Que país é esse?

Imagem: Tim Mossholder
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Os erros de análise dos detratores do governo Lula e o vale-tudo para a reeleição do atual desgoverno

“Que país é esse?\ Terceiro mundo se for \ Piada no exterior\ Mas o Brasil vai ficar rico\ Vamos faturar um milhão\ Quando vendermos todas as almas\ Dos nossos índios em um leilão\ Que país é esse?!”

Há uma disputa de narrativas ou estórias para o explicar. Porém, números estatísticos não descrevem mais objetivamente a economia brasileira? Permitem falsear a mitologia propagada como fosse verdade sob o erro de pensamento denominado “prova social”. Por mais pessoas acharem uma ideia ser correta, uma maioria não a torna verdadeira.

No caso, é contrafactual a ideia de “Lula deu sorte por causa do boom de commodities”. Ou então a arrogância da afirmativa ideológica: tudo de bom no governo Lula, no primeiro mandato, foi a continuidade da política econômica anterior – mas sem bons resultados, no governo FHC, sua continuidade pela oposição petista seria um contrassenso. Próceres de O Mercado repetem esses autoenganos há duas décadas.

As Contas Nacionais oficiais não deixam mentir. As participações percentuais das atividades econômicas no valor adicionado mostram as mudanças estruturais desde lá.

A Agropecuária representava apenas 5,5% de 2000 a 2005, caiu para 4,8% com o grande crescimento do PIB em 2010. Em 2019, estava ainda em 4,9%. Após a depressão de 2020, devido às exportações, saiu de 6,8% em 2020 e 8,1% em 2021. Por isso os “fazendeiros” votam no atraso? Ledo engano…

O processo de “desindustrialização” não evoluiu durante os dois governos Lula: a Indústria de Transformação produzia 15,3% do valor adicionado em 2000, subiu para 17,4% em 2005 e voltou a 15% em 2010. Em contraponto, aprofundou-se sua perda de participação com 12% em 2019, 11,2% em 2020 e 11,3% em 2021.

Houve sim um crescimento das Indústrias Extrativas de 2000 (1,4%) até o fim do boom de commodities em 2012 (4,2%). Os choques externos recentes propiciaram uma retomada de 2019 (2,9%) a 2021 (5,5%).

Em compensação, com a política de financiamento habitacional e o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) de obras públicas, a Indústria de Construção se elevou de 4,6% em 2005 a 6,3% em 2010. Em 2019, estava em 3,9%, mas em 2021 baixou ainda mais para 2,6% do valor adicionado. O atual desgoverno é totalmente inoperante em incentivos para essa indústria com potencial de gerar milhões de empregos para trabalhadores em busca da primeira oportunidade.

Os Serviços representaram os mesmos 67,8% de 2000 a 2010. Tiveram um declínio de 2019 (73,3%) para 2021 (69,8%). De pouco mais de 2/3 até quase ¾, essas participações demonstram a predominância dos serviços urbanos, na sociedade brasileira, aliás, como em toda a sociedade ocidental do Norte mais rico.

Mas o maior comprovante de erro de análise dos detratores, ao desqualificar, difamar e desvalorizar a importância do governo Lula, acusando-o de direcionar a brasileira para uma pressuposta “economia primário-exportadora”, está na análise das participações percentuais dos componentes da demanda no PIB. O sustentáculo da economia brasileira é a Despesa de Consumo das Famílias. Em 2005 e 2010, era pouco acima de 60% do PIB. Caiu de 65% do PIB em 2019 para 61% do PIB em 2021.

Na era social-desenvolvimentista (2003-2014), a Despesa de Consumo de Governo permaneceu praticamente a mesma com 19% do PIB. Na Era Ultraliberal (2019-2021), caiu de 20% em 2019 para 19% em 2021.

Formação Bruta de Capital Fixo e Variações de Estoque cresceram de 17,2% em 2005 para 21,8% no fim do governo Lula em 2010. No atual desgoverno, manteve-se em 15,5% em 2019, 15,9% em 2020 (com queda absoluta do PIB) e elevou-se para 18,9% em 2021, mas não devido a um plano de recuperação do crescimento sustentado.

O “X da questão” diz respeito às exportações líquidas: diferença entre exportação e importação. Em 2005, a exportação atingia +15,2% do PIB e a importação -11,8% do PIB, ou seja, saldo positivo de 3,4 pontos percentuais. Em 2010, esses percentuais foram, respectivamente, +10,9% do PIB, -11,9% do PIB, ou seja, saldo negativo de um ponto percentual. Quem então consegue comprovar o boom de commodities ter sido o determinante-chave do crescimento do PIB (7,5% em 2010) no governo Lula?!

Ele foi sim relevante para aproveitar bem a oportunidade para acumulação de reservas cambiais (US$ 380 bilhões atingidos no governo de Dilma Rousseff) e a economia brasileira ter deixado de ser ameaçada por ataques especulativos na cotação do dólar e/ou por crises cambiais. Graças aos investimentos realizados na exploração de petróleo no pré-sal sob águas profundas, nos governos petistas, Brasil se tornou exportador de petróleo!

Em 2019, o saldo comercial foi deficitário em -0,7 pontos percentuais (+14,1% do PIB em exportação e -14,8% do PIB em importação), mas não houve crise cambial. Em 2020, inverteu-se para superavitário em +0,7 pontos percentuais (+16,8% contra -16,1%) e, em 2021, para um superávit comercial de um ponto percentual (+20,1% contra -19,1%).

Esses saldos comerciais, evidentemente, não têm capacidade de sustentação do crescimento econômico em longo prazo. Este, em um país semi-continental (½) com grande população, é sustentado principalmente por seu mercado interno e menos pelo mercado externo. Políticas públicas ativas, tendo em vista inclusão social, o ampliam!

As exportações aumentam a produtividade, estimulada já pelas inovações da EMBRAPA e da indústria de máquinas e equipamentos agrícolas, com crédito subsidiado do BNDES, e a competitividade das empresas exportadoras também com crédito subsidiado do Banco do Brasil. Isso ocorre porque elas precisam se adequar às exigências do mercado exterior, potencializando o intercâmbio de fertilizantes, tecnologias e know-how.

Os 10 produtos mais exportados pelo Brasil, em 2020, foram: 1º Soja; 2º Óleos brutos de petróleo ou de minerais betuminosos; 3º Minério de ferro e seus concentrados; 4º Óleos combustíveis de petróleo ou de minerais betuminosos; 5º Carne bovina fresca, refrigerada ou congelada; 6º Celulose; 7º Carnes de aves e suas miudezas comestíveis, frescas, refrigeradas ou congeladas; 8º Farelos de soja e outros alimentos para animais (excluídos cereais não moídos), farinhas de carnes e outros animais; 9º Produtos para a Indústria da Transformação; 10º Açúcares e melaços. Café não entrou nesse ranking.

Após a era social-desenvolvimentista, o país perdeu cinco posições no ranking mundial de países exportadores. Em 2008, ocupava o 22º lugar; atualmente, ocupa o 27º.

O Brasil, segundo a CNI, também vem perdendo relevância quando se avalia a produção industrial mundial. Em 1994, o país contribuiu com 2,7% do valor adicionado da indústria de transformação mundial. Sua participação caiu para 1,2% em 2019.

Os embarques no Brasil para exportação de bens industrializados foram abaixo dos de bens básicos: 48% e 52%, respectivamente, sobretudo em razão da queda das vendas para a Argentina, continuamente hostilizada pelo atual desgoverno, assim como a China. Trocou-se a política externa comercial de Lula pelo desastre da ideologia geopolítica.

De acordo com o índice Melhores e Maiores 2020, levantamento conduzido pela revista Exame, as 10 companhias recebedoras das maiores receitas líquidas externas foram: 1º Vale (US$ 19,2 bilhões); 2º Petrobras (US$ 17,7 bilhões); 3º  Cargill Agrícola (US$ 9,3 bilhões); 4º Shell Brasil (US$ 7,7 bilhões); 5º Bunge (US$ 5,3 bilhões);  6º Louis Dreyfus Company (US$ 4,2 bilhões); 7º Suzano Papel e Celulose (US$ 3,6 bilhões); 8º – JBS (US$ 3,3 bilhões); 9º Amaggi Commodities (US$ 3,2 bilhões); 10º – CSN Mineração (US$ 2,7 bilhões). Foram três paraestatais, quatro estrangeiras e três brasileiras.

Operações com ações ordinárias da Vale e ações preferenciais da Petrobras representam um quarto do volume de negócios realizados no mercado acionário à vista da B3 no mês de outubro de 2022. Retomaram o patamar de 2014, quando representaram 25,16%, segundo levantamento do TradeMap.

Mesmo com a desaceleração da economia global (“desglobalização”), geradora de incertezas para as commodities, o aumento da participação do investidor internacional no mercado local nos últimos meses ajuda a explicar o movimento especulativo. Isso porque os estrangeiros costumam priorizar papéis com mais liquidez, justamente como os dessas produtoras de petróleo e minérios de ferro, além de ações de grandes bancos.

Entre entradas e saídas dos investidores estrangeiros (54% na soma dos volumes de compras e vendas de ações), no segmento secundário da B3 (ações já listadas), o superávit anual deles avançou para R$ 78,53 bilhões. O investidor institucional (26%) sofreu saques de recursos das carteiras dos fundos de ações e seu saldo anual é negativo em R$ 109,81 bilhões. O investidor individual (15%) refugou para a renda fixa e tem também um déficit em 2022 acumulado em R$ 5,29 bilhões.

Os papéis ordinários da Petrobras, com distribuição em profusão de dividendos em vez de fazer reservas, para autofinanciamento dos necessários investimentos, acumulam alta de 95,3% em 2022, enquanto os preferenciais avançam 97,4% no ano. A companhia chegou ao maior valor de mercado na história de R$ 520,6 bilhões. O valor de sua dívida somava R$ 280,6 bilhões.

Portanto, o valor da empresa era de R$ 801,2 bilhões nos ativos totais, ou seja, passivos próprios mais passivos de terceiros. Ambos, credores e acionistas (muitos são estrangeiros) são os dois “donos” da empresa.

A visão em curto prazo dos neoliberais – desincrustação do mercado da sociedade – coloca a maximização de lucro como o objetivo imediato da direção atual da Petrobras. É o retrato perfeito do atual desgoverno: um vale-tudo para a reeleição, em curto prazo, à custa do comprometimento do futuro da Nação em longo prazo!

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

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