Finanças comportamentais – nos EUA e no Brasil

Imagem: Noah Wilke
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Os vieses comportamentais dos investidores estadunidenses e brasileiros, e as diferenças na propriedade de ações entre eles

1.

A Gallup constatou que 61% dos americanos possuem ações, resultado de sua pesquisa de Economia e Finanças Pessoais em abril de 2023. Esse número é superior aos 56% registrados em 2021 e aos 55% registrados em 2020 – e é o maior desde 2008.

A propriedade de ações teve uma média de 62% entre 2001 e 2008, mas caiu após a recessão de 2007-2009. Permaneceu em um nível reduzido até este ano de 2023.

A medida da Gallup sobre a propriedade de ações do consumidor é baseada em uma pergunta aos entrevistados sobre quaisquer ações individuais possuídas por eles, bem como ações incluídas em um fundo mútuo ou conta de reservas financeiras para aposentadoria, como um 401(k) ou IRA, respectivamente, fundos de pensão fechados e abertos. A propriedade de ações está fortemente correlacionada com a renda familiar, educação formal, idade, estado civil e raça.

Em 2023, as porcentagens de proprietários de ações variavam de 84% de adultos em domicílios com renda superior a US$ 100.000 ou mais e cerca de oito em cada 10 graduados e pós-graduados. Caia a um mínimo de 29% daqueles em domicílios com renda anual inferior a US$ 40.000.

Esse número é superior à média de 51% observada entre 2013 e 2019, de acordo com dados do Fed citados na pesquisa do SCF. Antes da era do investimento financeiro digital, a participação de pessoas físicas no mercado de ações era de 37% em 1992.

A propriedade indireta envolve a participação no mercado de ações por meio de intermediários, como empresas de gestão de patrimônio, fundos mútuos, fundos de hedge ou outras organizações financeiras.

A taxa de participação no mercado de ações chega a 96,4% entre os 10% mais ricos e 91,7% entre o 80º e o 90º percentil, representativo do segundo maior decil de renda. Os 20% mais ricos (94% dos quais possuem ações) são considerados o segmento afluente da classe média, compreendendo mais de 63 milhões de pessoas possuidoras de ativos em renda variável.

A classe média propriamente dita constitui os 40% dos decis de 50 a 90. Ela detém ações em 86% das famílias, enquanto o grupo de renda de 60 a 80% (o 3º e o 4º decil de renda mais alto) tem uma taxa de participação de 78,7%.

Entre os 20% mais pobres dos EUA, apenas 17% das famílias estão representadas no mercado de ações. Mas esse número representa a maior presença de todos os tempos, um aumento de 5 pontos percentuais entre 2010 e 2019.

O valor mediano dos ativos no mercado de ações para todas as famílias em 2022, entre aquelas possuidoras de ativos, era de US$ 52.000. Isso pode ser considerado a média para as famílias americanas em termos de propriedade de ações.

Os 20% mais ricos são representados no mercado por 94% de todas essas famílias, deixando apenas 6% dessas famílias mais ricas fora do mercado. Além disso, eles detêm 87% da capitalização de mercado total. Em contraste, os 20% mais pobres são representados por apenas 17% de suas famílias e detêm apenas 1,2% da capitalização de mercado.

2.

Entre os indivíduos mais velhos, uma parcela significativa dos ativos está concentrada. O valor mediano dos ativos em ações chega a US$ 160.000 para aqueles na faixa etária de 65 a 74 anos, em comparação com US$ 110.000 na faixa etária de 55 a 64 anos, US$ 68.000 na faixa etária de 45 a 54 anos, US$ 30.000 na faixa etária de 35 a 44 anos, e jovens com menos de 35 anos têm uma média de cerca de US$ 12.000 em ativos. Compare com os dados brasileiros abaixo.

Estudos acadêmicos sugerem os vieses heurísticos e comportamentais variarem conforme a renda. Investidores de baixa renda tendem a ser mais avessos ao risco e mais propensos a vender ativos durante quedas de mercado, possível de resultar em perdas financeiras e menor probabilidade de reentrada no mercado.

Investidores de alta renda geralmente possuem maior estabilidade financeira e acesso a aconselhamento profissional. Isto os torna menos suscetíveis a decisões impulsivas baseadas em emoções.

Essas diferenças indicam a educação financeira e o acesso a recursos adequados serem fundamentais para mitigar os vieses comportamentais e promover uma participação mais equitativa no mercado acionário.

Abaixo encontra-se um quadro comparativo entre os principais vieses comportamentais identificados na literatura clássica de finanças comportamentais e suas manifestações típicas em dois contextos distintos. Um refere-se ao investidor norte-americano em renda variável (ações), outro ao investidor brasileiro em renda fixa pós-fixada (juros atrelados à Selic, IPCA etc.)

Quadro comparativo de vieses comportamentais nos dois contextos

Viés ComportamentalManifestação típica nos EUA (ações)Manifestação típica no Brasil (renda fixa)
Aversão à perdaInvestidor reluta em vender ações com prejuízo (efeito disposição); exagera impactos de quedas temporáriasFuga de qualquer produto com risco aparente, mesmo quando há garantia do emissor (ex.: LCI/LCA, Tesouro IPCA)
Excesso de confiançaAcredita conseguir “bater o mercado”; gira carteira com frequência; subestima riscosConfiança excessiva em produtos bancários ou no gerente, mesmo com retornos historicamente baixos
Viés de retrospectivaJulga decisões passadas com base em resultados já conhecidos (“eu sabia: essa ação ia subir”)Crê que manter a poupança foi sempre “seguro” porque “nunca perdeu” — ignora a erosão inflacionária
AncoragemFixa valor de compra de uma ação como referência psicológica (“quero vender quando voltar a $100”)Compara tudo à taxa Selic atual, sem considerar prazo, indexador ou perfil do ativo
Framing (dependência da forma)Toma decisões diferentes dependendo da forma como a informação é apresentada (“risco de perder” vs. “oportunidade de ganhar”)Reage mais a “rendimento garantido” ou “sem risco” diante comparações reais de retorno e risco
Contabilidade mentalSepara dinheiro para “gastos” e “investimentos” de forma irracional, ignorando fungibilidadeCria “caixinhas” mentais: “dinheiro da aposentadoria” na poupança, “dinheiro de emergência” em CDB de longo prazo
Viés de status quoPermanece com a mesma alocação de ativos, mesmo com mudanças no perfil ou no mercadoRecusa-se a sair da poupança ou do CDI, mesmo com alternativas mais rentáveis e seguras
Ilusão de controleAcredita conseguir prever o mercado ou manipular resultados com análise técnica, notícias etc.Confia no gerente porque “sabe o que faz” ou o banco “não indicaria algo ruim”

Nos EUA, o investidor está mais inserido em um ambiente de mercado dinâmico, volátil e descentralizado, onde a tomada de risco é normatizada socialmente. No Brasil, há uma cultura de aversão ao risco institucionalizada, reforçada por décadas de inflação, instabilidade e juros reais elevados. Isso molda um comportamento conservador em Finanças Pessoais. Espero não ser em Política…

Essa comparação evidencia a racionalidade limitada é universal, mas suas formas emergem de arranjos culturais, institucionais e históricos distintos. É um ponto essencial para uma abordagem sistêmica das finanças comportamentais.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]


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