguês original. Estaria o governo norte-americano recorrendo à pirataria?

Os governos do Canadá e da França suspeitam que sim, pois denunciaram a retenção, nos Estados Unidos, de encomendas chinesas detidas a seus países… A Alemanha reclama que os EUA “se apossaram” (expropriaram?) 400 mil máscaras que viriam da China… Será um novo capítulo da guerra comercial de Trump contra o mundo? A Alemanha denuncia: tratavam-se de 400 mil máscaras clínicas, já pagas. Os Estados Unidos ofereceram o triplo para os produtores chineses. E estes anunciaram que vão devolver o dinheiro pago aos alemães. Em outras palavras, é pirataria mesmo! Os piratas da Somália são fichinha perto destes caras (e não me refiro somente aos empresários chineses…).

Ao mesmo tempo, potências do Ocidente bloqueiam proposta russa no Conselho de Segurança da ONU para que se suspendam todos os bloqueios não aprovados pelo organismo internacional. E Donald Trump reforça a esquadra naval no Caribe para cercar a Venezuela, ao mesmo tempo em que mantém o desde sempre e hoje mais criminoso bloqueio contra este país e Cuba, que amplia sua rede de assistência pelo mundo.

O governo alemão anuncia que está estuando ampliar o fechamento de suas fronteiras. Um drama agrícola: é época de colheita, inclusive de aspargos, cuja produção na Alemanha é chamada de “ouro branco”. Se não for colhido agora, se perde. Acontece que a colheita é feita, normalmente, por trabalhadores temporários que vêm da Polônia. Nestes tempos de Corona, nem pensar. O governo lança um chamado a estudantes – que estão sem aulas – ou outras pessoas sem trabalho no momento, que se apresentem como voluntários para ajudar na colheita. Terá sucesso? Os próximos dias dirão.

A chanceler Angela Merkel anuncia que vai suspender sua quarentena, iniciada em 22 de março. Ao mesmo tempo, o governo anuncia o endurecimento das medidas restritivas ao contato social, que deverão vigorar pelo menos até o dia 20 deste mês, quando haverá reavaliação de sua vigência. Doravante a polícia teria autorização para interrogar quem quer que seja nas ruas, parques e praças sobre o que faz ali. Se alegar compras, terá de descrever seu itinerário ou, se estiver voltando, apresentar a nota das mesmas. Nos bancos de praças e parques, será autorizado sentar-se por meia hora, não mais que isso. Reitera-se que é proibido juntarem-se mais de duas pessoas em espaço público, fechado ou não, e vai se intensificar a aplicação de multas aos infratores.

Enquanto isto, a prefeitura de Berlim requisitou dois hotéis para transformá-los em abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica, que vem se intensificando nestes dias de confinamento. E a prefeitura da vizinha cidade de Potsdam anunciou um programa de fornecimento de refeições a famílias pobres cujas crianças as faziam nas escolas. Já o coió (êta, palavra boa!) que dirige o Banco do Brasil declarou que não se pode permitir, por uma mera epidemia, ameaçar os pilares de nossa sociedade, transformando o Estado Brasileiro num Estado Assistencial… Estaria ele pensando no socialismo do Carluxo? Pilares deve ele ter na cabeça, e não vou dizer de quê, por respeito ao decoro.

Como disse o Dr. Dráuzio Varela, esqueçam a vida normal anterior por muito tempo. Esta é a nova “normalidade”, que vai durar. Esqueçam, isto sim, a sandice do desespero que emana do Palácio do Planalto, exemplo hoje cantado no mundo inteiro do que não se deve fazer. Até amanhã.

Sábado, 04 de abril

2 horas. Alemanha, 12 horas – casos: 91.959; mortes: 1277; altas: 24.575. No momento, 3936 casos graves ou muito graves.

De ontem para hoje ganhou corpo na mídia o que já vem se chamando de “A Guerra das Máscaras”. Depois das denúncias de que o governo norte-americano vem pirateando encomendas de material sanitário que deveria ser enviada para outros países (denúncias feitas inicialmente pelos governos da Bahia, França e Canadá), outros casos vieram à tona em diferentes publicações. Diga-se de passagem: as autoridades norte-americanas negam a prática, mas os denunciantes insistem nas denúncias.

O jornal L’Express denuncia que a prática se tornou corrente dentro da própria Europa. O governo francês confiscou máscaras que seriam enviadas à Espanha e à Itália. Idem, a República Tcheca confiou máscaras provenientes da China que iriam para a Itália. Depois de negar a denúncia, o governo tcheco reconheceu o “engano”, mas não esclareceu o que foi feito com as máscaras. Autoridades chinesas disseram que vão enviar uma nova partida para a Itália. A Alemanha denuncia que a Tailândia reteve 200 mil máscaras chinesas que seriam enviadas para a polícia de Berlim. 

As denúncias dão o detalhe de um dos procedimentos: os agentes norte-americanos abordariam os responsáveis pelos carregamentos nas pistas dos aeroportos chineses, oferecendo de 3 a 4 vezes o preço usual pelos equipamentos, em dinheiro vivo. Irresistível.

Denúncias deste tipo vem apontando para um “derretimento” de estruturas que se consideravam sólidas. Por exemplo: a União Europeia. Além das tensões da concorrência, o atual fechamento de fronteiras entre vários dos países membros está expondo a nova situação de fragilidade do chamado Acordo de Schengen (referência ao castelo em Luxemburgo onde ele foi assinado), que garante o livre trânsito de pessoas entre os signatários, que são mais do que os que pertencem à U. E. As relações desta com os Estados Unidos já estavam estremecidas por causa das guerras comercial e fiscal destes contra aquela. A China vem marcando pontos diplomáticos na Europa, apesar das desconfianças existentes. Idem em relação à Rússia. Apesar da campanha contrária feita pelos Estados Unidos, países europeus vêm aceitando mais e mais a ajuda de Cuba. E causa rejeição a atitude norte-americana de intensificar o bloqueio contra Cuba e Venezuela durante este período pandêmico.

À parte a “Guerra das Máscaras” o escândalo de hoje fica por conta de dois médicos franceses que sugeriram, em programa de TV, que em havendo testes para vacina contra o coronavírus, estes deveriam começar pelos países africanos. A afirmação levantou suspeitas de preconceito e racismo. Depois houve tentativas de explicar de que se tratava de um mal-entendido, que os médicos estariam destacando a África por ser este continente habitado por pessoas que têm pouca proteção sanitária, e assim a efetividade das vacinas seria melhor e mais rapidamente apurada. Mas as explicações pareceram aquela emenda que é pior do que o soneto. Não colaram.

Brasil: vieram à tona denúncias de que prefeitos de 14 cidades do interior gaúcho, pressionados por empresários locais, tinham autorizado a abertura irrestrita do comércio local. Voltaram atrás, depois que o governador Eduardo Leite (PSDB) renovou o decreto que proíbe em todo estado a abertura de estabelecimentos comerciais e outros não considerados como de atividades essenciais, e de serem ameaçados de processos por parte do Ministério Público. O caso é particularmente grave porque o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com população mais longeva do país. Ilustra bem o comportamento da escória do empresariado brasileiro, açulada pelo comportamento errático, errado e irresponsável do Sátrapa que ora ocupa o Palácio do Planalto.

Por aqui, estou no terceiro dia consecutivo sem sair de casa. Apesar da temperatura baixa – nove graus às 12h30 – está um sol primoroso e um céu azul-convidativo do lado de fora. Sempre posso ir ao balcão, onde nossas plantas estão brotando e florindo com a primavera. Este é o ponto: entendo porque o governo alemão mandou enrijecer o controle sobre o confinamento e as restrições ao contato social. Ainda que este tenha sido o inverno mais quente que passei desde a mudança para cá, a partir de 2007, estamos há cinco meses com temperaturas objetivamente baixas, oscilando, no mais das vezes, entre zero, perto de zero e alguns dias um pouco abaixo, e dez graus positivos ou pouco acima. E na semana que vem, nos dias que antecedem os feriados da Páscoa, as temperaturas máximas devem subir aos 20 graus. Vai dar ganas de sair à rua em milhões de pessoas, eu incluído.

No momento, minha companheira Zinka foi à feira (apesar dos preços abusivos) atrás de batatas, pão e o que mais encontrar a custos abordáveis. É uma situação curiosa, que lembra a dos caçadores primitivos. A gente sabe onde a “caça” pode estar. E também os riscos dos locais. Supermercado é de maior risco do que feira livre, espaço fechado x espaço aberto. Ao mesmo tempo, supermercado é o lugar onde se encontra mais facilmente algo “caçável”, numa proporção melhor entre custo e benefício. Na “campina aberta” da feira livre o risco de contaminação é menor, mas a “caça” abordável é menos abundante, e o risco de ferimentos graves na bolsa ou carteira de recursos tem sido maior. 

Completa esta sensação de “caçadas primitivas” a constatação de que a gente sai para “caçar o que encontra”. Sinto-me também devolvido a uma sobrevivência marcada pela “coleta”, embora paga: a gente sai e pega o que a nossa “natureza urbana” oferece… E sinto-me também assim: como diz um grande amigo meu, o professor Antonio Dimas, da USP, “o problema da natureza é que ela é muito natural”… ou seja, ela te oferece o que tem, de pernilongos e demais insetos a frutas e água, não o que eventualmente queiras…

A sensação de confinamento, por seu lado, se apresenta como uma cebola. Sinto-me confinado à Alemanha: aeroportos e voos, nem pensar. À Berlim: trens, rodoviárias, muito menos. Ao meu bairro: transporte público, menos ainda. À minha casa: a rua é uma situação de risco…

Vou completar estas sensações de viagem no tempo com uma parábola sobre algo que aconteceu de fato:

Em 2007 fomos – eu e equipe do site Carta Maior – fazer a cobertura do Fórum Social Mundial no Quênia, África Oriental. Depois do evento, fizemos uma excursão ao “País dos Masai”. Maravilha. Planalto, 2.500 metros de altitude. Embora na altura do Equador, à noite fazia um frio de rachar. A certa volta, fomos a uma aldeia Masai. Enquanto alguns se divertiam olhando danças e outras andanças, as oferecidas turisticamente, fiquei conversando com um aldeão, relativamente jovem, que considerei um filósofo local. Ele me contou que pertencia à última geração de sua aldeia que teve de cumprir o antigo ritual da maturidade: sair para caçar um leão (hoje coisa proibidíssima, embora aconteça, como as escapadas comerciais nas aldeias do Brasil). Orgulhava-se de ter sido, do seu grupo, o primeiro a atirar a lança no leão. Daí ele me perguntou se havia algo semelhante no meu país.

Embatuquei. Mas desembatuquei. Expliquei que vivia desde sempre em “cidades” (de que ele já ouvira falar), e que, quando muito jovem, um “ritual de maturidade” na minha cidade natal, Porto Alegre, era subir e descer de um bonde andando. Expliquei o que era “bonde” (já uma entidade inexplicável para as novas gerações brasileiras), os riscos de fazer isto numa “avenida”, o risco menor de fazê-lo pela porta detrás e o maior da porta da frente, etc. Ele matutou um pouco e me disse: “é, isto pode ser tão perigoso quanto caçar um leão”.

Viagem no tempo, para diante e para trás. Enviei para ele um cartão postal da selva de São Paulo, onde eu então vivia, embora já me despedindo para vir morar em Berlim. Como se diz em gauchês, “se Deus quiser amanhã estaremos aqui de novamentes”.

Domingo, 05 de abril

Alemanha, 13:30 hs: 96.108 casos, 1.446 mortes, 26.400 altas. Casos graves ou muito graves no momento: 3.936.

Não é só no Brasil que o fundamentalismo religioso pode contribuir para atrapalhar o combate ao coronavírus. O caso em tela veio de Israel. A maioria dos habitantes da comunidade de Bnei-Brak, ao norte de Tel Aviv, pratica o Judaísmo Haredi, considerado ultraortodoxo. Muitos de seus membros convivem familiarmente em cômodos apertados, com muitas crianças, o que dificulta a permanência em isolamento. Além disto, eles se recusam a utilizar os atuais meios avançados de comunicação, como smartphones, computadores e bugigangas semelhantes. Também costumam não seguir as recomendações do governo “secular” de Israel, obedecendo apenas aos rabinos Haredi. Resultado: Bnei-Brak tornou-se, depois de Jerusalém, o maior foco de infectados e transmissores no país. Somente poucos dias atrás o rabino-mor da comunidade resolveu dar uma ordem para que seus seguidores aderissem ao isolamento. Em consequência disto, membros Haredi passaram a percorrer a cidade com carros-de-som informando a determinação do rabino.

Na Itália, o líder da Lega, de extrema-direita, Matteo Salvini, está pressionando para que as igrejas sejam abertas na Páscoa, alegando que para combater o vírus não basta a ciência, “o bom Deus também serve”. No Brasil temos a proposta do jejum, chamada por Bolsonaro e sua malta de pastores, para fazer “o inferno explodir”. Ora, o inferno já explodiu, no Brasil e no mundo. E confesso que nunca vi se atentar tanto contra o segundo mandamento: “não tomarás o nome de Deus em vão”. Que impiedade!

Não sou religioso, me proclamo “ateu não-praticante”, mas contemplo o universo, dos micro-não sei-mais-o-quê às macro-galáxias, e reverencio o Mistério de tudo isto. Nunca esqueço (e pratico) a recomendação gauchesca de minha avó pampeana, que cresceu em Rivera-Santana-do-Livramento, aquelas cidades unidas por uma praça onde passa a linha da fronteira entre o Brasil e o Uruguai: “o melhor mate se toma de madrugada, olhando as estrelas, solito y Dios”. E de vez em quando, rezo, pois reza de ateu conta em dobro: equivale a hora-extra. Por isto a desfaçatez desta gente, que quer filiar Deus, Alá, Javé, Buda, Tupã, a Pachamama, Iemanjá, ou seja o que for ao seu partido político me escandaliza e enoja. Vade retro…

Bem, hoje a coisa aqui está de lascar. Olho pela janela e vejo o lindo sol convidativo associado a um céu azul-tentador… 15 graus… a temperatura pode chegar aos 17-18 esta tarde… É o primeiro dia de fato de primavera que faz. Amanhã deve ir a 20! Faz-se necessário muita disciplina para manter o isolamento nesta circunstância. Sempre há o balcão, onde à tarde vai bater sol. No prédio ao lado a vizinha jovem toma banho de sol de biquíni! É demais!

Felizmente, o noticiário me contém. Pois leio que a “Guerra das Máscaras” corre solta. Trump anuncia que, no fundo, se apossar das máscaras dos outros não é pirataria! E o governo de Washington bloqueia entrega de ajuda antivírus doada para Cuba. Anuncia ainda que está planejando deixar o Tratado de Céus Abertos, assinado em 1992, que dificulta a corrida armamentista e também os acidentes que criariam situações potenciais de guerra em torno de locais-chave das potências mundiais. E vai intensificando o cerco à Venezuela.

Decididamente, há um traço comum que une Trump e sua corte a Bolsonaro e sua trupe: é a perversidade. São gente perversa, que mente, sabe que mente e ainda mente que não mente. E se compraz em praticar o mal dizendo que está praticando o bem. Lembro-me do filme Touch of Evil (A marca da maldade), de Orson Welles, com o próprio Welles de protagonista, dando um show de bola ao lado de Charlton Heston, Janet Leigh, Akim Tamiroff e ainda com Marlene Dietrich fazendo uma ponta de fechar o comércio (a expressão é pertinente). Nos confins da fronteira entre os EUA e o México, um delegado de polícia norte-americano se compraz, exatamente, em “praticar o bem” fazendo o mal, até que se deixa absorver inteiramente por este. Se já viu, reveja, se não viu, veja de imediato. Está acessível na internet, mas tem de pagar.

Finalizo este comentário de hoje com uma nota de esperança: o manifesto em favor do SUS, assinado por nove ex-ministros da Saúde brasileiros, pertencentes a quatro partidos diferentes. Valeu.

Segunda-feira, 06 de abril

Alemanha: 100.123 casos (69.839 no momento, com 3.936 considerados graves ou muito graves), 1.584 mortos, 28.700 altas. Mais de 50 mil infectados estão na faixa etária entre 15 e 59 anos. A média dos infectados alemães é de 49 anos, enquanto na Itália é de 62 anos.

Está na hora de encerrar esta segunda parte do Diário-Coronavírus.

Na Copa do Mundo de 1958 pela primeira vez emissoras gaúchas fizeram transmissões diretas, desde a Suécia. Um dos locutores (na época a gente dizia “speaker”, assim como se falava “corner”, “off-side”, “center-half”, “center-forward”, “golo” e havia até quem disse, diante de um gol, que “a pelota foi beijar o véu da noiva”), Mendes Ribeiro, da Rádio Guaíba, cunhou uma frase que ficou famosa. O Brasil marcara um gol anulado pelo juiz, segundo ele, injustamente. Logo em seguida o Brasil marcou de novo, com o gol, desta vez, validado pelo juiz. E o Mendes Ribeiro lascou: “Deus não joga, mas fiscaliza”.

Lembrei-me desta frase ao deparar com a notícia de que Boris Johnson, o pequeno Trump britânico, está hospitalizado devido ao coronavírus, depois de ter, de início, minimizado o problema, como os presidentes norte-americano e brasileiro. Quanto ao brasileiro, deveria estar hospitalizado, só não sei se no Hospital das Clínicas ou no Juqueri.

Notícia quem sabe animadora: progressão da doença desacelera, ainda que levemente, na França, Espanha, Itália e Áustria. Porém acelera nos Estados Unidos, e no Brasil os municípios atingidos passam de 400. Weintraub continua sua guerra contra as relações entre Brasil e China e leva traulitada da Embaixada Chinesa.

A “Guerra das Máscaras” ganhou novo capítulo. O senador berlinense, Andreas Geisel, que denunciara que os Estados Unidos se apropriaram de milhares de máscaras encomendadas à firma chinesa 3M, em Bangkok, na Tailândia, voltou atrás. Disse nem ter certeza de que a encomenda fora feita à 3M. Entretanto, permanece de pé o fato de que as máscaras saíram da China e sumiram em Bangkok. Mistério.

O jardim zoológico do Bronx, bairro de Nova Iorque, anunciou que a tigra Nádia está com coronavírus, provavelmente infectada por seu tratador. Três outros tigres e três leões estão com quadro de “tosse seca”. Também apareceu um gato com coronavírus em Hong Kong, infectado por seu dono. Decididamente, os humanos são um perigo.

Olho pela janela: lá fora continua a aparecer o mesmo sol sedutor dos últimos dias. É uma tentação, mas resisto, e entro em meu quarto ou quinto dia consecutivo fechado dentro de casa. Já perdi a conta. Sairei amanhã.

Tenho lido muitos comentários sobre como será o mundo no “Day After”. Leio de tudo, desde previsões que falam em cenários apocalípticos, de conflitos, confrontos, convulsões sociais, febres e outras pandemias, com o fim da União Europeia e a supremacia da China, até outras que desenham um futuro promissor, com mais e mais gentes e dirigentes chegando à conclusão de que o neoliberalismo é uma canoa furada, voltando a crer no papel fundamental do Estado perante a sociedade (curioso, ainda me lembro do tempo em que nós, da esquerda, queríamos a destruição do Estado no Paraíso Terreal que seria instalado depois da inevitável ditadura do proletariado). 

Confesso que permaneço cético quanto a estas previsões. Penso que os neoliberais continuarão neoliberais, nem que seja por muito tempo, os socialdemocratas permanecerão socialdemocratas, os socialistas, socialistas, e os indiferentes, indiferentes. Hábitos mudarão, com certeza. Não tenho estatísticas nem bola de cristal, mas, por exemplo, passei a pagar tudo com cartão, para não tocar em dinheiro. Como já escrevi antes, tenho usado minha reserva de hipoclorito, que trago do Brasil sempre que posso, para desinfetar frutas, legumes e verduras, e todo o pacote que entra aqui em casa leva uma esfrega de uma solução à base do equivalente alemão da nossa Cândida, ex-Qboa da minha infância, que aqui se chama DanClorix. Deve vir da famosa aldeia gaulesa. Certa vez tentei comprar o hipoclorito por aqui: custaria uma fortuna, pois teria de ser importado. E a entrega demoraria coisa de um mês.

Para completar este quadro de mudanças, corremos o risco de reabilitar Pôncio Pilatos.

Uma amiga minha, em São Paulo, me escreveu que um dia desses encontrou algum vizinho no elevador do edifício que começou a falar mal do Dória e a elogiar o Bolsonaro, dizendo que sim, tudo não passa de uma “gripezinha”, etc. Apavorada, ela saiu do elevador assim que pôde, sem discutir com ele. Amigos dela a criticaram por isto. Eu confesso que elogiei seu comportamento. Trata-se de legítima defesa. Discutir com bolsonarista na rua já é um risco. Imagina dentro de um elevador fechado, arriscando levar cusparadas imperceptíveis de Corona-Vírus e estupidez contagiante.

Bem, até mais ver. Cuidem-se.

*Flávio Aguiar é escritor, jornalista e professor aposentado de literatura brasileira na USP.

A primeira parte deste diário no site Matinal.

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