Cotidiano, a canção

Paul Dash, Talking Music, 1963
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Por GUTO LEITE, PEDRO BAUMBACH MANICA & VINICIUS PRUSCH*

Considerações sobre a música de Chico Buarque de Hollanda

“Escuta a hora formidável do almoço / Na cidade os escritórios, num passe, esvaziam-se / As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas / Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos! / Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa / Olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso / Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida / Mais tarde será o de amor” (Carlos Drummond de Andrade, Nosso tempo).

1.

“Cotidiano” é uma das canções mais conhecidas de Chico Buarque, e figura no lado A do disco Construção (1971), para muitos, seu melhor disco.[i] Nessa canção, um operário entoa os intervalos de um dia seu de trabalho de maneira pouco óbvia, que solicita desconfiança crítica. Da capo, nos apressamos em dizer que o dia vivido por esse trabalhador não aparece integralmente.

Estão na canção os momentos em que ele não trabalha – no começo da manhã, no almoço, no fim da tarde e à noite –, estabelecendo uma relação inversa ou complementar entre trabalho e matéria entoada. Isto é, o eu da canção[ii] canta a parte de seu cotidiano em que não está trabalhando e não canta a parte de seu cotidiano em que está trabalhando.

O título da canção, “Cotidiano”, portanto, não abarca todo o cotidiano, o que talvez queira sugerir o cotidiano que importa, ou, indo mais longe, aquilo que de fato podemos chamar, no cotidiano, de vida, o que exclui o montante de trabalho no dia deste trabalhador.[iii]

Um passo a mais no sentido de considerar a alienação que o trabalho moderno provoca no indivíduo e percebemos a forma como esse trabalhador está objetado pelo que faz, por seu ofício, reservando sua expressão mais íntima para os momentos em que não trabalha.

Nos termos de Antonio Candido, a respeito de uma rotina análoga àquela expressa em “Cotidiano”, mas sobre O deserto dos tártaros: “A rotina de serviço equivale a uma paralisação do ser e a um congelamento da conduta, contrastando com o ideal de todos, que é o movimento, a variedade, a surpresa da guerra = aventura. Aparecendo como condição desta, a rotina forma com ela um par contraditório e ambíguo. Ao organizar o tempo, a rotina o reduz a um eterno presente, sempre igual, enquanto a aventura é um modo de abri-lo para o futuro desejado”.[iv]

Em paralelo com a ausência do seu trabalho, o trabalho de sua esposa está no centro de quatro das cinco estrofes da canção e esse trabalho nunca é chamado pelo nome, mas implicitamente referido como “não trabalho”. Todas as ações dela estão voltadas para o eu que canta, embora o trabalho de fundo (fazer café, preparar a marmita, lavar e dobrar a roupa, etc.) seja evidente para o ouvinte. Disso decorre que estejam relacionados na canção, com efeito, dois tipos de trabalho, um trabalho produtivo e outro reprodutivo; ponto a que voltaremos adiante.

Pela ironia da forma, isto é, o espaço que se abre entre as perspectivas do narrador em primeira pessoa (que narra toda a canção) e o autor, entendido como eixo que organiza a forma[v], vemos aquilo que vê o operário (os afazeres da mulher como algo natural) e aquilo que é invisível para esse mesmo operário (que no seu momento sem trabalho, a mulher passa boa parte do tempo trabalhando). A visão da forma, portanto, a respeito do mundo, excede a visão do eu cancional sobre esse mesmo mundo.

Antes de uma análise mais cerrada da letra e da entoação de “Cotidiano”, transcrevemos abaixo os versos.

Todo dia ela faz tudo sempre igual,
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã.
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar,
Essas coisas que diz toda mulher,
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café.
Todo dia eu só penso em poder parar. Meio-dia eu só penso em dizer não.
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão.
Seis da tarde, como era de se esperar,
Ela pega e me espera no portão,
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão.
Toda noite ela diz pra eu não me afastar, Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor.[vi]

O deslocamento anunciado antes é perceptível desde o primeiro verso – “Todo dia ela faz tudo sempre igual” –, referindo-se ao cotidiano dela visível para ele, que é cantado. A canção tem cinco estrofes, todas narradas em primeira pessoa. Em quatro dessas cinco estrofes, contudo, quem pratica as ações é ela, ações essas, todas, relacionadas ao eu cancional.

Na estrofe do meio, a terceira estrofe, coincidem o narrador e o agente das ações narradas, embora as ações sejam reflexivas — pensar, pensar, pensar e se calar (“Todo dia eu só penso em poder parar / Todo dia eu só penso em dizer não / Depois penso na vida pra levar / E me calo com a boca de feijão”), ao passo que as ações dela são variadas e envolvem diversas atividades ao longo do período em que estão juntos.

Não é difícil perceber que a estrutura especular que reflete o extenuante trabalho dele (no que ele trabalha? É um operário de fábrica?) pelo trabalho doméstico dela, a organização geral da canção, também reverbera na disposição dos versos, em que o dia é dividido ao meio e o eu cancional só canta a si mesmo no centro desse dia.

2.

O trabalho da mulher pelos olhos do operário é narrado de forma majoritariamente eufórica e repleta de apelos sinestésicos, envolvendo especialmente o tato e o paladar. Cada uma dessas estrofes se encerra com a boca da amada sobre si, com beijos de hortelã, de café, de paixão, e uma mordida de pavor.

A estrofe dele, por sua vez, é marcadamente disfórica e não sinestésica, toda ela voltada para um tempo de reflexão, como se o corpo do trabalhador produzisse certa desconexão entre ação e reflexão ao longo de suas horas de trabalho. No encerramento dessa terceira estrofe, a boca não vai beijar ou morder, mas calar-se, com o feijão feito pela mulher.

Ainda sobre a letra, cabe dizer que ela se volta quase totalmente à esfera do /fazer/ com um número espantoso de verbos e uma hegemonia de ações repetidamente feitas (há somente dois comentários à parte: “essas coisas que diz toda mulher” e “como era de se esperar”). Descontados os dois verbos de ligação, são vinte e oito verbos ou locuções verbais, em vinte e cinco versos.

Essa “sensação verbal” é ainda ampliada pelos substantivos que lembram verbos por sua terminação, como “jantar”, “amor”, “pavor” e “mulher”.

Atentando-se para o já dito, sobre a estrofe cujo foco é o eu da canção ser basicamente reflexiva, essas ações não reflexivas estão todas concentradas na mulher, ao passo que as ações não reflexivas do homem estão subentendidas pelo cotidiano de trabalho e as ações reflexivas da mulher opacizadas pelo filtro da perspectiva masculina que entoa. Em termos mais matemáticos: estão explícitas na canção a reflexão do homem e o trabalho da mulher, e, implícitos, a reflexão da mulher e o trabalho do homem.

Considerando ainda que em dois versos há discurso indireto da mulher (“Diz que está me esperando pro jantar” e “Diz que está muito louca pra beijar”), intensifica-se a sensação de que ele narra o trabalho dela no lugar do seu, numa relação que nos parece mais complementar, enviesada e cheia de voltas do que a frase machista dele (“Essas coisas que diz toda mulher”) poderia entregar.

Ou melhor, a frase machista do operário esconde uma assimetria de gênero mais profunda e complexa do que se poderia perceber, resultando, no limite, em uma pista falsa. Entrevê-se, em suma, certa angústia nessa combinação, certo abafamento, em que a narração da vida dela com ele – reparem que a vida dela consigo, para ele, também é silenciada – é já sintoma, que explode na estrofe central, em que o desespero do trabalhador é explicitado.

Entoativamente, nos termos de Luiz Tatit[vii], estamos no terreno da tematização, em que se focalizam os ataques consonantais, a segmentação melódica e o ritmo, e em que o /fazer/ é priorizado em relação ao /ser/. Se pensarmos no desenvolvimento entoativo para além da identificação do modo cancional que prevalece, mas sublinhando certa disposição formal em que a voz que canta e a voz que fala estão mais emaranhadas na passionalização (em que se focalizam o prolongamento das vogais, a continuidade melódica e as frequências mais agudas) e que a voz que fala está mais “ocupada” pela voz que canta na tematização (considerando a maneira como a entoação enquadra a prosódia), percebemos que temos aqui um espaço fértil para avançar.

3.

A voz que ouvimos o tempo todo é a deste trabalhador, mas a figura entoativa que se repete é quase sempre a mesma, como se algo da esfera do “fazer” tivesse formatado a voz que canta. Ou seja, neste caso, a prosódia é sobreposta por uma entoação maquinal, em que podemos ouvir, sim, aquele sujeito, mas só estridentemente, e a voz que parece dar forma à sua expressão seria externa. Mesmo na estrofe em que fala de si, e confessa sua ansiedade, a entoação não se modifica.

A única variação se dá na estrofe seguinte (“Seis da tarde, como era de se esperar…”), em que acompanhamos um leve volteio mais grave para ascender de maneira íngreme até “e me beija com a boca de paixão” – o que já retorna ao controle logo no verso seguinte, em que imaginamos ambos na cama ao final do dia, passando da euforia do reencontro à angústia da intimidade. Talvez por isso esse verso evoque um sexo antes nervoso que romântico, um sexo urgente, um tipo de válvula de escape para seu (dos dois) cotidiano opressivo. Lembrando que, como é narrado e entoado em primeira pessoa, essa voz que goza, brevemente, é só a dele.

Buscando mais elementos para determinar o cotidiano de que estamos falando[viii], lembramos que a ditadura militar consolidou o Brasil como uma sociedade industrial e urbana. O processo articulou funcionalmente a modernização das relações sociais com a subjugação da classe trabalhadora a condições novas e mais intensas de exploração, e à diminuição acentuada de suas possibilidades de expressão política. Contrariando explicitamente as expectativas nutridas pelo desenvolvimentismo das décadas passadas, que esperava uma industrialização acompanhada de garantias democráticas, a proibição de greves, a intervenção em sindicatos e os baixos salários foram os resultados alcançados pela modernização retardatária brasileira.

A resposta da classe trabalhadora e da esquerda organizada a esse contexto foi diversa e internamente tensiva, tornando-se rarefeita conforme o massacre à organização popular prosseguia: em 1971, ano de lançamento de “Cotidiano”, não houve nenhuma greve registrada, por exemplo.

Entendemos que é nesse contexto que está inserido o operário que narra a canção; antes que conformista, é superexplorado, e sem espírito de insubordinação por razões objetivas. Por outro lado, solapada a base, real ou ilusória, das expectativas democratizantes da geração anterior, que foi o ambiente formativo de Chico Buarque, resta na elaboração do cancionista a apreensão aguda de um sentido do trabalho moderno.

A expectativa de que a industrialização brasileira colocasse em pauta a luta de classes, a conquista progressiva de direitos e, de maneira geral, a promoção dos desvalidos à condição de cidadania, deu lugar à combinação recíproca da reprodução de desigualdades imemoriais com as formas mais modernas de exploração do trabalho. Isto é, o trabalho assalariado não suplantou a escravidão, mas se combinou com ela num sistema variadamente opressivo.

No entanto, enquanto se mantinha viva a ilusão desenvolvimentista, o imaginário da esquerda foi povoado pela figura do trabalhador enquanto elemento moral e positivo, em certo sentido naturalizando o trabalho. Distante do trabalhador idealizado de Jorge Amado, ou da canção de protesto dos anos 1960, a face sombria das condições modernas de trabalho encontra-se latente na canção: se a contradição entre capital e trabalho pode levar à luta pela emancipação, a vitória do primeiro impõe apenas trabalho, sem redenção.

4.

Avançando um pouco mais, e seguindo à releitura radical de Robert Kurz das formulações de Marx, o sentido moderno de trabalho, em sua especificidade histórica, atende a uma dimensão abstrata – o objetivo social de acumulação de valor como um fim em si mesmo –, subordinando os seus conteúdos sensíveis e concretos.

A autonomia moderna da economia em relação ao restante da vida social, seu aspecto “desvinculado”[ix], faz com que o trabalho seja sentido como algo apartado da vida, porque objetivamente o é. Atinado com a natureza indiferente do trabalho em relação aos seus conteúdos específicos, ou seja, a maneira como processo social de trabalho torna a atividade específica a ser realizada um aspecto secundário, decorrendo disso todas as formas de patologia, ainda mais em situação de exploração intensificada, a canção apreende a “centralidade negativa”[x] do trabalho como fonte produtora de uma experiência fraturada em relação ao mundo.

Nesse sentido, o eu cancional de “Cotidiano” tem a parte de sua experiência possível de simbolização, os momentos de não-trabalho (que não podem propriamente ser chamados de tempo livre), organizada em negativo pelo trabalho.

Está em negativo tanto pela ausência de nomeação quanto pela maneira como se infiltra no que pode ser nomeado, constituindo uma subjetividade agônica em relação ao que é encarado pelo eu cancional como não-trabalho. Assim, a escolha de dar forma ao cotidiano de trabalho – na entoação, na regularidade das estrofes, no arranjo –, pela maneira como esse trabalho está presente no momento em que o eu cancional não está trabalhando, expressa um diagnóstico sobre a absorção devastadora da vida pelo trabalho.

Como complemento velado, aparece na canção, em outra chave, o trabalho reprodutivo, base de sustentação não-remunerada do assalariamento[xi]. Fazer comida, lavar e passar roupa, limpar a casa e fazer sexo são atos sem os quais não se reproduziria a força de trabalho para o capital. Mais do que um atavismo, o trabalho doméstico, em sentido moderno, é próprio da transição para a indústria pesada[xii], apresentado ideologicamente, em uma jogada de mestre, como uma missão natural e constitutiva de toda mulher.

Nas palavras de Silvia Federici, “quanto mais pancadas o homem leva no trabalho, mais bem treinada deve estar sua esposa para absorvê-las e mais autorizado estará o homem a recuperar seu ego à custa da mulher”[xiii].

Precisamos nosperguntar em que medida e de que forma esses “dois trabalhos” estão ali representados, como estão entremeados na forma cancional. De saída, por incrível que pareça, o trabalho reprodutivo é o foco de “Cotidiano”: repetimos, das cinco estrofes da canção, apenas uma tem o eu-cancional como sujeito dos verbos e esses verbos estão ligados antes à esfera da reflexão do que à da ação; é “ela” quem “faz tudo sempre igual”, o acorda às seis, sorri para ele, lhe dá beijos, pede que se cuide etc., embora, claro, ele também faça tudo igual, mas, quando pensa a respeito, se cale com a boca de feijão.

O cotidiano presente é, ao menos em um primeiro nível, o doméstico – a exceção, no hipotético refeitório da fábrica, pode ser tomada como um tipo de reprodução hostil da mesa da cozinha. O trabalho daquele que nos fala parece ausente na letra, e o que vemos é o dia a dia repetitivo de sua esposa.

O ponto de vista expresso e a posição central, no entanto, são claramente dele. E, por suposto, trata-se de um narrador não confiável[xiv]. Não só as ações da mulher giram sempre em torno do cuidado e de necessidades dele, mas algumas dessas ações deixam divisar a condição em que ela se encontra, sob a ótica dele. O exemplo mais claro disso talvez seja o verso “Toda noite ela diz pra eu não me afastar”. Em discurso indireto, ele conta de um receio dela. Qual a razão desse receio? Por que ele se afastaria? Podemos confiar nesse medo exasperado da mulher em perdê-lo? E, forçando um pouco a barra: ela teria esse medo todos os dias?

Aqui há uma operação sutil, mas cheia de reverberações: o “todo dia” é uma hipérbole. Não obstante, o tamanho da hipérbole não é o mesmo para cada uma de suas ocorrências. De maneira um tanto sumária, as ações das duas primeiras estrofes podem ser consideradas pouco hiperbólicas, constituindo o cotidiano dela, ao menos de segunda a sexta.

Quando olhamos para a terceira estrofe, a única em que é ele o agente, e a mulher está ausente, a posição que ele expressa se torna mais clara. Ele diz que todo dia ele só pensa em poder parar, em dizer não. Diz-se exausto, sozinho — o fato de não aparecerem outros operários aqui não deve ser ignorado, aliás, o fato de não aparecerem outras pessoas na canção que não sejam os dois —, não aguenta mais sua condição, mas, pensando “na vida pra levar”, reafirma a si mesmo e ao ouvinte que não pode fazer nada.

Nas estrofes subsequentes, quarta e quinta, desconfiamos de que a hipérbole é maior do que nas duas primeiras estrofes, talvez até mesmo provocadas pelo “não poder parar” da terceira estrofe, que é antes da ordem de uma confissão ao ouvinte do que do relato de algo que acontece “todos os dias”. Ou seja, a hipérbole da quarta e da quinta estrofe parecem figurar como uma compensação para a pressão expressa, de que o eu da canção não pode escapar.

5.

Se aceitamos mais a versão do narrador, poderíamos dizer que, em certo sentido, o eu-cancional fala de sua esposa para não falar de si, de sua condição, que está próxima do insuportável. Ele sofre repressão e recalca seus problemas. Nas frestas de sua fala, contudo, eles se deixam entrever, quase como se ele não pudesse efetivamente evitar falar sobre isso, sobre a “rua de mão única” em que se encontra.

Se desconfiamos mais dessa versão, podemos acompanhar a maneira como ele converte sua impotência em potência sobre sua mulher, nas pequenas fantasias sobre ser indispensável por ela, numa versão em que ela aparece cotidianamente apaixonada.

Mais do que isso, somos capazes de perceber a distância entre o peão real e o peão que habita o universo ficcional do artista que o criou. Evidentemente não se trata de indicar que essa compensação da opressão sofrida deva vir como violência, silêncio, recrudescimento da autoridade de “homem da casa” etc., mas o gesto do trabalhador cancionista que torna exuberante, cantando, seu cotidiano como sintoma do que lhe falta não deixa de chamar a atenção[xv]. A estetização do império da máquina na vida desse narrador e no desespero de sua narração são frutos do virtuosismo do cancionista.

Ao mesmo tempo, é justo nesse contexto que as ações de sua esposa figuram com uma ambiguidade fundamental: por um lado, amorosas, protetivas, maternais – nas duas primeiras estrofes; por outro, eróticas, impulsivas, libidinais – nas duas estrofes finais. Ao fundo, ao longo das quatro estrofes em que a mulher é o centro da narrativa, percebe-se certo incômodo pela repetição e pela “insistência”, quase como se fosse ela a causadora de seu cansaço[xvi].

Nesse sentido, não parece disparatado afirmarmos que ele pode falar dela para não falar de si porque seu trabalho reprodutivo, o dela, se lhe apresenta tanto como uma extensão do seu próprio trabalho no ambiente doméstico, quanto como uma espécie de reflexo dele, que ambos seriam como alguém de frente para o espelho, de um ângulo próximo o bastante para não sabermos quem é feito de carne e quem é feito de vidro (embora o corpo vá afirmar sua primazia sobre a imagem).

“A fraqueza social dos não assalariados foi e é a fraqueza de toda a classe trabalhadora diante do capital”[xvii], diz Silvia Federici, e parece ser essa a força que leva o eu da canção ao distanciamento e à identificação, simultaneamente. Por um lado, a mulher é explorada nessa situação, não dispondo sequer da remuneração resultante da exploração de seu trabalho, mas também o operário é disciplinado[xviii]: espaço de sua vida que seria de lazer e descanso apresenta-se como mais um momento do processo de trabalho.

Parece que temos, assim, uma canção na qual o aprofundamento da exploração do trabalho e a diminuição dos espaços de reivindicação se traduzem em uma tensão entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo.

Um homem, muito provavelmente trabalhador de fábrica ou da construção civil — apesar de pouco claro na letra, os toques percussivos em colcheias presentes entre as estrofes no arranjo podem ser lidos como um signo de trabalho manual, de algo mecânico, de linha de montagem; e isso é reforçado, por exemplo, na apresentação presente no documentário Chico e as Cidades (2001), no qual o cantor toca um cowbell durante a execução da canção —, tenta recalcar seu sofrimento ao falar de sua mulher, acabando por explicitar a condição de ambos.

Como somente ouvimos o trabalhador[xix], podemos também desconfiar desse recalque e reconstituí-lo, pensar que possivelmente ele configure uma performance, e que o eu da canção queira, desde o início, consciente ou inconscientemente, que pensemos mais em seus problemas do que nos dela.

Nesse sentido, não se ausentaria o sofrimento do narrador, mas entraria em cena certa acomodação: ele diz que pensa em poder parar, mas talvez esteja, na verdade, confortável em ser servido por sua esposa, querendo e não querendo, ao mesmo tempo, que sua situação se transforme, de modo bastante condizente com a naturalização do trabalho feminino não remunerado.

São diversos níveis de tensão imbricados em sua voz, de modo que o sentido de superfície é apenas uma das expressões do problema que se apresenta e que, em uma audição atenta, percebe-se que retorna de novo e de novo com novas determinações.

Ao cabo, vale sublinhar, mais uma vez, a habilidade do cancionista na criação de um personagem-narrador complexo, a ponto de pensarmos em termos como recalque e fantasia para dar conta de sua narração. Isto é, por óbvio não se trata de um sujeito real – que colhemos, por exemplo, no extraordinário Peões (2004), de Eduardo Coutinho, e que vai figurar aqui como um ponto final do argumento, e ponto de contato com um arco que sempre esteve no horizonte deste texto.

No final do filme de Eduardo Coutinho, documentário sobre aqueles que participaram das greves do ABC, mas não seguiram o caminho da política, o diretor pergunta para um peão, Geraldo, a definição de peão. Após a explicação do operário, este manifesta, segurando o choro, de que seu sonho é que seu filho não seja peão como ele. Depois de algum tempo remoendo aquilo, o operário pergunta ao documentarista: “o senhor já foi peão?”. Eduardo Coutinho responde de bate-pronto: “Não”. Depois de alguns segundos de silêncio entre eles, o filme acaba.

6.

Chico Buarque não é nem foi peão. É possível, contudo, entrever uma história maior de que faz parte. Um primeiro evento nessa história é a peça Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri. Ao golpe militar, à “relativa hegemonia de esquerda”[xx], ao AI-5 e ao auto-exílio de Chico Buarque na Itália, se sucederia o segundo evento desta história, que é a canção “Cotidiano”, em Construção (1971), analisada neste ensaio.

Um terceiro evento se deu em fevereiro de 1980, com a fundação do PT. Os pais de Chico são membros fundadores do partido; a Sérgio Buarque de Hollanda coube a carteirinha de número 3, só depois de Mario Pedrosa e Antonio Candido, e Maria Amélia Buarque de Hollanda foi, segundo o filho, a maior responsável por sua aproximação com o Partido dos Trabalhadores. Há ainda um quarto evento, que é o filme de Leon Hirszman, Eles não usam black-tie (1981), em que Guarnieri atua e as greves do ABC são explicitamente referidas.

O operário que entoa “Cotidiano” apresentaria marcas verossímeis de trabalhadores reais, mas imaginado e ficcionalizado por esse sensível outro de classe, que é o cancionista.

Mais do que essa caracterização, contudo, este capítulo tem por enfoque a maneira como a canção expressa, em diversos níveis, como o trabalho se materializa no cotidiano do casal, em positivo no trabalho reprodutivo, em negativo no trabalho produtivo, de forma angustiada pela perspectiva do eu cancional, de forma crítica pela perspectiva do compositor, e, por consequência, condiciona a própria racionalidade com a qual essa prática organiza o cotidiano dos trabalhadores e dá contornos finais à forma.

Essa voz que está presente na entoação do trabalhador, tornando quase todas as estrofes idênticas, pode ser identificada como a voz da razão produtiva uniformizadora, ligada às necessidades reprodutivas do capital.[xxi]

*Guto Leite, escritor e compositor, é professor de literatura brasileira na UFRGS.

*Pedro Baumbach Manica é mestrando em literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Vinicius Prusch é doutorando em Literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências


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Notas


[i] Para a revista Rolling Stone Brasil (2007), o 3º melhor disco brasileiro “de todos os tempos”.

[ii] “Eu da canção” ou “eu cancional” são expressões usadas para se referir à instância formal da voz dentro da forma estética, correlatos ao narrador, para a ficção, e ao eu-lírico, ou eu do poema, para a poesia. Ao mesmo tempo, como é o caso da canção analisada, o eu cancional pode ser o narrador, quando ele narra uma história por meio da canção. Essas categorias (“eu cancional” e “narrador”) serão mobilizadas neste ensaio para iluminar aspectos distintos de uma mesma forma. Quando se está tratando daquilo que ele narra, narrador; quando se está tratando da natureza cancional da forma, eu cancional. Por suposto, em canções líricas, por exemplo, não há narrador e teríamos de lidar com as instâncias de “eu cancional” e “eu-lírico”.

[iii] Uma reflexão um tanto boba, mas não tanto: se a voz da canção é a de um eu cancional, de quem é o título da canção? Do autor? E quais as implicações disso, já que o título faz parte da forma? As possibilidades de se distinguir autor e eu cancional na forma serão exploradas mais adiante.

[iv] CANDIDO, 2004, p. 147-148.

[v] BAKHTIN, 2003.

[vi] A maneira como se deve transcrever uma letra de canção não é absolutamente consensual. Qual seria a transcrição a ser tomada como base? A do encarte? A do site do artista? À maneira como percebemos a divisão dos versos no fonograma? A dos livros oficiais que reúnem todas as letras de um autor? Optamos neste livro pela versão do site oficial do artista, mas reconhecemos as controvérsias.

[vii] TATIT, 2002.

[viii] Sintetizamos, neste e no próximo parágrafo, o quadro explorado em detalhes por Ana Beatriz Ribeiro Barros da Silva (2016, pp. 87-96) e Marco Aurélio Santana (2008).

[ix] KURZ, 2020, p. 67.

[x] ARANTES, 2014, p. 106

[xi] FEDERICI, 2019, p. 23

[xii] FEDERICI (2019), p. 199-200

[xiii] Ibidem, p.45.

[xiv] Vale sempre citar a fórmula inteligente de James Wood (2012, p.18-19): o narrador em primeira pessoa é confiavelmente não confiável, ao passo que o narrador em terceira pessoa é não confiavelmente confiável. Isto é, sabemos que a perspectiva do narrador de “Cotidiano”, por exemplo, é parcial, e sobretudo a respeito de ações em que ele está implicado. Por isso, de partida, sabemos que ele tem uma versão subjetiva e interessada dos fatos que narra, por isso não é confiável. Ao mesmo tempo, no reconhecimento de sua implicação e de sua particularidade, sabemos que não podemos tomá-lo como objetivo. No narrar sem se esconder numa posição objetivante, há certa confiabilidade. (Não compete a este trabalho, mas, por sequência, os narradores em terceira pessoa seriam confiavelmente não confiáveis por simularem imparcialidade e objetividade inexistentes.)

[xv] Embora o argumento de Ana Paula Pacheco (2008) trilhe outros caminhos, a linha de raciocínio aqui é inspirada na maneira como a exuberância (máxima?) da linguagem de Grande sertão: veredas pode ser também signo do fim histórico do jaguncismo barranqueiro.

[xvi] É relevante lembrar, aqui, como aponta Maria Rita Kehl (2018, p. 85), a imagem de disciplinadoras atribuída às mulheres em muitos sambas, desde Francisco Alves e Sinhô, mas também a de quem dá duro para cuidar dos filhos enquanto o homem aproveita a orgia. “Isso é papel, João/ papel que se faça/ com essa carestia/ jogar meu dinheiro no chão?/ Olha pros neguinhos/ barriga vazia/ coquinho pelado, roupinha surrada/ pezinho no chão…” é uma das letras citadas por ela, de autoria desconhecida. Será que o casal da canção de Chico não tem filhos ou eles somente não aparecem nessa narrativa, na qual quem recebe cuidados é o homem? E a orgia e a boemia, estão completamente ausentes para ele no contexto da canção? O malandro aposentou de vez a navalha, como entoaria Chico em outro samba sete anos depois?

[xvii] FEDERICI, 2019, p.78.

[xviii] Ibidem, p.41.

[xix] No apagar das luzes, para que não se prejudicasse a leitura, remetemos o leitor à audição de “Sem açúcar” (Chico Buarque), gravado pela primeira vez no disco Chico Buarque & Matia Bethânia Ao Vivo (1975). A canção estabelece um diálogo explícito com “Cotidiano”, com a sugestão da melodia no arranjo de flauta transversa e com o primeiro verso: “Todo dia ele faz diferente”. Seria um cotidiano cantado pela mulher que fica em casa na espera do que seu homem traz da rua. Parece-nos de grande interesse uma leitura comparativa das duas canções, mas isso escapa ao escopo de análise que desenvolvemos aqui.

[xx] SCHWARZ, 2008, p.71.

[xxi] Uma versão anterior deste trabalho foi publicada na revista Nau Literária.


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